Ode à Maria João Pires

Ou, um réquiem para os CDs

Peter Moon

Nós, brasileiros, somos abençoados. Mas não é por causa do futebol, do carnaval, da MPB, da mulher brasileira ou do “nunca antes na história desse país”, repetido à enfadonha exaustão por aquele “Nosso Guia”. Somos abençoados porque uma senhorinha portuguesa miúda e delicada resolveu trocar o frio europeu pelo calor soteropolitano. Desde os cinco anos, quando iniciou as aulas de piano, Maria João Pires encheu de música a sua vida. O que ela nunca quis foi viver exclusivamente para a música. Em 2006, com os filhos criados, deu um basta à rotina de concertos e gravações. Encantada pela Bahia, se mudou para lá. Com ela veio o seu piano de cauda, um Yamaha de concerto, que ocupa o único cômodo climatizado em sua casinha brasileira (bons instrumentos precisam de temperatura constante para manter seu brilho sonoro).

Com 65 anos, Maria João Pires se naturalizou brasileira e passa metade do ano entre nós. Ela é uma das melhores pianistas vivas em atividade. Divide seu pedestal com o chinês Lang Lang, o sérvio Ivo Pogorelich e a argentina Martha Argerich. Esta é a nossa benção. Ao adotar o Brasil, Maria João nos brinda anualmente com meia dúzia de recitais imperdíveis, emocionantes, inesquecíveis, impressionantes. Nestes raros momentos, ela preenche espaços antes vazio com música maravilhosa que toca o coração, repleta de acordes que estremecem e notas que dão arrepio.

Numa noite de abril, na Sala São Paulo, eu comunguei de um momento de graça. O concerto era em comemoração aos 200 anos do genial compositor polonês Frédéric Chopin. Meus olhos lacrimejaram. Tive que abafar suspiros incontroláveis de surpresa e prazer. Ouvir aquela senhorinha tocar belíssimas peças de Chopin – entre as mais difíceis do repertório pianístico – acompanhada pelo jovem e competente violoncelista russo Pavel Gomziako, me obrigou a rever muitos conceitos sobre o que é música.

Há música para ser lembrada


Produzidas por seu dedilhar fácil e agilíssimo, as sonatas de Chopin interpretadas por Maria João Pires se impregnaram para sempre em minha memória. Era uma música diferente de qualquer outra que ouvi. Fui a inúmeros concertos, mas nunca tive o privilégio de presenciar uma artista do seu nível. Como bem afirmou o sábio e visionário Walter Benjamin faz mais de 80 anos, não importa quantas vezes vejamos a foto ou a reprodução de uma obra de arte. Nenhuma reprodução técnica, por mais perfeita e fiel que seja, jamais nos aproximará do impacto proporcionado pela apreciação do original. Foi este impacto imobilizador que senti pela primeira vez em 1993, no MOMA, em Nova York, diante do quadro seminal da arte moderna, "Les demoiselles d'Avignon" (1907), de Pablo Picasso. O mesmo ocorreu em 2004, na Oca do Parque do Ibirapuera, ao ver um vestido de noiva do estilista Cristobál Balenciaga. Com Maria João Pires, a magia se repetiu. Eu não estava preparado para vê-la ao vivo (ou estava, e é exatamente por isto que decidi escrever sobre ela?).

É um alívio cotidiano quando, já tarde da noite, chega à hora de me sentar no sofá e bebericar meu Dry Martini bem seco ouvindo jazz dos anos 1940 e 1950, ou então gravações do dedilhar de Artur Rubinstein, Claudio Arrau, Walter Gieseking, Magda Tagliaferro, Vladimir Horowitz, Alicia de Larrocha e os meus preferidos: o grão-mestre Artur Schnabel, o barroco Glenn Gould e o assombroso Dinu Lipatti.

Já escutar o álbum duplo de Maria João Pires com as sonatas de Chopin é uma experiência reconfortante, porém incompleta. É reprodução. Cada interpretação só existe enquanto dura. Ela é única, efervescente e evanescente, como as borbulhas da champagne. E eu já havia degustado o original.

Há música para ser guardada

“Antes de existir os discos, os músicos faziam música para ser registrada na memória. Hoje, a música é gravada para ser guardada em estantes”, lê-se no excelente O mito do maestro - Grandes regentes em busca do poder (Civilização Brasileira), do inglês Norman Lebrecht, o crítico de música do London Evening Standard. Em 1913, o grande maestro húngaro Arthur Nikisch (1855-1922) realizou com a Filarmônica de Berlim o primeiro registro de uma obra sinfônica, no caso a 5ª Sinfonia de Beethoven. Ouça e perceba como a orquestra de Nikish soava diferente do som a que nos acostumamos. Nikish e a Filarmônica de Berlim não estavam tocando para serem gravados. Não tocavam para gravadores nem engenheiros de som. Eles tocavam para tímpanos humanos.

Foi a partir de gravações pioneiras como aquela que o destino final da interpretação das partituras deixou de ser nossos neurônios e começou a migrar para as prateleiras das lojas de discos. Os discos levavam a música de concerto para dentro das casas da emergente classe média americana e européia. E davam lucro. Logo, orquestras e músicos começaram a se dedicar ao registro do repertório erudito, em discos de goma-laca de 78 rotações, aquela chiadeira quebradiça. Após a Segunda Guerra Mundial, em 1948 o disco de cera deu lugar ao long-play, o LP de vinil, muito superior em termos acústicos (e bem mais resistente). Com o vinil, o antigo “som” orquestral do século XIX desapareceu.

Pelo meio século seguinte, a música passou a ser feita para ser guardada em estantes, como afirmou Lebrecht em 1991. Hoje, porém, suas palavras perderam o sentido. Os músicos deixaram de fazer música para ser guardada. A música é feita para ser copiada, consumida e descartada, esquecida com um arquivo anônimo perdido entre milhares de outros na memória de computadores, iPods, iPhones e congêneres.

Há música para ser esquecida

“Pai, o que são aqueles CDzões pretos guardados lá no armário?” perguntou há alguns anos o filho de um amigo meu, ao se deparar com a coleção de LPs do pai, com muita MPB, Rolling Stones e rock progressivo, que acumulava pó esquecida num canto qualquer. O garoto devia ter uns sete anos e nunca tinha visto um vinil na vida. Hoje, ele tem 13 anos, baixa músicas da internet e copia todas as faixas dos CDs ao seu alcance para dentro do computador e, de lá, direto para o limbo digital do iPod ou do celular. Duvido que ouça todas aquelas músicas. Parece-me mais um ato de colecionismo compulsivo adolescente, igual à febre das figurinhas da Copa do Mundo. Uma vez completado o álbum, ele é ostentado como troféu aos amigos boquiabertos, para então ser descartado e esquecido.

Tenho um amigo cinquentão que, volta e meia, vem me mostrar seu novo dispositivo de memória com capacidade expandida. “Peter, olha só esse pen drive que eu comprei,” disse em 2008. “Tenho 200 músicas gravadas aqui dentro!” Em 2009, ele chegou todo pimpão, os olhinhos brilhando. “Peter, olha só, agora são mil músicas! E posso até colocar o pen drive no som do carro, não é demais?” Eu olhava praqueles negócios e não via graça nenhuma. Qual sentido havia em ter mil músicas num pedacinho de plástico pra meter no computador? Onde estavam as fotos dos músicos? O que tinha sido feito do encarte com a lista de músicas, as informações sobre a gravação e (muitas vezes, mas nem sempre) um texto inteligente para colocar a música no seu devido contexto?

Agora, meu amigo se rendeu ao iPhone (e eu também), onde guarda 2 mil arquivos de áudio – sem contar os outros 8 mil no computador de casa. Eu não tenho nenhum arquivo de áudio. Mas tenho mais de 5 mil CDs que ocupam a maior parede da minha sala, cuidadosamente organizados alfabeticamente e por gênero, numa estante de 8,5 metros de comprimento por 1,80 metros de altura, completamente abarrotada. Dói perceber que nunca precisarei mandar fazer outra estante como aquela.

Sim, eu sei que nada daquilo é original, nenhum som, nada, naninha mesmo. Ainda assim, ao longo dos anos cada álbum foi incorporando histórias e memórias, manchas de mofo e de gordura, riscos e trincas em suas frágeis capinhas plásticas (quem as inventou deveria ser empalado vivo!). A música lá em casa é guardada com carinho, pois pertence a um mundo que se foi. As pessoas só irão sentir falta das horas e horas deliciosamente desperdiçadas fuçando centenas de discos numa loja quando este universo musical, um dos retratos do século XX, se tornar pretérito. As lojas de discos estão fechando e o fim dos CDs está muito próximo.

Daí a importância de contarmos com uma benção chamada Maria João Pires. Cada apresentação sua é imperdível. As três próximas acontecem no Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Nos dias 17 de julho e 18 de julho, em Campos do Jordão, ela solará obras de Beethoven e Strauss ao lado da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).

Dez dias antes, em 9 de julho, o recital será na Sala São Paulo. Maria João Pires tocará Bach e Beethoven em dueto com outro virtuose, o nosso grande violoncelista Antonio Meneses. Tal conjunção de talentos tem potencial para produzir exatamente aquele tipo de música que se fazia no tempo de Wagner, Mahler e Nikish, quando a música era feita para guardar na memória.

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