Telefania ou A morte do tradutor - Uma tentativa de romance histórico - Capítulo III

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Capítulo III


Baixo-relevo de Persépolis, exibindo
Xerxes ou Dario.
Uma sombra projetou-se sobre a imagem de Xerxes (10). Durou menos que um instante, o suficiente para deslocar minha atenção do relevo que esculpia, pousar o formão e o martelo, enxugar o suor do rosto e erguer-me sobre o andaime. Cobrin­do o sol com uma das mãos identifiquei um pássaro, talvez um falcão, que planava contra o céu de um azul asbranquiçado, quase cegante, uma boa altura acima de minha cabeça. Seria alguma forma de augúrio? Um presságio?!? Ah, como gostaria saber interpretar o voo dos pássaros.

Para mim, tratava-se de um mistério conhe­cido apenas dos magos e adivinhos, muitos nem tão magos nem tanto adivi­nhos. Eles fazi­am questão de emudecer nas poucas vezes que tive a oportunidade de inda­gá-los sobre aquele mistério. Eles tinham seus segredos, eu tinha os meus. E o falcão, com certeza os dele, já que tantos homens davam tamanha atenção aos bons e aos maus indícios que os volteios de uma ave pelo ar poderiam pressagiar sobre a vida e o futuro de sacerdotes, reis e impérios.

Aquelas elipses aéreas tinham o mesmo poder revelador da análise das vísceras de um touro sacrificado. Eu preferia os pás­saros. O olhar aterrorizado de um boi (ou de um bezerro) no altar sacrificial sempre me constrangia. O machado descendo rápido, o jorro sanguíneo, as pa­tas que começam a arque­ar. Não, definitivamente eu preferia os pássaros. O quê es­taria aquele tentando me dizer?

Enquanto o falcão se afastava, imerso em meus pensamentos planei o olhar através da vastidão que se espraiava à partir do terraço de Per­sépolis (11), na direção às montanhas vizinhas repletas de ciprestes pláta­nos e sicômoros umas duas parassangas (12) além... Parassanga, eu escrevi isso?

Caro leitor, peço perdão. Depois de tantos anos vivendo na Pérsia, o engano é mais que compreensível, até para o mais intransigente dos helenos. Seriam 50, não, quase 60 estádios (13) seriam a medida correta. Ao longo de cada um deles, surgindo do poente junto aos contrafortes rocho­sos e cruzando aquele rio que serpenteava entre o verde das plantações e fazia lembrar o Maiândros (14), caravanas percorriam sem cessar o caminho da cidade sagrada. Diante daquela visão ninguém que ali vivesse, acostumado ao ir-e-vir dos cavalos, camelos, comerciantes e escravos, habituado à dança das estações e pressentindo na carne o verão tórrido que se aproximava, poderia imaginar que a Pérsia estava se preparando para mais uma guerra. Mas estava. Todos sa­bi­am.

Nos últimos dias, as caravanas engrossaram em volume de comprimento. Acompanhando as entregas sucessivas de materiais e dinheiro necessários para o bom andamento das obras persepolitanas, milhares de peregrinos e religiosos acotovela­vam-se ao longo da poeirenta estrada real para participarem das festivi­dades do Ano Novo. Estávamos no Elafebólion (15) quando as noites e os dias tinham a mesma duração e o problema crucial como em todos os anos era sempre o mesmo: onde acomodar tanta gente?

Eu havia dito a um mago que os alojamentos dos obreiros eram só e tão somente destes últimos, e que não me importava se os peregrinos ou quem quer que fosse tivessem que dormir ao relento. Ele nada respondeu. Nem precisaria. Entre os magos, eu era citado como “O HELENO”. Vale dizer, o pagão, o infiel, o inimigo... Mas não se atreveriam a agir contra mim. Cor­reriam riscos. Além do mais, eu sabia perfeitamente que dentro de poucos dias toda a circunferência das muralhas estaria repleta de tendas e bar­raças – momento quando muitos dos peregrinos não resistiriam à tentação de vir atrapalhar o trabalho das minhas equi­pés, opinando sobre a altura das colunas ou a propriedade de cada relevo - e me enervando profundamente.

Os Deuses haviam me ajudado, não podia negar. Poderia ser um escravo cavando e carregando cascalho nas minas da Frígia (16), depois de nossa derrota e meu aprisionamento em Lade. Mas meus dons do trabalho em pe­dra - reconhecidos até mesmo pelos artistas não-iniciados a serviço do Grande Rei - haviam me reservado outro destino. Uma ação providenciam das Moiras (17) tenho certeza. 

Depois de tantos anos a serviço do Bárbaro, havia me tornado o chefe dos construtores de Persépolis, um papel que não escolhi (prefe­ria poder retornar ao convívio dos meus, em Focéia), mas sem dúvida melhor que acabar numa mina onde teria sucumbido há muito.


A Apadana de Persépolis
Sob minhas ordens, operários e trabalhadores vindos dos mais distan­tes pontos do mundo cohecido esforçavam-se em sua obra. Egípcios, frígios, lídios, babilônios, trácios, báctrios, indianos, fenícios, medos, etíopes, lí­bi­os, cáspios, helenos ou hebreus. Não importava. Recrutados entre as vinte e oito nações que compunham o império, onde o material utilizado fosse pe­dra ou bronze lá haviam escultores e bronzistas; ao lado do ouro e do marfim eborários e ourives; trabalhando o ébano e o cedro entalhado­res, cinzeladores e marceneiros, além de pintores, tingidores, bordadei­ras... 

Um exército para o qual nada faltava. Na construção e ampliação dos palácios de Persépolis, tudo era medido sob o si­gno da abundância. Os cofres dos Aquemênidas 
(18) não economizavam es­forços nem talentos (19) para o prosseguimento das obras. Era como se a meta fosse rivalizar em opulência com as grandes obras do passado. Mas quem poderia? Ainda mais num momento em que os exércitos haviam se reu­nido em Sárdis (20), e que o Bárbaro sugava impostos como nenhum antes dele, pronto para repetir a mesma atrocidade perpretada por pai havia: do­minar a Hélade.

As notícias que chegavam da corte susiana eram esparsas e sigilosas. Nenhum rei jamais havia reu­nido tantos recursos e armas para uma invasão. As satrápias (21) estavam exauri­das de homens e ouro. Mulheres choravam. Filhos perguntavam por seus pais? Mães pelos filhos?

Centenas de naus eram cons­truídas nos esta­leiros fenícios para esmagar a frota ateniense. Desde Marathônos (22), derrotar os helenos havia se tornado uma obses­são. Os últimos anos de Dareios foram gastos unicamente nos preparativos de forças terrestres e marítimas de tal forma descomunais, que quando morreu mui­tos pensaram tratar-se apenas da derradeira manifestação de poder de um soberano senil. Ledo engano.

A primeira decisão de Xerxes ao assu­mir o trono foi prosseguir os planos da invasão, para a um só tempo vingar a derrota do pai e firmar-se como um novo conquistador. Ele invejava o avô Ciros e estava farto dos anos de espera pela ascensão ao trono. Por imposição do pai, foram anos perdidos em Persépolis, erigindo monumentos, gastando fortunas e sonhando com o poder. 


O Palácio das 100 Colunas de Persépolis
Eu o conhe­cia bem. Claro, não da mesma forma como se pode conhecer um amigo, mas na medida em que se possa participar do círculo restrito de conselheiros de um príncipe real, o herdeiro do maior império do mundo, sempre cercado por militares, tesoureiros, sacerdotes e espiões.

Como chefe dos construtores de Xerxes, acostumei-me a escutá-lo durante longos períodos, enquanto inspecionava os muros, o erguimento dos ca­pitéis e arquitraves, ordenando modificações nos frisos, frontões e baixos-relevos; ou ainda debruçado sobre as plantas do futuro Palácio das 100 colunas - francamente horroroso - que espero um dia jamais venha a ser construído atrás da Apadana (23).

Explico o porquê. Quem já teve a oportuni­dade de conhecer a mentalidade e os costumes da corte aquemênida um pouco além da óbvia superficialidade e da imagem de conquistadores in­vencíveis que nos foi imposta, certamente irá concordar comigo. Existem poucos povos tão totalmente desprovidos do mais básico senso estético quanto eles. E Xerxes não fugia à regra. Seus palácios riquíssimos e grandiosos são uma confusão completa de estilos, formas e mate­riais empregados. Colunas helênicas, cornijas egípcias, capitéis assíri­os, cumeeira meda, fundações e muralhas babilônicas. Faça sua escolha. Em Persépolis e em Susa encontra-se de tudo um pouco.

Xerxes queria tudo. A grandiosidade das pirâmides; os jardins sus­pensos da Babilônia; a suntuosidade rústica que a combinação da madeira com o ouro proporcionava às construções medas de Ecbátana; e relevos, muitos relevos com homens, touros, leões, unicórnios e grifos ao lado, é claro, da sua própria efígie. 

Era na vã tentativa de transformar em realidade as pretensões e sonhos estéticos de Xerxes que eu passava por cima da minha sensibilidade, repensando e refazendo plantas dezenas de vezes até a sua aprovação. O passo seguinte era tentar convencer – ou ser obrigado a impor - as condições estéticas do bárbaro goela abaixo dos meus três assistentes, Ninurta, o assírio, Zababa, o babilônio, e Ineni, o egípcio. Com Ineni as coisas sempre foram mais fáceis. Ele era sensato e cultuava os deuses e os heróis de forma correta. Era um devoto igual a mim, um irmão.

Apesar de heleno, sim, heleno da Iônia como tantos outros prisionei­ros na revolta de Míletos, portanto cheio de razões para odiar o Bárbaro, eu, Teléfanes de Fócaia, havia mudado muito nos quase quinze anos de cativeiro. Em retrospectiva, à época dos fatos que aqui narrarei eu era homem de 32 anos destemido e muito teimoso, em quase nada parecido ao velho que acaba de franzir a testa na tentativa de recordar fatos passados há 30 anos.

Sou um septuagenário. Estou quase cego. Escrever cada linha é um exercício de concentração e também de adivinhação. Como consegui viver tanto, eu próprio me pergunto todos os dias? A resposta, e sei bem qual é, não me atrevo a pronunciar. Prefiro impregná-la nas fibras deste pergaminho para deixá-la emergir do texto ao longo dos séculos e milênios que virão, pois a mesma força que me manteve vivo para poder contar esta história, tenho fé, há de fazer meu manuscrito sobreviver à passagem das estações, à ascensão e à queda dos impérios, à mudança do curso dos rios e dos credos de todos os mortais.



fim do Capítulo III

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Notas de rodapé:
10 - Xerxes I (519 a.C.-465 a.C.), o imperador persa, neto de Ciro, o Grande, e filho de Dareios ou Dario I.
11 - A capital cerimonial do antigo império aquemênida, ou persa. Sua capital política era Susa.
12 - Parassanga é uma antiga unidade de medida persa que correspondia a cerca de 5.940 metros.
13 - Estádio, do grego stádion (
στάδιον), era uma medida  equivalente a 125 passos, ou 177,6 metros (o estádio romano media 185 metros). No caso, Teléfanes se refere a uma distância entre 8.800 e 10.500 metros.
14 - Maiandros (do grego
Μαίανδρος) é um rio sinuoso, ou cheio de menadros, da mitologia grega.
15 - O deus Apolo nasceu no 7º dia do mês délfico Bísio, que corresponde, no calendário atiço, de Atenas, ao mês Elafebólion, o período que vai de meados de março a meados de abril, quando inicia a primavera. No Elafebolion, celebravam-se em toda a Grécia as festas Dionisíacas, em homenagem ao deus Dionísio.
16 - A Frígia (em grego,
Φρυγία) foi um reino da antiguidade situado na Anatólia (a atual Turquia).
17 - Na mitologia grega, as moiras (em grego antigo
Μοῖραι) eram as três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses quanto dos humanos.
18 - A dinastia iniciada por Ciros ou Ciro, o Grande (600 a.C. ou 576 a.C.-530 a.C.).
19 - Um talento era igual a 100 dracmas. Cada dracma pesava 4,5 a 6 gramas de ouro ou prata. Assim, um talento significava entre 27 a 36 quilogramas de ouro ou prata.
20 - Sardes ou Sárdis (
Σάρδεις, em grego), o moderno vilarejo turco de Sart, foi a capital do antigo reino da Lídia.
21 - O império persa era dividido em satrápias, governadas por sátrapas.
22 - A batalha de Maratona (em grego
Μαραθῶνος) ocorreu durante a Primeira Guerra Médica, em setembro de 490 a.C.
23 - A apadana (آپادانا em persa) era a sala de audiências nos palácios dos antigos reis persas.












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