A Máfia volta à TV

Dá para repetir o sucesso de Família Soprano? Para essa missão, a HBO chamou a elite do crime

Peter Moon

“Nucky, você não pode querer continuar sendo um gângster pela metade. Os tempos mudaram”, diz Jimmy, um jovem ambicioso que acabara de trucidar à queima-roupa com uma espingarda de chumbo grosso cinco mafiosos de uma gangue rival para roubar um carregamento de uísque. O ano é 1920. A Lei Seca que proíbe a venda de bebida alcoólica nos Estados Unidos acaba de entrar em vigor. “Eu deveria matá-lo pelo que fez”, diz o almofadinha Enoch “Nucky” Thompson (Steve Buscemi). Nucky é o secretário das finanças de Atlantic City, em Nova Jersey. É também o chefe do crime na cidade e patrão de Jimmy. “É, deveria, mas não vai”, diz o rapaz. “Toma, é a sua parte do golpe”, e põe na mão de Nucky um envelope com dinheiro. “Mas eu não pedi nada”, diz o chefe. “Nem precisaria...”, diz Jimmy, antes de sair andando pelo calçadão (ou boardwalk, em inglês) à beira-mar de Atlantic City. Essa cena, a do choque de gerações entre bandidos, explicita a linha condutora de Boardwalk empire – o império do contrabando, o novo seriado em 12 episódios que estreia no domingo 17, às 22 horas, no canal a cabo HBO.

Steve Buscemi é “Nucky” Thompson, o chefão
na Atlantic City de 1920 de Boardwalk empire
A introdução da Lei Seca em 1920 é um momento de transição no crime. Os chefões da época enriqueceram explorando a extorsão, a prostituição e o jogo. E têm “princípios” – é o que a série dá a entender. Ao mesmo tempo que manda matar rivais, Nucky ajuda os pobres e toma a justiça nas próprias mãos. É um dos últimos “bandidos cavalheiros”, herdeiro das versões hollywoodianas glamorizadas de bandidos do Velho Oeste como Jesse James, Butch Cassidy e Sundance Kid.

Mas o ano é 1920. O Velho Oeste virou história e os princípios da aristocracia transatlântica foram asfixiados pelo gás mostarda nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Foi nas trincheiras da Frente Ocidental que Jimmy, o motorista de Nucky, aprendeu a matar sem dó. Com a introdução da Lei Seca, o tráfico de bebida e drogas explodiu, e os códigos do submundo se esvaíram. O criminoso com princípios dá lugar ao marginal sem escrúpulos que aperta o gatilho como quem bate cartão de ponto. Antigos gângsteres tradicionais, como Enoch Lewis “Nucky” Johnson (1883-1968), que dominou Atlantic City nos anos 1920, perdem espaço para a máfia italiana e judaica, liderada por jovens ambiciosos.

Boardwalk empire é a história dessa transição no submundo do crime. É cinemão no melhor estilo de Hollywood, só que feito para ser visto na TV (de preferência de alta definição, comendo pipoca no sofá). O primeiro episódio, 120 minutos que custaram US$ 18 milhões, é dirigido por Martin Scorsese, de 67 anos. Scorsese é fascinado pela máfia. Ele nos mostrou sua visão do nascimento do crime nos Estados Unidos em Gangues de Nova York (2002) e da decadência da máfia em Os bons companheiros (1990) e Cassino (1995).

Buscemi (ao centro) janta com chefões do passado e os grandes
mafiosos do futuro
Com Boardwalk empire, Scorsese oferece sua visão da ascensão da máfia. Boardwalk empire faz a ponte entre Gangues de Nova York e O poderoso chefão (1972), de Francis Ford Coppola.
O roteiro é de Terence Winter, o autor do premiadíssimo seriado Família Soprano (1999-2007), sobre uma família mafiosa de Nova Jersey com dramas comuns a qualquer família de classe média. Família Soprano foi o maior sucesso da HBO, sucesso que o canal espera reconquistar com Boardwalk empire.

O primeiro episódio alia a beleza de imagens a uma produção primorosa e uma trilha sonora original, embalada nos ritmos do foxtrote e do ragtime. Some-se a isso a interpretação de Steve Buscemi, de 52 anos. Ele está excelente como Nucky. Com seus grandes olhos azuis que se projetam de um rosto de bagre esquálido, Buscemi é feio que dói. Por isso sempre brilhou em papéis secundários, como o Mr. Pink de Cães de aluguel (1992) e o bandido desastrado Carl Showalter de Fargo (1996). Agora, como o almofadinha Nucky, sua chance chegou. Buscemi tem armas suficientes para vencer o desafio.

Originalmente publicado em Época, em 08/10/2010.

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