O imperador do cinema

Uma obra-prima restaurada, um livro e uma exposição celebram o centenário do cineasta japonês Akira Kurosawa

Peter Moon


Kurosawa filmando
A sala de exibição era enorme. Devia ter mais de mil lugares, somadas a plateia central e o balcão. Era umas 3 da tarde, e o cinema estava vazio. Ou quase. Uns cinco velhinhos japoneses conversavam sentados algumas fileiras à minha frente. Além deles, só eu. E estava apreensivo. Será que a sessão aconteceria ou seria cancelada na última hora, pelo fato de a sala estar tão vazia? Era dia de semana, meio da tarde, no final dos anos 1970. O Cine Niteroi, na Av. Liberdade, em São Paulo, era uma das últimas salas de cinema da colônia japonesa. O Niteroi vivia reprisando em cópias antigas e desbotadas os grandes clássicos em preto e branco do cinema japonês. Eu vivia fuçando a programação no jornal para saber quando aconteceria alguma reprise de um filme do diretor Akira Kurosawa (1910-1998).

Eu devia ter uns 15 anos. Não era um adolescente que gostasse de jogar bola. Também era mais tímido que uma porta e não tinha namorada. Eu era um nerd. Depois da escola, minhas horas vagas eram preenchidas com romances policiais, histórias em quadrinhos... e cinema. Eu gostava (e adoro até hoje) dos filmes de Fellini, Kurosawa e Hitchcock. Kurosawa ocupava um lugar especial. Meu fascínio por seu trabalho havia começado uns anos antes, quando, ainda moleque, assisti pela primeira vez Os sete samurais (1954) numa sessão coruja, madrugada adentro. Os sete samurais é um dos filmes da minha vida. Perdi a conta quantas vezes assisti, mas foram bem mais de 20.

Naquela tarde em particular, há mais de 30 anos, eu fui ao Cine Niteroi para assistir Trono manchado de sangue (1957), uma adaptação de Macbeth, de Shakespeare. Kurosawa transportou a tragédia do rei da Escócia ao Japão do século XVI, com seus senhores feudais ou daimiôs, comandando exércitos de samurais em guerra constante pela supremacia no Império do Sol Nascente.

Minha apreensão com a possibilidade da sessão ser cancelada desapareceu quando as luzes se apagaram e a cortina que cobria as telas de antigamente começou a abrir. E mais uma obra prima do mestre japonês se desenrolou diante dos meus olhos. Toshiro Mifune estava impressionante como o nobre ganancioso que mata o rei para tomar seu lugar e é assombrado pela profecia de três bruxas que haviam previsto a sua ascensão e queda. E Lady Macbeth, a pior vilã da literatura universal, era particularmente horrorosa na adaptação de Kurosawa. Sai do cinema em estado de catarse, pensando que legal seria um dia treinar a esgrima dos samurais...


Toshiro Mifune em Trono manchado de sangue, adaptação de Macbeth
Trono manchado de sangue foi a quarta obra prima de Kurosawa que vi. Entre Os sete samurais e Trono manchado de sangue, assisti Dersu Uzala (1975) no circuito comercial e Rashomon (1950) no telão do Niteroi. “Uma coisa que distingue Akira Kurosawa (dos demais cineastas) é que ele não fez uma ou duas obras-primas. Fez oito,” disse certa vez o americano Francis Ford Coppola, criador da trilogia de O poderoso chefão, e por Apocalypse Now

Pelas minhas contas, além dos quatro filmes já citados, sou capaz de adivinhar três das oito obras-primas a que Coppola se refere: Yojimbo (1961), Kagemusha (1980) e Ran (1985). Não saberia escolher qual seria a oitava, entre as duas dúzias de filmes sensacionais criados pelo grande diretor. Kurosawa era o cineasta preferido dos grandes mestres da sétima arte. “Ele é o exemplo vivo do que um autor de cinema deveria ser,” disse Fellini. “Gostaria de fazer um faroeste do jeito que Kurosawa faz faroestes,” disse o americano Sam Peckinpah. “Os filmes de Kurosawa e A doce vida de Fellini foram as coisas que me levaram a ser um diretor,” disse Bernardo Bertolucci. “Outros cineastas contam com mais dinheiro, mais recursos técnicos, mais efeitos especiais. Apesar disto, nenhum superou Kurosawa”, disse o chinês Zhang Yimou. “Quero deixar claro que A fonte da donzela deve ser encarado como uma aberração. Não passa de uma imitação turística péssima de Kurosawa,” disse o sueco Ingmar Bergman sobre seu próprio filme.

Ao longo dos anos, a minha paixão pelos filmes de Akira Kurosawa me levou a ler o seu Relato Autobiográfico (1982); me levou a ler a biografia conjunta The emperor and the wolf - The lives and films of Akira Kurosawa and Toshiro Mifune (2001), de Stuart Galbraith IV; me levou a conhecer a história de cada um de seus filmes, em The films of Akira Kurosawa (1984), de Donald Richie; me levou a estudar a história do Japão para entender o contexto no qual se desenrolavam seus filmes de época; me levou a descobrir os mangás de samurais como a sensacional série Lobo solitário (1970-1977), de Kazuo Koike e Goseki Kojima; e, por fim, a treinar por seis anos kenjutsu, a arte da espada samurai, com o sensei Jorge Kishikawa, do Instituto Niten.

O centenário do mestre
Foi com esta bagagem que tive a grata surpresa de ler À espera do tempo - Filmando com Kurosawa (Cosac Naify, 320 páginas, R$ 69), uma biografia de Teruyo Nogami, de 83 anos. Nogami foi a assistente de direção de Kurosawa desde Rashomon, o ganhador do Leão de ouro de Veneza de 1951, que tornou Kurosawa conhecido fora do Japão, até o derradeiro Madadayo, de 1993. Nogami esteve em São Paulo semana passada, para lançamento da edição brasileira de seu livro, onde compõe uma colcha de retalhos com reminiscências curiosas, elucidadoras e divertidas da sua convivência artística de meio século com o grande mestre.

A publicação faz parte das comemorações do centenário de Kurosawa, que está sendo comemorado com a exibição da cópia restaurada de Rashomon na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e com a exposição “Akira Kurosawa - Criando imagens para o cinema”, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. A exposição exibe pela primeira vez no Brazil diversas aquarelas de Kurosawa, que ele pintava para compor as cenas de filmes como Ran, Kagemusha, Sonhos, Rapsódia de agosto e Madadayo. 


P.S.: 

Nos anos 1990, o Cine Niteroi fechou. Pouco tempo depois, li estarrecido no jornal que todas as cópias em celulóide dos filmes estocados - com obras-primas de Kurosawa, Mizoguchi e Ozu - seriam vendidas para uma fábrica de vassouras (você sabia que celulóide serve para fazer ótimas cerdas de vassoura?!?)…

Lembro que houve uma comoção entre os cinéfilos e uma tentativa da Cinemateca Brasileira para comprar os rolos de filmes. Tudo em vão. A companhia exibidora japonesa não queria correr o risco de ver seus filmes copiados e pirateados. Triste foi o fim aquela da cópia de Trono manchado de sangue que mudou a minha vida no fim dos anos 1970... Virou cerda de vassoura…

Publicado originalmente em Época Online, em 24/10/2010.

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