Quanto vale uma obra roubada?

Os saques ajudaram a formar as maiores coleções de arte do mundo. Agora, os países pilhados exigem suas peças de volta. O que isso representa para os museus e o mercado de arte

Peter Moon

O antigo Palácio de Verão, ou Jardim da Perfeição Radiante, era a residência dos imperadores da dinastia Qing. Tratava-se de um complexo de pavilhões, templos, jardins e lagos em uma área de 350 hectares, ao norte de Pequim. Sua construção, entre 1707 e 1760, foi dirigida pelos jesuítas Giuseppe Castiglione e Michel Benoist. Considerado a “Versalhes do Oriente”, o Palácio de Verão foi destruído por ingleses e franceses em 1860, na Segunda Guerra do Ópio, travada para garantir aos europeus o controle do comércio de ópio, que na época não era ilegal.


Os bronzes do Antigo Palácio de Verão, em Pequim 
Reclamante: China 
Detentor: Coleção Yves Saint Laurent 
Valor: US$ 40 milhões 
Estas cabeças de rato e de coelho eram de uma fonte, incendiada em 1860. Seu leilão foi sabotado pelo milionário Cai Mingchao com um lance falso. Ele defende a volta das obras à China







A ordem para incendiar o palácio foi do comandante inglês, o oitavo lorde Elgin, em represália ao assassinato de 18 emissários dos invasores. Cerca de 3.500 soldados levaram três dias para queimar tudo. Mataram 300 eunucos e camareiras, muitos queimados vivos. Saquearam o que puderam. “Mal se pode imaginar a beleza das coisas que queimamos”, disse o capitão dos Engenheiros Reais, Charles Gordon. “Foi um trabalho miseravelmente desmoralizador para um Exército.”

Havia uma grande fonte, projetada por Benoist, com as cabeças de bronze dos 12 animais do calendário chinês. De cada cabeça jorrava água nas duas horas do dia correspondentes àquele animal. Todas sumiram. “Essa maravilha desapareceu. Um dia, dois bandidos entraram no Palácio de Verão. Um pilhou, o outro incendiou”, disse o escritor francês Victor Hugo. “Nós, europeus, somos civilizados, e para nós os chineses são bárbaros. Aí está o que a civilização faz à barbárie.”

A destruição do Palácio de Verão foi talvez o ponto mais degradante dos 5 mil anos da civilização chinesa, prostrada e dominada pelas potências coloniais. Passados 150 anos, a China é uma potência em ascensão que não mede esforços para resgatar sua grandeza. Daí a reação de Pequim, quando a casa de leilões Christie’s anunciou a venda da coleção de arte do estilista Yves Saint Laurent, morto em 2008. Fazem parte da coleção as cabeças do rato e do coelho da antiga fonte. “O leilão de objetos culturais pilhados em tempo de guerra não só ofende o povo chinês e solapa seus bens culturais, como viola as leis internacionais”, disse um porta-voz de Pequim.

O leilão, na última semana de fevereiro, foi o maior de uma única coleção até hoje. Os 700 itens renderam US$ 476 milhões. Pierre Bergé, ex-companheiro de Saint Laurent, diz que doará tudo à pesquisa para a cura da aids. As cabeças de bronze foram arrematadas por US$ 40 milhões, por um colecionador anônimo. Na segunda-feira, ele revelou sua identidade. Era Cai Mingchao, dono de uma casa de leilões em Xiamen, no sul da China. Mas ele disse que nunca teve a intenção de pagar pelas peças. “Qualquer chinês teria feito o mesmo. Eu o fiz em nome do povo chinês. Como colecionador, desejo recuperar as obras de arte pilhadas.”

Em 1970, uma convenção da Unesco tornou crime o comércio de bens culturais roubados. Ela impede a venda de qualquer uma das 10 mil peças da antiga Mesopotâmia saqueadas do Museu do Iraque, em 2003, após a tomada de Bagdá por tropas americanas. Mas a convenção não é retroativa. Por isso, o governo chinês não conseguiu que a Justiça francesa barrasse a venda das cabeças de bronze. “Eu as adquiri e estou protegido pela lei. A alegação da China é ridícula”, afirma Bergé. “Mas estou preparado para devolvê-las imediatamente. A China só precisa declarar que respeitará os direitos humanos e devolverá a liberdade ao Tibete.”

A Christie’s checa as credenciais financeiras dos compradores. A oferta foi aceita porque Cai é um conhecido colecionador de arte. Em 2006, ele pagou US$ 15 milhões por uma estátua de Buda em um leilão da Sotheby’s. Cai também é consultor do Fundo Nacional de Tesouros da China, órgão engajado na recuperação de relíquias pilhadas no país. Uma pesquisa com internautas chineses mostrou que 70% apoiam Cai. Dos 12 bronzes da fonte do Palácio de Verão, cinco cabeças foram recuperadas por colecionadores chineses e doadas ao governo. Representam um tigre, um macaco, um touro, um porco e um cavalo. Cinco animais continuam desaparecidos. A Christie’s manterá os dois bronzes leiloados na França até ser paga. Caso não receba, ela deve processar Cai, tentar novamente vendê-los ou devolvê-los a Bergé.


Os mármores de Elgin 
Reclamante: Grécia 
Detentor: Museu Britânico 
Em 1812, lorde Elgin, o cônsul inglês em Constantinopla, retirou os frisos do Parthenon, de Atenas. Levou-os para Londres. A Grécia exige seu retorno desde 1890







O protesto de Cai Mingchao e a tentativa de Pequim de barrar o leilão são parte de um movimento internacional para restringir a venda e exigir a repatriação das relíquias saqueadas pelo colonialismo europeu. A maior bandeira dessa luta são os mármores de Elgin. Com 80 metros de comprimento, compõem metade das esculturas em baixo-relevo que adornaram por 2.300 anos os frisos do Parthenon, na Acrópole de Atenas. Há 200 anos, foram retirados pelo sétimo lorde Elgin – o pai do responsável pela destruição do Antigo Palácio de Verão – e vendidos ao Museu Britânico. Desde 1890, a Grécia tenta reaver os mármores. Embora pesquisas afirmem que os ingleses querem a devolução dos mármores, o museu exige antes de mais nada que a Grécia prove ser a proprietária deles. “A conversa não pode nem começar antes que isso aconteça”, diz Neil MacGregor, diretor do Museu Britânico.

Outra alegação dos ingleses para reter os mármores é que Atenas não tem um museu moderno para abrigá-los em segurança. O argumento perderá a validade em 20 de junho de 2009, quando será inaugurado o Novo Museu da Acrópole, de US$ 130 milhões. Ele deverá ser o lar definitivo de centenas de esculturas do antigo museu da Acrópole. Isso inclui os 80 metros de baixos-relevos do Parthenon que nunca saíram da Grécia, assim como o “fragmento de Palermo” e o “pé de Heidelberg”. Pilhado por lorde Elgin e dado ao cônsul inglês na Sicília, em 1816, o “fragmento de Palermo” estava no Museu Salinas, em Palermo, e foi devolvido pela Itália em 2008. Dois anos antes, a Universidade de Heidelberg havia devolvido a estátua de um pé, que faz parte do friso norte do Parthenon. Todos os frisos estão sendo remontados no Novo Museu da Acrópole. Reproduções em gesso ficarão no lugar das 88 esculturas dos “mármores de Elgin”, cobertas por um véu como forma de protesto.


O altar de Zeus em Pérgamo 
Reclamante: Turquia
Detentor: Museu Pergamon 
O altar do séc. II a.C., com 113 metros, foi tirado da antiga Pérgamo, na Turquia. Está em Berlim desde 1910

O governo da Turquia pretende adotar a mesma estratégia. Ele planeja construir uma réplica em tamanho natural do Grande Altar de Zeus em Pérgamo. Entre 1878 e 1886, o altar foi retirado, pedra por pedra, pelo arqueólogo alemão Carl Humann das ruínas de Pérgamo (uma cidade da Grécia antiga, hoje Bergama, na Turquia). Em 1910, foi reconstruído em um museu que leva seu nome, em Berlim. A mesma cidade abriga o busto de Nefertiti, reclamado pelo Egito. Em fevereiro, a revista Der Spiegel revelou um documento dos arquivos da Sociedade Oriental Alemã. Ele sugere que o arqueólogo Ludwig Borchardt, que descobriu o busto de Nefertiti em 1912 nas escavações de Amarna, deliberadamente escondeu seu valor das autoridades egípcias. Para a Fundação da Herança Cultural Prussiana, “a reivindicação de que a divisão dos tesouros não ocorreu conforme as regras não é verdadeira”.


O busto de Nefertiti
Reclamante: Egito 
Detentor: Altes Museum 
O busto de 3.400 anos da mulher do faraó Akhenaton foi achado pelo alemão Ludwig Borchardt, em 1912, nas escavações de Amarna. Está em Berlim. Para o Egito, o busto foi contrabandeado










A Alemanha pilhou muito, mas também foi pilhada. Em 1873, Heinrich Schliemann encontrou na Turquia as ruínas da antiga Troia. Ao achar uma coleção de joias, Schliemann pensou se tratar do “tesouro de Príamo”, o rei troiano derrotado na guerra cantada por Homero na Ilíada. Schliemann levou as joias embora e as vendeu ao Museu Imperial de Berlim. O tesouro desapareceu com a tomada da cidade pelo Exército Vermelho, após a derrota dos nazistas, em 1945. Por meio século, seu paradeiro foi um mistério. Só em 1993, após o fim da União Soviética, o governo russo admitiu que o tesouro estava no Museu Pushkin, em Moscou. De lá para cá, os alemães – mas também os turcos – pedem sua devolução. A Rússia se recusa, considerando-o uma reparação pelos crimes de guerra nazistas.


O tesouro de Príamo 
Reclamante: Alemanha 
Detentor: Museu Pushkin 
O alemão Heinrich Schliemann achou um tesouro em Troia, em 1873 (à esq., exibido por sua mulher) e o vendeu ao Museu Imperial, em Berlim. Em 1945, as joias foram saqueadas pelos soviéticos






O mesmo impasse divide o Peru e a Universidade Yale, nos Estados Unidos. Lima quer de volta as peças escavadas entre 1911 e 1915 em Machu Picchu por seu descobridor, o explorador Hiram Bingham III. Na época, a coleção saiu do Peru mediante o acordo de que seria estudada em Yale e devolvida após um ano. Noventa e dois anos depois, as partes chegaram a um acordo. Yale devolveria 350 peças após a construção de um museu em Cuzco para abrigar joias, prataria, cerâmica e ossos. “A negociação fracassou quando Yale se recusou a aceitar nossa primeira condição: o reconhecimento de que o Peru é o único dono dos bens”, diz Eliane Karp-Toledo, ex-primeira-dama do Peru. “Agora, Yale quer reter as peças por outros 99 anos.”


O tesouro inca de Machu Picchu 
Reclamante: Peru 
Detentor: Universidade Yale 
Machu Picchu foi achada, em 1911, pelo americano Hiram Bingham. Patrocinado pela National Geographic Society, Bingham coletou 40 mil peças, como esta faca de ouro. A coleção está até hoje na Universidade Yale




“Algumas reivindicações são razoáveis, mas, se começarem a querer tudo, aí fica impossível”, diz Michael Brand, diretor do Museu Getty, em Los Angeles. Ele foi forçado a devolver à Itália 39 esculturas gregas e romanas. O mesmo se deu com o Metropolitan, de Nova York, que devolveu outras 20. É o resultado da cruzada movida pelo ministro da Cultura italiano, Francesco Rutello, para reaver seus tesouros espalhados pelo mundo. “Onde isso vai parar?”, diz Philippe de Montebello, o diretor do MET. “Será que a Itália vai devolver os cavalos de bronze da praça de San Marco, saqueados de Constantinopla, em 1204? Quando a Turquia devolverá o sarcófago de Alexandre ao Líbano?”, diz Montebello. O sarcófago foi retirado do Líbano no século XIX, quando este fazia parte do Império Otomano.

Parece justo devolver as obras saqueadas a seus legítimos donos. Mas a ideia tem dois grandes obstáculos. O primeiro é que, quanto mais recuada no tempo for a pilhagem, mais difícil é estabelecer quem é o legítimo dono. O tesouro de Príamo, por exemplo, pertence aos alemães (que o descobriram e guardaram por 70 anos), aos turcos (onde ficam as ruínas da antiga Troia) ou aos gregos (já que os troianos faziam parte da cultura grega)?

O segundo obstáculo é que a devolução de grandes obras provocaria uma crise nos maiores museus do mundo. A própria ideia de reunir obras do mundo inteiro em um único prédio – e ter a dimensão da universalidade da cultura humana – estaria em xeque.

Publicada originalmente em ÉPOCA, em 06/03/2009.

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