A Amazônia infestada de crocodilos

O Brasil é o paraíso dos jacarés. Não temos crocodilos. Nem sempre foi assim. Há 40 mil anos, crocodilos infestavam a Amazônia

Peter Moon

Crocodilo não é jacaré. E jacaré não é crocodilo. A observação parece óbvia, mas não é. No Pantanal mato-grossense, o lar de estimados 2 milhões de jacarés, não é incomum ouvir os pantaneiros chamarem jacaré de crocodilo. Mas não há crocodilos no Brasil. Nas Américas, só há uma espécie de crocodilo, o Crocodylus intermedius, que vive nos rios da bacia do Orenoco, na Venezuela. Quanto à família dos jacarés, das oito espécies, seis vivem nos rios da América do Sul. No Brasil, eles são jacarés. Para os hermanos são caimanes (o alligator do sul dos Estados Unidos também é um jacaré). Já nas regiões tropicais da África, Ásia e Oceania ocorre o contrário. Lá, os rios são infestados por crocodilos e só há uma espécie de jacaré, o chinês (além do gavial da Índia, um outro membro da ordem crocodilia, que não é nem jacaré nem crocodilo)


O crânio de um crocodilo que viveu no rio Madeira há 40 mil anos

Não deixa de ser estranho pensar que uma única espécie de crocodilo sobrevive isolada na Venezuela? Por que é assim, já que as bacias do Orenoco e do Amazonas são interligadas por um canal, o Casiquiare? Por que o crocodilo do Orenoco não se espalhou para o resto da bacia amazônica, que de resto é uma região tropical como a bacia do Orenoco, ou as bacias do rio Congo e do alto rio Nilo, ambas na África? 

A solução para estas questões acaba de ser encontrada. A resposta tem 55 centímetros. Este é o comprimento do crânio de um crocodilo que viveu há 40 mil anos, nas águas do rio Madeira, perto do que hoje é a fronteira entre o Brasil e a Bolívia. O crânio foi achado na corrida do ouro em Rondônia, nos anos 1980. Os garimpeiros que o encontraram pensaram que fosse um jacaré. O fóssil acabou esquecido na coleção do Museu Estadual de Rondônia, em Porto Velho. Em 2004, dois estudantes da Universidade Federal de Rondônia perceberam que aquele crânio nas estantes da reserva técnica do museu não era de um jacaré. “O crânio é idêntico ao do crocodilo do Orenoco. O bicho tinha pelo menos 4 metros e 20 anos de idade quando morreu, há 40 mil anos,” diz o paleontólogo Daniel Costa Fortier, da Universidade Federal de Minas Gerais, que estudou o fóssil em Porto Velho. 

Fortier está preparando um trabalho científico para anunciar a descoberta. Ele diz não ser possível afirmar que o crânio pertence a uma nova espécie de crocodilo. Tudo indica que se trata de um exemplar do crocodilo do Orenoco, que no auge da idade do gelo, há 40 mil anos, habitava o sul da Amazônia. Naquela época, não existia a floresta tropical que conhecemos. O clima era bem mais frio e seco. O que hoje é a Amazônia se parecia com o cerrado do planalto central, só que habitado por mastodontes, preguiças gigantes, tigres-de-dentes-de-sabre e tatus gigantes, os gliptodontes. 

Este cenário pleistocênico agora tem no crocodilo um novo personagem. A existência do crânio de Porto Velho demonstra que, sim, os crocodilos não estavam limitados no passado ao rio Orenoco. Se havia crocodilos no sul da Amazônia e hoje eles só são encontrados na Venezuela, claro está que crocodilos infestavam toda a Amazônia. Agora só falta achar seus fósseis. 



Como diferenciar jacarés de crocodilos


Os crânios de um jacaré-açu (à esq.) e do crocodilo fóssil.
Jacarés têm focinho bojudo e o dos crocodilos é afilado
Os crocodilianos evoluíram há 220 milhões de anos. Foram contemporâneos dos primeiros dinossauros. À época, os continentes estavam reunidos numa única massa contínua, o supercontinente Pangea. Os crocodilos eram predadores terrestres que tinham patas longas. Várias espécies com formas bizarras viveram há 100 milhões de anos onde hoje é São Paulo e Minas Gerais – leia O jacaré de pastava e São Paulo teve jacaré com carapaça de tatu. A transição dos crocodilídeos para uma vida semi-aquática ocorreu em algum momento antes de 60 milhões de anos atrás, a idade dos mais antigos fósseis de jacaré. 

O jeito mais fácil de diferenciar jacarés de crocodilos é olhar o focinho. O focinho dos crocodilos é mais afilado e alongado, enquanto o dos jacarés é mais curto e bojudo. Outra diferença está nos dentes. Quando fecham a bocarra, os jacarés escondem suas presas. No caso dos crocodilos, vários dentes ficam expostos mesmo com a boca fechada. 

Uma terceira diferença é o tamanho. A maior espécie de jacaré é o jacaré-açu ou jacaré negro. Um macho adulto pode atingir até 5,5 metros de comprimento e pesar meia tonelada. O crocodilo africano e o gavial são maiores. O maior de todos é o crocodilo de água salgada da Austrália. Ele é o maior réptil vivo. Há registros de animais que ultrapassaram 8,5 metros, com quase duas toneladas.

Originalmente publicado em Época, em 04/11/2010

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