Quanto mais quente, melhor

A biodiversidade amazônica, a maior do mundo, é mais antiga e complexa do que se pensava. E o efeito estufa – quem diria? – pode beneficiá-la

Peter Moon

Hileia (do grego hylé ou floresta densa) foi o termo escolhido pelos naturalistas Alexander von Humboldt (1769-1859) e Aimé Bonpland (1773-1858) para definir a espantosa diversidade vegetal e animal com que se defrontaram ao explorar a maior floresta tropical do mundo, entre 1799 e 1804. Desde Humboldt, gerações de biólogos procuram entender a razão por trás da absurda biodiversidade amazônica, o lar de 20% das espécies vivas, entre estimados 2,5 milhões de espécies de insetos, dezenas de milhares de variedades de plantas, milhares de tipos de peixes e aves – dos quais só 100 mil espécies foram até o momento identificadas. 

A imagem microscópica mostra a diversidade de polens
e esporos fósseis da floresta da Colômbia e da Venezuela
há 56 milhões de anos, quando havia na Terra um
efeito estufa
O mistério da origem dessa biodiversidade começou a ser desvendado em 1967, quando o biólogo alemão Jürgen Haffer (1932-2010), ao estudar a Amazônia colombiana, formulou a “teoria dos refúgios”. Para Haffer, nos 100 mil anos da última idade do gelo, que acabou há 13 mil anos, o clima da região era mais frio e seco. Por isso, a floresta não era contínua, mas fragmentada em “refúgios”, ilhas de mata densa cercadas de cerrado por todos os lados. O isolamento de bandos de saguis de uma espécie ancestral em cada um desses refúgios fez surgir, após milhares de anos, dezenas de espécies de saguis. Para Haffer, processo idêntico repetiu-se entre as plantas, as aves, os insetos, os répteis e os peixes.

Ao explicar de forma original e elegante a origem da biodiversidade amazônica, a ideia dos refúgios tomou de assalto a academia e se tornou dogma para duas gerações de cientistas. No Brasil, seus principais defensores foram o geógrafo Aziz Ab’Saber e o zoólogo Paulo Vanzolini, ambos com 86 anos. Na semana passada, o dogma, fustigado há tempos pela nova geração de pesquisadores, recebeu a extrema-unção. Os algozes são dois estudos internacionais publicados na revista ScienceAmazonia Through Time: Andean Uplift, Climate Change, Landscape Evolution, and Biodiversity e Effects of Rapid Global Warming at the Paleocene-Eocene Boundary on Neotropical Vegetation.

O primeiro estudo demonstra que a biodiversidade amazônica não remonta ao término da idade do gelo. É muito anterior. Em boa parte dos últimos 60 milhões de anos, a biodiversidade era igual ou superior à atual, como comprovam os fósseis da antiga fauna e flora da região. O segundo estudo questiona uma ideia recente, ligada às possíveis consequências do aquecimento global. Especialistas preveem um aquecimento de 3 a 5 graus célsius na temperatura média anual da Amazônia nos próximos 100 anos. Em consequência, afirmam, o clima será mais árido. A perda de umidade poderia resultar na redução da biodiversidade, por meio da extinção de espécies. O trabalho na Science diz o contrário. O clima mais quente deve expandir a biodiversidade.

Foi assim há 56 milhões de anos, no período Eoceno, quando a temperatura média era 5 graus mais elevada e a multiplicidade vegetal atingiu um pico na região da Colômbia e da Venezuela. A prova são imagens de minúsculas partículas de pólen e esporos fósseis, achadas em escavações na camada de terra correspondente ao Eoceno. O pólen é de plantas aparentadas às que hoje sobrevivem nas regiões mais quentes e úmidas do planeta. O estudo mostra também que, em vários períodos desde então, a floresta semeou pólen em maior diversidade que hoje.

A expansão da riqueza do bioma amazônico iniciou há 60 milhões de anos, quando a América do Sul era uma ilha, a antiga bacia hidrográfica amazônica corria em sentido contrário ao atual, e os Andes surgiram. O acúmulo de espécies teve influência da antiga ligação da Amazônia com o Pacífico e o Caribe. Nos vários períodos mais quentes que o atual, a diversidade foi maior. “Foi um processo bem mais gradual. Levou milhares de anos. Houve tempo para as espécies se adaptarem”, diz o paleontólogo Douglas Riff, da Universidade Federal de Uberlândia, um dos autores da pesquisa. “Hoje, o processo é muito rápido. Os efeitos podem não ser os mesmos. Mas não se pode dizer que a mudança climática levará necessariamente a uma extinção em massa.”

Originalmente publicado em Época, em 12/11/2010. 

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