Como Hitler se tornou Hitler

A excelente biografia Hitler, de Ian Kershaw, publicada em dois volumes entre 1998 e 2000, chega ao Brasil em versão abreviada... um catatau com mais de mil páginas

Peter Moon

Hitler, em 1915: A derrota alemã em 1918
“foi o pior dia da minha vida”
Alois Hitler queria que seu único filho homem seguisse a carreira paterna, como funcionário público do Império Austro-Húngaro. Mas, desde a adolescência, o jovem Adolf sonhava em ser artista. Ele tinha certeza absoluta de sua capacidade artística. Só faltava revelá-la ao mundo. Calado e sem amigos, vivia com a cabeça mergulhada na mitologia teutônica, como a saga do cavaleiro Sigfried, em luta contra monstros, bruxos e bárbaros. Aquele passado heroico (embora fictício) era um ideal germânico a ser resgatado por meio da arte. Após a morte do pai, em 1903, Adolf abandonou os estudos. Com a ajuda de uma irrisória pensão estatal para órfãos, somada aos empréstimos regulares de sua tia, ele deixou a mãe e a irmã na pequena Braunau am Inn e seguiu para a capital imperial, Viena. Iria cursar a Academia Imperial de Belas-Artes. Era preciso antes passar num concurso, para Adolf uma mera formalidade, dado seu óbvio talento. Não foi o que aconteceu. Sem estudar nem se preparar para os exames, foi rejeitado em 1907 – fato que ocultou da família e dos poucos amigos. Adolf sustentava a versão de que havia sido admitido na Academia. Nunca chegou a ser “pintor de paredes”, a imagem que ficou para a história. Ele até poderia tê-lo sido, não fosse tão preguiçoso e indolente, como revela o inglês Ian Kershaw, historiador da Universidade de Sheffield. Kershaw é autor da biografia definitiva de Hitler, publicada entre 1998 e 2000 em dois volumes e 2 mil páginas. Hitler (Companhia das Letras, 1.160 páginas, R$ 78) chega ao Brasil em versão abreviada – um termo curioso para tamanho catatau.

Para manter a farsa da Academia, Hitler passava os dias na rua. Saía do quartinho alugado vestindo roupas puídas para ler de graça os jornais nos cafés da cidade (ele era abstêmio). Seu único luxo era a ópera. Comprava lugares em pé para assistir às sagas de Wagner. Em 1908, tentou outra vez entrar na Academia. A inscrição foi recusada. Sem dinheiro, viveu como indigente num albergue coletivo. Por essa época, começou a germinar seu rancor contra o caldeirão étnico que perambulava pelas ruas. A Viena cosmopolita assumia, a seus olhos, o contorno ameaçador da decadência da cultura germânica. Os judeus se tornaram o foco de suas frustrações. Se Hitler ainda não era antissemita, tornou-se em Viena.

Mesmo “reduzida”, a biografia é enciclopédica e muito bem escrita. O tema incomoda. Como escrever com isenção sobre a vida de um monstro genocida, responsável pela morte de dezenas de milhões de pessoas, e pela execução sistemática de 6 milhões de judeus? O desafio de Kershaw foi despojar-se dos preconceitos que envolvem a figura do Führer, o líder do Partido Nazista, o ditador do Terceiro Reich e o promotor do Holocausto. A pergunta que Kershaw se propõe a responder é como alguém obviamente desajustado e sem educação formal se tornou o líder da segunda maior potência industrial do planeta. É entender como aquele homem, que em qualquer outra sociedade provavelmente terminaria seus dias um indigente de rua com distúrbios mentais, conseguiu tornar seus delírios megalomaníacos pessoais e seu ódio aos judeus em alucinação coletiva alemã.

Para Kershaw, foi a Primeira Guerra que tornou Hitler possível. No Exército, a indolência deu lugar à disciplina. Quando veio a derrota alemã em 1918, Hitler considerou aquele o pior dia de sua vida. À derrota seguiram-se reparações de guerra, a hiperinflação de 1923, o medo do comunismo e a Depressão dos anos 1930. Estava criado o caldo para o povo alemão dar ouvidos ao fanatismo hitlerista. A biografia divide responsabilidades entre criador e criatura, entre Hitler e os alemães.

Originalmente publicado em Época, em 26/11/2010

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