O mestre-artesão dos violinos

O pernambucano Saulo Dantas-Barreto aprendeu a criar violinos na melhor escola da Itália, e agora transmite o ofício a alunos brasileiros

Peter Moon


Dantas-Barreto aprendeu seu ofício na Itália, na escola
luteria de Cremona, a terra dos Stradivarius
Nem parecia uma oficina de marcenaria. Onde estava a serragem que deveria se espalhar pelo chão? E o cheiro de madeira recém cortada? Pela parede caiada serpenteiam diversos tubos de PVC. São os tentáculos de um original aspirador de pó. Suas bocas, seladas, terminam em diversos pontos de uma longa bancada de trabalho sobre a qual se vê algumas ferramentas: uma minúscula serra tico-tico, uma furadeira, uma lixadeira, uma aplainadora e uma pistola de tinta. Acopladas às ferramentas há pequenos prendedores e adaptadores feitos à mão, assim como várias lentes de aumento. Do outro lado da sala, através de um piso imaculado, fica o torno e um outro tentáculo de PVC. E, sob a bancada, o precioso estoque de abeto e ácero, madeira seca e clarinha importados da Itália. Penduradas na parede há diversas fôrmas vazadas. São cheias de curvas e sensuais. Pequenas, médias e grandes, têm a silhueta de violinos, violas e violoncelos. Trata-se do único indício de que o local não é uma oficina de precisão mecânica, mas um ateliê de luteria, uma oficina de fabricação de instrumentos de corda. Aqueles são os domínios do pernambucano Saulo Dantas-Barreto, de 45 anos.

Dantas-Barreto é talvez o melhor luthier brasileiro em atividade. Ele se considera a um só tempo um músico, um mestre-artesão e um artista. Músico, porque estudou violino em João Pessoa. Mestre-artesão, porque se formou na melhor escola de luteria, a Scuola Internazionale di Liuteria “A. Stradivari”, em Cremona. “O luthier é um artista que trabalha para outros dois artistas, o músico e o compositor,” diz Dantas-Barreto. “O luthier produz o instrumento que permite ao intérprete criar música a partir de uma partitura”.

Entre os séculos XVI e XVIII, Cremona foi o berço dos melhores e mais valiosos violinos, as obras-primas marchetadas e envernizadas pelas famílias Amati, Guarneri e Antonio Stradivari (1648-1737), o maior de todos. Ele construiu 1.100 instrumentos, dos quais sobreviveram uns 500. Após a morte de Stradivari, a fabricação de violinos em Cremona começou a declinar. No início do século XIX, não havia mais luterias. As técnicas de fabricação dos mestres cremoneses desapareceram com eles. Foi só em 1937, nos 200 anos da morte de Stradivari, que o ditador Benito Mussollini decidiu criar uma escola de luteria em Cremona para resgatar um passado glorioso.

Desde a sua fundação, a escola formou mais de 800 luthiers, os melhores do mundo. Atualmente o mais concorrido é o alemão Stefan-Peter Greiner. Aos 44 anos, construiu 350 instrumentos e cobra de US$ 50 mil a US$ 60 mil cada. Não faltam clientes. A fila de espera é tão grande que supera a expectativa de vida do saudável luthier de Bonn.

Dantas-Barreto formou-se em Cremona em 1992. Em 1996, construiu um quarteto de cordas (2 violinos, viola e violoncelo) que ofereceu de presente à rainha Sofía da Espanha. O “Quarteto da Rainha” integra a coleção de instrumentos do Palácio Real de Madri, ao lado de um Stradivarius. Em 2000, voltou ao Brasil com a mulher italiana e três filhos. Foi morar em Vinhedo, perto de Campinas. Todos os dias, ele vem a São Paulo, onde mantém seu ateliê na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP) e começa a transmitir seu ofício a alunos brasileiros. Dantas-Barreto é contratado da Santa Marcelina Cultura, a organizadora do Festival de Inverno de Campos do Jordão, do qual é o luthier oficial.

Seu ofício é lento e meticuloso. Dantas-Barreto pega um pedaço de abeto, ou pinho de Veneza. Tem uns 40 cm de comprimento e a forma de uma fatia de bolo de aniversário. “Esta peça de madeira ficou secando 15 anos. Ela custa US$ 1.500.” Assim como o escultor que enxerga a futura obra aprisionada no interior de um bloco de mármore, Dantas-Barreto diz: “Aqui dentro tem um violino”. O abeto é usado para o tampo do instrumento. Seu braço, as laterais e o fundo são feitos com outra madeira, o ácero. Um violino é feito com 70 peças coladas e envernizadas. Leva no mínimo três meses para ficar pronto. “É preciso ser escultor, pintor, músico e um pouco químico, para fazer o verniz.”

O luthier fez 46 instrumentos, entre violinos, violas, cellos e rabecas brasileiras. “Não faço contrabaixos nem arcos. Para eles, há luthiers específicos. Fiz também uma cópia da única harpa conhecida de Stradivarius, uma pequena arpetta guardada no Conservatório de Música San Pietro a la Majella, em Nápoles.”

Entre os artistas que usam instrumentos de Dantas-Barreto está o rabequeiro pernambucano Antônio Nóbrega, e o violoncelista grego radicado em São Paulo Dimos Goudaroulis. “Tenho um cello italiano do século XVII, um cello alemão e outro francês do século XVIII. Eu os uso para tocar música antiga. Para a música contemporânea, prefiro o cello do Saulo,” diz Goudaroulis. Um violino de Dantas-Barreto não sai por menos de R$ 20 mil. Uma viola, R$ 25 mil. Um cello custa R$ 40 mil. “O Saulo faz instrumentos com desenhos. Escreve poemas dentro deles!”, diz Goudaroulis. “Eles são excelentes. O Saulo é um doido.”

“Os instrumentos temáticos são uma criação minha,” diz Dantas- Barreto. São trabalhos impecáveis de inspiração, pesquisa, machetaria e pintura. No violino “Floresta do Amazonas” há um tucano e uma borboleta. O violino “Ben-Gurion” traz a estrela de David e trechos de salmos em hebraico, ladino, alemão e francês. O violoncelo “Aleijadinho”, encomendado por um empresário paulista, é ilustrado com imagens dos apóstolos do escultor mineiro. Levou um ano para ficar pronto. O resultado rendeu um livro, Aleijadinho, o Violoncelo - A Luteria de Dantas-Barreto (Alaúde, 88 págs., R$ 92). Mas será que a machetaria alterou o instrumento?

“Quando vi o Aleijadinho, me surpreendi,” diz o violoncelista pernambucano radicado na Suíça Antônio Meneses. “A ornamentação é instigante, provocativa. Mas o que me interessava era saber se soava bem. Sim, o som é perfeito. Para um músico brasileiro, tocar um bom instrumento brasileiro é uma emoção indescritível.”



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Publicado originalmente em Época Online, em 17/01/2011.

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