Uma biografia bem temperada

A busca obsessiva de Glenn Gould pelo piano perfeito para tocar Bach

Peter Moon


Gould em 1955, gravando sua primeira versão das Variações Goldberg






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Um dos melhores livros que li em 2010 foi A Romance on Three Legs: Glenn Gould’s obsessive quest for the perfect piano (Bloomsbury, 272 páginas, U$ 16), publicado em 2008 pela jornalista americana Katie Hafner, ex-correspondente do The New York Times. O título dá uma ideia do que Katie pretende entregar, e de fato entrega. As três pernas fazem alusão às pernas dos magníficos pianos de cauda. Trata-se de um tríptico biográfico que se lê como um romance. Os personagens são um pianista famoso, um afinador desconhecido e um majestoso piano com defeito de fabricação. 

A primeira perna é a história da vida do prodigioso pianista canadense Glenn Gould (1932-1982), o melhor intérprete no século XX do repertório originalmente composto para cravo por Johann Sebastian Bach (1685-1750). A segunda perna é a vida de um outro canadense, Verne Edquist (1931-). Cego desde a infância, Edquist tornou-se afinador de pianos. Nos anos 1960, tornou-se o afinador pessoal de Gould dado o entrosamento musical que ambos estabeleceram com a terceira perna do tríptico: o piano Steinway Grand modelo D n° CD 318. 

Aquele piano era o patinho feio da Steinway. Tinha tudo para ser um instrumento de concerto excelente, mas apresentou problemas desde o dia em que saiu da fábrica, nos anos 1940. O que ninguém desconfiava é que, sob os cuidados de Edquist e percutido pelo dedilhar de Gould, o pato seria cisne. 

As variações Gould

Pergunte a qualquer pianista de formação erudita o que acha de Glenn Gould. Se o músico se dedicar ao repertório dos compositores românticos do século XIX, Beethoven, Chopin e Liszt, poderá franzir o cenho e virar a cara. Na melhor das hipóteses, limitar-se-á ao silêncio. Na pior, a menção do nome Gould desencadeará uma torrente de impropérios contra as suas interpretações, todas elas “distorcidas”. Ele teria razão. Gould tocava Beethoven como se fosse Bach e tocava Brahms como se fosse Bach. Se tivesse tocado Villa-Lobos, este também soaria como Bach. 

Decorre que, se o pianista questionado fosse devoto da obra para cravo de Bach, ele bem poderia abrir um sorriso e declarar: “Ninguém nunca tocou Bach como Glenn Gould. Nem Bach.” E seria igualmente verdade. As melhores gravações do cânone bachiano para cravo são todas de Gould, a começar pelas Variações Goldberg, registradas por Gould pela primeira vez em 1955 e responsáveis por revelá-lo ao mundo. Ele gravou-as novamente em 1981, antes de morrer. O contraste entre o andamento das duas interpretações é abissal. O registro de 1955 é a lebre. O de 1981 a tartaruga. Ambos são de uma beleza transcendente – e estão à venda num álbum triplo absolutamente imperdível: Glenn Gould - A State of Wonder – The complete Goldberg Variations 1955 & 1981 (Sony/BMG, R$ 74).

Gould gravou tudo de Bach. Desde os dois volumes do Cravo bem temperado, passando pelas Suítes Inglesas e pelas Suítes Francesas, até chegar às Toccatas e às Partitas

Gould era virtuose na mais completa acepção do termo. Não bastava ser um prodígio precoce, dono de uma técnica impecável e inconfundível. Ele tinha que ser também maníaco-compulsivo (distúrbio que, salvo engano, no jargão médico politicamente correto atual passou a se chamar bipolar, certo?). A postura de Gould diante do piano era a antítese da postura clássica dos concertistas. Estes permanecem sentados em silêncio, com as costas perfeitamente eretas, imóveis, em concentração e silêncio profundos durante a interpretação. Gould não fazia nada disso. Para começar, não sentava em banquetas. Carregava debaixo do braço para qualquer concerto uma cadeira com os pés cerrados, deixando o assento uns 15 centímetros mais baixo que o das banquetas tradicionais. Sentado, seu rosto permanecia poucos centímetros acima do teclado. Era assim, todo curvado, grudado no ébano e no marfim, que Gould tocava. 

Outra mania eram seus movimentos. Quase qualquer músico interpreta fazendo a marcação do tempo com os pés, oscilando suavemente o corpo ou solfejando baixinho. Gould fazia tudo isso ao mesmo tempo, sem economia de esforço. Ele interpretava com o corpo inteiro. Enquanto seus dedos trabalhavam, Gould gesticulava, cantarolava, gemia e solfejava – às vezes tão alto que era impossível aos engenheiros de som eliminar por completo o “som Gould” de suas gravações. 

As manias ao piano continuavam fora dele. Gould tinha medo de avião e não dirigia. Ele se alimentava basicamente de bolachas e leite, mergulhava os braços em água morna por meia hora antes de tocar, e era alucinadamente hipocondríaco. O medo de adoecer era tanto que, quando ia de carro (como passageiro) da sua Toronto natal para o estúdio de gravação em Nova York, usava cachecol, luvas de dedo e um capote com gorro ideal para enfrentar o inverno ártico canadense, jamais os sufocantes 40 graus do mês de julho em Manhattan. 

A esquisitice de Gould era relevada no instante em que começava a tocar Bach. Ninguém tocava Bach como Gould. Querem saber por quê? Era porque Gould procurava extrair de um piano o tipo de som que Bach compunha e extraía a 300 anos do seu cravo. À exceção da sua produção para órgão, todas as obras de Bach para teclado que chegaram aos nossos dias são para cravo, o instrumento de teclas por excelência entre os séculos XVI e XVIII. 

Como Gould fazia para tocar um piano como se fosse um cravo? Ou melhor, como fazia um piano soar como um cravo sem perder as qualidades exclusivas do piano, quais sejam seu maior volume e riqueza tonal? Esta é a trama do livro de Katie Hafner.

O piano bem temperado

Quando Bach morreu em 1750, o pianoforte, o ancestral direto do piano moderno, acabara de ser inventado na Itália. Bach deve ter ouvido falar do novo instrumento, mas não chegou a pôr os dedos em um. Se tivesse, com certeza teríamos partituras de Bach para pianoforte. E por que tal certeza? Do cravo para o piano existe um salto quântico de qualidade. O cravo tem 60 teclas e o piano 88 teclas (ou 95, no caso de um modelo da marca austríaca Bösendorfer). Um número maior de teclas significa mais notas e maior riqueza tonal. 

Agora, o volume. No cravo, as teclas acionam um mecanismo que “belisca” as cordas, fazendo-as vibrar. Já os martelos do piano percutem as cordas com mais força, o que resulta em vibração maior e mais volume. Este volume maior é por sua vez amplificado ao reverberar pelo tampo harmônico, uma placa de madeira grande e fina que recebe e amplifica a vibração das cordas. 

Os cravos não possuem tampo harmônico nem pedais. Os pedais do piano servem para, sustentar o som de uma nota, prolongando-a ou então a abafando. No cravo nada disso existe. A pressão de uma tecla produz uma nota cuja vibração – e, por conseguinte, sua duração – são sempre as mesmas. 

Observe e escute atentamente este vídeo de Gould tocando num cravo o Prelúdio e Fuga em Mi maior, de Bach. 

Agora ouça a mesma peça tocada por outro artista num piano. A riqueza de sons, tons e brilho impressionam, não? É um mundo sonoro mais amplo. As sonatas de Beethoven, os prelúdios de Chopin e ou noturnos de Liszt jamais poderiam ter sido compostos num cravo, pois ele simplesmente não possui os recursos para obras de tamanha complexidade. 

Aí reside o desafio e a genialidade de Gould. Sua obsessão era tocar a obra para cravo de Bach dedilhando um piano. Mas atenção: Gould não queria que seu piano soasse como um piano. Ele queria apenas usar os maiores recursos do piano, fazendo-o soar como um cravo. Para atingir este objetivo, Gould buscou por mais de uma década um Steinway perfeito. O resultado pode ser atestado ouvindo esta Fuga em Lá menor de Bach, interpretada num piano que soa “quase” como um cravo, porém com mais colorido e densidade... Como Gould fazia isto?

A busca do piano perfeito


Um piano Steinway Grand modelo D
Os Steinway Grand modelo D são obras de arte de US$ 100 mil. São produzidos desde o final do século XIX pela americana Steinway & Sons em duas fábricas, uma em Nova York e a outra em Hamburgo. Até os anos 1980, o Grand modelo D era o instrumento de predileção dos concertistas internacionais, superando outros excelentes pianos de fabricantes centenários como o alemão Bechstein e o Bösendorfer

Boa parte dos concertistas é um artista exclusivo Steinway (era o caso de Gould). Eles só podem se apresentar ou gravar dedilhando um Steinway. Em troca, têm a certeza de sempre dispor de ótimos instrumentos, pois o fabricante se compromete a fornecer (via aluguel) seus melhores pianos às principais salas de concerto do planeta para a apresentação de seus artistas exclusivos. 

Mas nenhum Steinway, por melhor que fosse, deixava Gould satisfeito. O culpado é o mecanismo sofisticado que permite ao piano superar o cravo. O mecanismo que permite prolongar, encurtar ou abafar o som de uma nota no piano é o mesmo que faz suas teclas demorarem mais tempo (medido em microssegundos) para retornar ao ponto original. Quando se pressiona a tecla de um cravo, não há nada para retê-la. O retorno é quase imediato. 

Da mesma forma, como os grandes pianos são obras de marchetaria feitas uma a uma, sempre à mão, cada Steinway é diferente do outro. Cada qual possui propriedades mecânicas únicas e um som particular. Se as peculiaridades de cada piano são evidentes em se tratando do mesmo fabricante, elas são ampliadas quando os pianos são de marcas diferentes. Um Bechstein não soa como um Bösendorfer que não soa como um Steinway. O acionamento do teclado e a velocidade de resposta e retorno das teclas variam de piano para piano e de fabricante para fabricante. São mudanças muitas vezes imperceptíveis ao ouvinte ou ao músico que não possui um ouvido absoluto. 

Este não era o caso de Verne Edquist. Cego desde a infância, ele desenvolveu naturalmente o sentido da audição. Acabou destacando-se na carreira de afinador de pianos, uma profissão com elevada participação de deficientes visuais. No fim nos anos 1950, Edquist não era o mais requisitado afinador de Toronto. Sendo assim, só conhecia o “prodígio” Gould das salas de concerto. Certo dia, no entanto, o afinador que atendia Gould se ausentou e quem o substituiu foi Edquist. A empatia entre os dois foi imediata. 

Gould não se acertava com nenhum afinador. Dizia que não compreendiam o que ele dizia, nem conseguiam afinar o piano para Gould dele extrair o som que desejava. Com Edquist foi diferente. O afinador simplesmente entendeu que Gould não queria tocar um piano, mas um cravo. Tratou de ajustar o mecanismo do Steinway para que o tempo de resposta das teclas fosse o mais breve, como um cravo. 

Gould se encantou. O som ainda não era o ideal, mas a melhora era gritante. Para atingir o sonho, era preciso encontrar um piano que, naturalmente, por algum capricho dos veios da madeira, da composição do verniz ou da marchetaria do teclado, tivesse a alma de um cravo. 

Quando Gould encontrou seu afinador ideal, saiu em busca do piano perfeito. Foram alguns anos de procura por todas as lojas e depósitos da Steinway na América do Norte e Europa – onde incluiu no roteiro visitas secretas às fábricas dos Bechstein e dos Bösendorfer. Mas nada. Tal piano não existia. 

Quando, em 1961 ou 1962, confesso não lembrar bem, Gould considerava desistir da busca, ele o encontrou. E no mais inusitado dos locais. O melhor auditório para concertos de Toronto ficava no último andar da loja de departamentos mais chique da cidade. A mesma loja que representava a Steinway em Toronto tinha um auditório para que os amantes da música pudessem ouvir artistas como Gould e, empolgados, comprar por impulso um piano de qualidade. 

Gould havia tocado e gravado naquele auditório inúmeras vezes. Sempre usava o melhor piano da loja. Nunca passou pela cabeça de ninguém que aquele velho Grand modelo D n° CD 318 fosse o piano perfeito. De perfeito não tinha nada. Seu som era estranho, parecia mais um cravo que um piano. Suas teclas eram leves e rápidas demais. Nenhum concertista que sentou em sua banqueta se atreveu a tocá-lo em público. Os defeitos do CD 318 aparentemente eram de fabricação. Ele tinha sido um dos pouquíssimos pianos produzidos durante a 2ª Guerra Mundial, quando a Steinway se converteu em fabricante de planadores militares dentro do esforço de guerra americano. Se a fábrica produzia mil pianos de concerto anualmente nos anos 1930, durante a guerra foram feitos no máximo 100. O CD 318 era um deles.

Não importa as razões que levaram o CD 318 a soar de modo horrível, como um cravo. O importante é que quando Gould experimentou o teclado, teve a certeza que sua busca acabara. Edquist teve a mesma certeza, e logo tratou de abrir a caixa daquela maravilha para aproximar seu mecanismo ainda mais do de um cravo.

Partita e fuga


Glenn Gould - A State of Wonder, Um album imperdível
Nos sete anos seguintes, Gould não tocou outro instrumento. Muitas das suas melhores gravações foram feitas no CD 318. Como Gould só tocava o CD 318, este tinha que ser transportado por trem para todo e qualquer concerto do pianista através da América do Norte. Transportar de um lado para outro um piano de cauda de concerto envolve riscos. Se há margem para acidentes, mais cedo ou mais tarde eles ocorrerão. 
Foi o que aconteceu certa noite, quando o piano, vindo da estação, era retirado do caminhão para ser colocado no auditório de onde nunca deveria ter saído. Os carregadores – eles sempre o negaram – deixaram o CD 318 cair no chão. A queda provocou o incontornável, rachou o tampo harmônico. 

Desesperado, Gould pediu a Edquist que concertasse o piano. Não havia jeito. Seu som peculiar se calara. Sem aceitar que havia perdido seu piano perfeito, Gould enviou o CD 318 para restauro na fábrica da Steinway. Quando voltou, não era o mesmo. O cravo desaparecera. No lugar havia um piano com alma de piano. 

Gould sobreviveu outros 15 anos à morte do seu piano querido. Nunca deixou de procurar um sucessor à altura do CD 318. Não havia nenhum. 

P.S. 
Nos anos 1980, quando a Steinway, até então uma companhia familiar, foi comprada pela Columbia Records, tornou-se um ramo menor de uma grande corporação. A qualidade de seus pianos decaiu – sem perder sua majestade. A Steinway ainda produz alguns dos melhores pianos do mundo, como o Grand modelo D testado e escolhido pelo pianista Nelson Freire na fábrica de Hamburgo, em 2008. O instrumento, de US$ 100 mil, foi doado pela família Baumgart no primeiro semestre de 2008 ao Teatro de Cultura Artística, em São Paulo, apenas para ser destruído no incêndio que consumiu o teatro em agosto daquele ano (logo após o incêndio, os Baumgart afirmaram que, uma vez reconstruído o teatro, doarão outro piano igual).

Em tempo: sem prejuízo para os soberbos Bechstein e Bösendorfer, o declínio relativo da Steinway abriu espaço para a ascensão de um novo fabricante. Em 1981, o engenheiro e pianista italiano Paolo Fazioli decidiu pura e simplesmente reinventar o piano, um instrumento criado há 250 anos e que passou por um século de mutações até assumir em 1880 sua forma atual. Como melhorar o que parecia perfeito? 

Fazioli reuniu um grupo de engenheiros, químicos, carpinteiros e escultores para, usando técnicas modernas, criar o melhor piano do mundo. Ele pesquisou novos tipos de madeira que jamais haviam sido considerados pelos fabricantes tradicionais. A composição do verniz foi alterada. Todas as possíveis combinações de madeiras e verniz foram feitas com vistas a atingir uma melhora sensível no som do instrumento. Fazioli não era maluco. Provou que estava certo. Os pianos de concerto Fazioli são hoje os melhores do mundo. Um instrumento de topo de linha não sai por menos de US$ 200 mil. Mas ainda não surgiu outro Glenn Gould para extrair tudo o que um Fazioli pode entregar. Isto é bom. Quer dizer que o futuro nos reserva surpresas.

Originalmente publicado em Época Online, em 08/12/2010.

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