Existe vida após a morte?

A vida imortal de Henrietta Lacks conta a história de uma mulher que morreu na década de 50, mas cujas células se reproduzem até hoje

Peter Moon

Henrietta e David Lacks, em foto não datada.

No caso da americana Henrietta Lacks (1920-1951), a resposta à pergunta acima é SIM. Basta entrar na internet para encomendar uma amostra das células de HeLa (as sílabas iniciais de seu nome) e recebê-la pelo correio. As células de Henrietta vêm sendo cultivadas ininterruptamente há 60 anos. Elas foram usadas em 60 mil experiências científicas (dez novos estudos são publicados por dia). A vacina contra a poliomielite, de 1952, só foi possível graças às células HeLa. A vacina contra o vírus do papiloma humano (HPV), de 2006, também. Desde 1980, elas vêm sendo infectadas com o vírus HIV para testar novas drogas e possíveis vacinas. O uso de células HeLa está na base da pesquisa do câncer. Elas já foram clonadas, hibridizadas com plantas, expostas à radioatividade e levadas ao espaço para verificar seu crescimento na falta de gravidade. Sem as células HeLa, não haveria pesquisa médica moderna.

Quando Henrietta morreu, ela pesava 49 quilos. Desde então foram cultivados 50 milhões de toneladas de suas células, uma massa equivalente a 1 bilhão de Henriettas, lê-se em A vida imortal de Henrietta Lacks (Companhia das Letras, 440 páginas, R$ 42), da jornalista americana Rebecca Skloot.



O livro liderou todas as listas e ganhou todos os prêmios de melhor obra de divulgação científica publicada nos Estados Unidos em 2010. Mas, como qualquer grande livro, não cabe em uma única definição. O trabalho de Skloot não é uma biografia convencional, pois a “biografada” morre no início do livro. Também não é um compêndio da história da medicina, embora se leia com o mesmo prazer e curiosidade com que se assiste a um episódio do seriado médico do doutor Gregory House. Trata-se, antes de mais nada, de um trabalho de investigação jornalística exaustiva e apaixonada. Não bastasse, o livro tem a virtude de poder ser lido como um romance, ou melhor, uma tragédia americana do século XX. A história do destino brilhante das células de uma jovem, bela e dedicada mãe de cinco filhos pequenos também é o relato do vazio que sua morte prematura deixou. É a história da ausência do amor materno, substituído por uma infância de agressões, abuso sexual, miséria, abandono e assassinato.

Henrietta era a mais bela das filhas da família Lacks. Ela era adolescente quando casou com o primo-irmão David. Casamentos consanguíneos eram comuns em Lacks Town, um povoado onde todos eram parentes. Lacks Town fica na Virgínia, nos fundos da antiga plantação de tabaco dos Lacks, uma rica família branca. Para eles, o fato de existir Lacks brancos e negros é obra jocosa do destino. Para o ramo negro da família, “destino jocoso” é o nome dado a séculos de estupros de escravas e ex-escravas pelos antigos donos de escravos e agora patrões. Foi para fugir do preconceito e de uma vida sem perspectivas que Henrietta e David se mudaram nos anos 1940 para Baltimore. Embora em Baltimore a vida fosse melhor, ela nunca deixou de ser difícil. O dinheiro era curto e o preconceito igual ao que haviam deixado para trás.


Em janeiro de 1951, Henrietta começou a se queixar de dores no abdome. Pediu a David que a levasse ao Hospital Johns Hopkins, distante 30 quilômetros. Era o único hospital da cidade que cuidava de negros. Henrietta entrou na antiga ala para “pessoas de cor” e foi atendida por um médico que retirou uma amostra daquela pequena bola negra intumescida que crescia em seu útero. A amostra foi levada ao casal George e Margaret Gey, pesquisadores da Universidade Johns Hopkins. Fazia anos que eles tentavam sem sucesso cultivar células humanas. Recebiam amostras de tecido de pacientes do hospital e tentavam replicá-las usando uma técnica para cultivar células de rato. Eles punham as células humanas em pratos de vidro com nutriente e as mantinham aquecidas. Apesar de cuidadas com atenção, as culturas sobreviviam no máximo uns poucos dias. Com o tecido canceroso de Henrietta foi diferente. Enquanto houvesse alimento as células se multiplicavam desenfreadas. O sucesso fez Gey enviar amostras a centenas de médicos para saber se o cultivo prosseguiria. Só uma morreu.


Enquanto Gey ganhava fama, Henrietta foi submetida a radioterapia e mandada para casa. As dores voltaram. Em setembro, ela foi internada com metástase. O câncer era tão agressivo que a cavidade abdominal estava tomada por tumores do tamanho de bolas de tênis. Doses maciças dos mais poderosos opiáceos não lhe poupavam da dor. Os tumores cresceram tanto que comprimiram e paralisaram os rins. Henrietta morreu em 4 de outubro de septicemia, o envenenamento do sangue. Na autópsia, os Geys retiraram várias amostras de tecido. Ao tentar cultivá-las, nenhuma prosperou.

George Gey jamais revelou o nome da “doadora”. Alegava proteger sua identidade. O nome de Henrietta foi revelado por Margaret após a morte do marido, em 1973. A comunidade médica tratou de procurar sua família para coletar sangue e saber por que as células HeLa eram tão especiais. Foi assim, 22 anos depois da morte da mãe, que os filhos de Henrietta souberam que suas células haviam sido retiradas sem autorização, continuavam vivas e moviam uma indústria de bilhões de dólares – dos quais nunca viram um tostão. Eles viviam na miséria. Não tinham como pagar um plano de saúde. Nenhum dos médicos que correram para coletar seu sangue se preocupou em ajudá-los. Ninguém voltou a procurá-los. Ninguém lhes deu satisfação. 


Em 1999, uma jovem jornalista de Seattle apareceu em Lacks Town. Rebecca Skloot queria contar a história de Henrietta. Foi recebida com frieza e desconfiança. Rebecca persistiu. Ainda assim, levou dez anos até ganhar a confiança da família. Só assim conseguiu revelar a triste história da família Lacks e homenagear uma mulher importantíssima para a ciência médica, de cujo nome ninguém tinha ouvido falar.


Publicado originalmente em Época, em 10/03/2011

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