No início era o musgo argentino... ou a ciência da enrolação

Como ignorar um dogma do jornalismo para escrever sobre as primeiras plantas, que viveram na Patagônia há 470 milhões de anos


Peter Moon


A história da vida na Terra sempre me fascinou. Aos 7 anos, em 1970, eu mal tinha aprendido a ler e já pedia aos meus pais para comprar nas bancas exemplares da revista Recreio, gibis do Tio Patinhas, e os fascículos das coleções Os bichos e O mundo em que vivemos. Cada fascículo trazia desenhos de animais curiosos e estranhos, como o ornitorrinco e o tubarão-baleia. Havia fotos em preto e branco de estrelas distantes, e ilustrações coloridas do interior incandescente da Terra. Quando completei as duas coleções, elas foram encadernadas. Os bichos tinha cinco volumes. O mundo em que vivemos apenas dois, mas em formato jornal, beeeem grande (quanto mais nas mãos de um menino). Ao lado dos álbuns do Asterix e do Tintin, aquelas foram as primeiras aquisições da minha futura biblioteca. As coleções completas de Asterix e Tintin continuam na estante, assim como os volumes de O mundo em que vivemos. Já Os bichos... não sei que fim levou. Em algum momento de estúpido desprendimento “aborrescente” resolvi que não precisava mais daquilo, que era infantil demais, sei lá. 


Pólen fóssil de 470 milhões de anos achado na Argentina


Perdão por esta digressão. No jargão jornalístico, todo o parágrafo acima é chamado de “nariz-de-cera”. Não sei de onde surgiu a expressão. Só sei o que significa: uma informação longa, inútil e completamente desnecessária, cuja leitura afasta o leitor da notícia que o texto deve transmitir. Apesar de eu concordar que o bom texto jornalístico deve chegar o mais rápido possível ao que interessa, qual seja a notícia, tanto para prender a atenção do leitor quanto por economia de tempo do leitor e de espaço de texto na página, confesso aqui e agora que eu ADORO escrever um bom nariz-de-cera. Não sei quantas vezes na carreira meus chefes me mandaram eliminar o tal nariz-de-cera e reescrever o início de uma reportagem. 
O bom de uma coluna como esta é que posso escrever um belo nariz-de-cera. Apesar de longo, está longe de ser desnecessário. Ao afastar o leitor da notícia, meu nariz-de-cera cumpre uma função. Os leitores que estiverem com pressa, forem impacientes ou ansiosos, peço a gentileza de descer até o final do texto, prosseguindo a leitura a partir do intertítulo “A notícia”. A todos os demais, dotados do devido interesse e calculada paciência, queiram me acompanhar ao... 


Segundo nariz-de-cera


Lembrar dos fascículos científicos que colecionava na infância serviu para que percebesse o quanto o nosso conhecimento da vida e do universo mudou nestes 40 anos. Dou aqui dois exemplos. Antes do lançamento em 1990 do telescópio espacial Hubble, o espaço era um lugar monocromático, um borrão de tinta nanquim borrifado de estrelinhas brancas. As lentes do Hubble colocaram na mão dos astrônomos uma paleta com 65 milhões de cores. Com elas, o Hubble revelou um universo incalculável de tons e matizes. 


Agora, o segundo exemplo. Em 1969, quando entrei na escola, o mundo ainda era cientificamente dividido em três reinos: o mineral, o vegetal e o animal – tal qual o grande biólogo sueco Lineu (1707-1778) havia proposto no século XVIII. Nos anos 1980, quando estava na universidade, fiquei surpreso ao perceber que aquela divisão bicentenária tinha mudado. O reino mineral havia desaparecido e a vida passara a ser dividida em cinco reinos: plantas, fungos, animais, microorganismos sem núcleo celular organizado (as bactérias), e microorganismos com núcleo celular organizado (protozoários e algas).
Em 2011, os reinos voltaram a ser três. Dois deles são inteiramente compostos por micróbios sem núcleo celular. Há o reino das bactérias (como um lactobacilo) e o reino das arqueobactérias, organismos unicelulares primitivos que vivem nas fontes hidrotermais no solo oceânico. O terceiro reino é o Eucariota, o das células organizadas, que engloba todas as demais formas de vida: protozoários, algas, plantas, fungos e animais (entre os quais nós, o Homo sapiens). 


A vida surgiu na Terra a 4 bilhões de anos. Todas as estimadas 100 milhões de espécies viventes (e sabem-se lá quantas extintas?) que compõem os três reinos da vida evoluíram de um último ancestral universal comum, como Darwin nos ensinou em A origem das espécies (1859). Aquele remoto ancestral universal foi a semente da árvore da vida, que cresce e se espraia desde então. A imagem clássica de uma árvore seria hoje melhor traduzida na forma de um intrincado arbusto, como aqueles espinhentos, que crescem no Cerrado brasileiro, e começam a se ramificar logo que brotam do solo. Os três primeiros ramos são os três reinos da vida - e são muito antigos. 


Agora, falando do reino Eucariota, não é curioso perceber que o homem é mais parecido com os protozoários, orquídeas ou cogumelos do que com todas as bactérias? Mais curioso ainda é notar que o champignon (um fungo) do estrogonofe é mais aparentado conosco do que qualquer planta. Neste ponto, alguns leitores podem sentir desconforto com esta revelação. Alguns podem até sentir consternação. A verdade surpreende. Os fungos podem parecer plantas, mas são primos em primeiro grau dos animais. A mim, tal revelação causa deslumbramento. E a você? 


Saber que fungos e animais são quase irmãos significa que fungos, como os animais, não fazem fotossíntese, logo dependem das plantas verdes para sobreviver. Nos oceanos, onde a vida ficou confinada por 3,5 bilhões de anos, algas microscópicas formam a base da cadeia alimentar. Por 3,5 bilhões de anos, através da fotossíntese, as plantas energizadas pela luz solar foram absorvendo gás carbônico da atmosfera (que originalmente era letal, sem oxigênio) e água do mar para produzir matéria orgânica e liberar oxigênio. 


Enquanto a matéria orgânica vegetal servia de alimento para fungos e animais marinhos, o oxigênio acumulava na atmosfera. Faz 550 milhões de anos, o trabalho de formiguinha das algas unicelulares resultou numa atmosfera rica em oxigênio. Mais importante, o excesso de oxigênio propiciou, em grandes altitudes, o fechamento da camada de ozônio (gás formado por três átomos de oxigênio). Quando isto aconteceu, os continentes ficaram livres do banho letal de radiação ultra-violeta, barrada pelo ozônio estratosférico. 


Os raios UV fragmentam a cadeia de DNA, e são letais à vida. Mas não penetram na água, daí os oceanos terem sido um porto seguro à vida por bilhões de anos. Com a barreira da camada de ozônio, a terra firme, até então um deserto desolado sem vida, pode enfim florescer. 


A notícia


Musgo da espécie Lunularia cruciata, um parente distante das
primeiras plantas terrestres da Patagônia
A primeira invasão terrestre da vida ocorreu entre 473 e 471 milhões de anos. Esta é a idade das amostras de pólen fossilizado mais antigas que se conhece. O pólen pertenceu a musgos (ou plantas briófitas) que cresceram na Patagônia argentina. Os pólens patagônicos são 15 milhões de anos anteriores aos esporos vegetais mais antigos até então conhecidos. Eles têm 461 milhões de anos e foram achados na Arábia Saudita e na República Tcheca. 


A descoberta foi anunciada em meados de outubro pela paleobotânica Claudia Rubinstein, do Instituto Argentino de Nivologia, Glaciologia e Ciências Ambientais, de Mendoza. O estudo Early Middle Ordovician evidence for land plants in Argentina (eastern Gondwana) saiu publicado na revista científica New Phytologist


De uma hora para a outra, em outubro passado, a Patagônia argentina passou a ser o berço da vida nos continentes. O detalhe é que a 470 milhões de anos só havia um supercontinente: Pangea. Naquela época como hoje, as regiões dos atuais Argentina e Brasil já se encontravam unidas. Vale dizer que o Brasil também pode (e deve) ter sido o berço da vida fora dos mares. Para prová-lo, os paleobotânicos brasileiros precisam agora encontrar aqui amostras de pólen fóssil tão ou mais antigas.

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