A anatomia de uma morte estúpida

Onde os homens conquistam a glória conta a história de um astro em ascensão no futebol americano que morreu na guerra do Afeganistão


Peter Moon


Em 2004, Krakauer foi ao Afeganistão investigar a morte de Tillman.

A vida do jornalista Jon Krakauer mudou em maio de 1996. Montanhista, ele escrevia sobre esportes radicais para a revista Outside. Estava no acampamento-base do Monte Everest, no Nepal, onde várias equipes se preparavam para atingir o cume. Uma equipe foi pega por uma tempestade. Oito montanhistas morreram congelados. Entre os sobreviventes, dedos e membros foram amputados. Krakauer foi testemunha da maior tragédia da história do Everest. Descreveu-a no fascinante best-seller No ar rarefeito (1997). Naquela ocasião, ele já trilhava o filão literário dos livros reportagens que investigam a vida e as circunstâncias da morte de personagens inusitados. Seus personagens são todos “gente de bem”, cuja vida é movida por sonhos e ideias. Tudo parece ir muito bem, até o momento em que algo vai mal – graças a uma opção errada ou ao destino.


Foi assim com o americano Chris McCandless, um jovem que abandona a civilização de consumo em 1990 para vagar como mochileiro pela América a caminho de um Alasca idílico e selvagem. Lá chegando, ele aprende da pior forma possível que a natureza pode ser selvagem, mas jamais idílica. Em Na natureza selvagem (1996), Krakauer retraça o périplo de McCandless até sua morte acidental por envenenamento num ônibus abandonado no meio do nada.


Em seu novo livro, Onde os homens conquistam a glória – a odisséia de um soldado americano no Iraque e no Afeganistão (Companhia das Letras, 408 páginas, R$ 55), Krakauer, hoje com 56 anos, dirige seu olhar crítico para os conflitos no Iraque e no Afeganistão. Para discutir a falta de sentido e a perda inútil de vidas inerentes a qualquer guerra, Krakauer foi ao Afeganistão em 2004. Seu objetivo era investigar as circunstâncias que culminaram com a morte do “herói de guerra” Pat Tillman, um astro em ascensão no futebol americano.


Em 2002, Tillman surpreendeu a namorada, a família, os amigos, os fãs e a imprensa ao trocar uma carreira promissora e milionária nos campos esportivos por uma profissão arriscada, mal paga e de curta duração nos campos de batalha. Tillman alistou-se no Exército e participou da invasão do Iraque, em 2003. “Eu queria cumprir meu dever patriótico, assim como meu pai e meu avô fizeram”, escreveu em seu diário, como soldado do 2o Batalhão Ranger.


Se a pacificação do Iraque nunca foi tarefa fácil nem segura, nada se comparava à terra arrasada, ao calor insuportável e às escaramuças sanguinárias dos guerrilheiros talebans, o cenário com que Tillman se deparou em 2004, quando seu batalhão foi deslocado para o Afeganistão.


Tillman largou a carreira no futebol americano para lutar no Afeganistão. Morreu vítima de “fogo amigo”, em 2004.


Tillman tinha 27 anos. Desde os tempos de escola, era um garoto determinado. Quando cismava com algo, submetia-se a grandes sacrifícios, pelo tempo que fosse necessário, para alcançar seu objetivo. Essa determinação fez dele um líder nos campos esportivos. O mesmo espírito levou-o à liderança de um esquadrão em seu pelotão Ranger. Tillman se preocupava com a segurança e o moral dos companheiros. Nunca fugia ao perigo na hora de proteger ou resgatar um deles. Agia como um homem sem medo – ou melhor, agia como se não tivesse tempo para sentir medo. Sua determinação, seus valores morais e seu tremendo vigor físico faziam com que corresse como uma locomotiva desgovernada. Tillman era tão rápido que as balas traçantes disparadas pelos fuzis Kalashnikov AK-47 dos talebans pipocavam a poucos metros de seus calcanhares.


Os olhos dos inimigos não conseguiam acompanhar a movimentação veloz do ex-jogador de futebol. O mesmo não ocorreu com a mira dos M-16 empunhados por seus companheiros. Em 22 de abril de 2004, ao disparar colina acima para dar proteção a um comboio americano emboscado pelos talebans, Tillman foi confundido com o inimigo. Três soldados americanos descarregaram três pentes de três fuzis na direção daquele vulto no alto da colina. Tillman morreu na hora.


Sua morte chocou os Estados Unidos. Ele foi a primeira personalidade conhecida a morrer no Afeganistão. Seu corpo foi trazido de volta aos Estados Unidos e enterrado com honras militares. Tillman era um herói morto pelo inimigo. Para o governo Bush e seus falcões dentro e fora do Pentágono, a vida desperdiçada daquele jovem californiano simbolizava os sacrifícios que a nação deveria suportar na guerra contra o terror. A verdade sobre a morte por “fogo amigo” foi escamoteada. O governo mentiu. O Exército mentiu. E os companheiros de Tillman foram obrigados a se calar. Mas a história cheirava mal. Tinha cara de uma farsa mal contada. Krakauer foi ao Afeganistão e descobriu a verdade. Ela foi revelada em 2009, nas páginas deste livro. 


Publicado originalmente em Época, em 24/03/2011.

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