No tempo dos pântanos continentais

Por que a evolução da madeira fez surgir insetos gigantes?

PETER MOON


Florestas são sinônimo de natureza, biodiversidade, vida selvagem, muitas árvores e madeira, muita madeira. Nem sempre foi assim. Há 475 milhões de anos, as primeiras plantas vindas do mar invadiram os até então estéreis continentes. As plantas terrestres mais antigas eram musgos. Foram descobertas em 2010, aqui do lado, na Patagônia argentina (leia No início era o musgo argentino...). Nas dezenas de milhões de anos seguintes, os continentes foram pintados de verde. As florestas daquele tempo longínquo eram formadas por samambaias do tamanho de árvores e por plantas herbáceas, ou ervas, geralmente rasteiras e de caule macio e maleável, em nada comparável aos resistentes troncos lenhosos da florestas que conhecemos. Era um mundo intensamente verde, onde ainda havia espaço para fungos do tamanho de árvores. Foi quando os primeiros insetos migraram do mar para viver naquelas florestas primevas. Ainda não havia animais vertebrados nem flores. Foi aí que surgiu a madeira. 

Pesquisadores belgas e franceses publicaram na semana passada na revista Science um estudo revelando dois fósseis de madeira fossilizada, um achado na França com 407 milhões de anos, e o outro do Canadá com 397 milhões de anos, ambos no período devoniano. Até então a madeira mais antiga tinha 385 milhões de anos. Essa diferença de idades pode parecer pequena, e do ponto de vista geológico é, mas usei esta notícia como um “gancho”, como se diz no jargão jornalístico, para escrever sobre a evolução da madeira e as consequências surpreendentes que o advento das plantas lenhosas teve sobre a vida na Terra.

O oxigênio do ar que respiramos foi produzido por algas microscópicas em oceanos antigos ao longo de bilhões de anos. Foi o trabalho de formiguinha das algas que fez a concentração de gás carbônico na atmosfera, que as plantas consomem na fotossíntese, cair de um percentual altíssimo para algumas partes por milhão. A atmosfera atual é 21% oxigênio e quase todo o resto nitrogênio. Quando as primeiras plantas e insetos migraram do mar aos continentes, acredita-se que a concentração de oxigênio era semelhante à atual. 


Libélula-gigante de 60 cm, que viveu no período
carbonífero há 300 milhões de anos.
Nem sempre foi assim. Nestes 500 milhões de anos, a concentração de oxigênio flutuou bastante. Por vezes ela caiu a menos de 15%, asfixiando inúmeras formas de vida como ocorreu no período triássico, entre 250 e 200 milhões de anos atrás. Noutras vezes, como há 300 milhões de anos no período carbonífero, a concentração de oxigênio subiu até 30%, o que permitiu a evolução de insetos gigantes como libélulas de 60 cm (as meganeuras), centopeias de 3 metros (as arthropleuras) e mega-baratas de 60 cm. Os insetos nunca foram tão grandes como naquela época, e só puderam se agigantar dada a abundância de oxigênio. Mas por que o percentual de oxigênio subiu a 30%? A resposta está na madeira.

Vá a um parque ou olhe um jardim. Sob a folhagem e a grama vai ver acima do solo folhas mortas em decomposição. Vai ver também galhos, ramos ou troncos de madeira, que perderam as folhas, secaram, mas continuam lá, resistindo ao sol e à chuva. Madeira leva muito tempo para decompor. As células das árvores lenhosas possuam em suas paredes lenhina, uma molécula que lhes confere rigidez. Trilhões de células com lenhina formam os troncos que podem sustentar árvores enormes de 50 metros ou mais. A lenhina torna os troncos resistente à mordida de quase qualquer animal. Então, quando se diz que a madeira surgiu há pelo menos 407 milhões de anos é o mesmo que dizer que a molécula de lenhina evoluiu há pelo menos 407 milhões de anos. Quais foram as consequências? 

Volte ao jardim e observe galhos e troncos. Para que eles apodreçam e sua matéria retorne ao solo, não basta a ação do sol e da chuva. Além dos cupins, é comum ver colônias de fungos das mais diversas formas e cores crescendo em madeira morta. São fungos especializados em consumir madeira, em desmontar moléculas de lenhina. Ainda hoje o processo é lento. Num país tropical como o Brasil um tronco leva vários anos até ser totalmente consumido e desaparecer. Num país temperado, como a Argentina, especialmente na Patagônia, onde o inverno é severo e a atividade biológica quase cessa nos meses de neve, a decomposição da madeira leva décadas. Em Ushuaia, na Terra do Fogo, vi tocos de troncos cortados pelos prisioneiros de uma antiga penitenciária fechada há 50 anos?!? Os tocos estão lá, mortos, fincados no solo, com se a árvore tivesse sido derrubada no ano passado. Se mesmo hoje, 400 milhões de anos após a evolução da madeira, os fungos e a força dos elementos ainda precisam de anos ou décadas para decompor madeira, como teria sido quando a lenhina surgiu? 

O período devoniano durou de 416 milhões até 359 milhões de anos. Deu lugar ao carbonífero. Como seu nome indica, o carbonífero é assim chamado por causa das imensas reservas de carvão formadas naquele tempo e exploradas hoje. No carbonífero, graças à evolução das árvores lenhosas, as florestas atingiram uma exuberância inimaginável. Não eram florestas, mas pântanos continentais. E por que pântanos? Por causa da lenhina. Se ainda hoje, tanto tempo depois, madeira pode levar décadas para decompor, no carbonífero a madeira não apodrecia. Não havia bactérias, cupins nem fungos especializados em consumir lenhina. Eles ainda não haviam evoluído.


Fóssil de uma barata-gigante de 60 cm,
de 300 milhões de anos.
As árvores iam morrendo e tombando, umas sobre as outras, formando um emaranhado que represava a água dos rios e da chuva, retendo sedimento, cascalho, terra e areia. O resultado eram pântanos onde a madeira morta submergia e, com o acúmulo de sedimento, era enterrada. Imagine o mesmo processo ocorrendo ao longo de milhões de anos em todos os continentes. Toda essa madeira enterrada que um dia viraria carvão de pedra era, do ponto de vista químico, carbono sequestrado da atmosfera e enterrado. As florestas continuaram consumindo o gás carbônico atmosférico na fotossíntese e transpirando oxigênio para a atmosfera. Como a madeira não apodrecia, o carbono aprisionado nas células de celulose não tinha como retornar à atmosfera, através da queima da madeira ou sua digestão por animais, plantas e fungos. Logo, o oxigênio foi acumulando até sua concentração bater nos 30%. 

Foi quando os insetos, animais invertebrados que respiram pela “pele”, tiveram oxigênio em abundância para fermentar sua receita de bolo e crescer em proporções nunca vistas. Tudo isso eu aprendi num livro absolutamente espetacular, eleito pela Sociedade Real de Ciências britânica como o melhor livro de divulgação científica publicado em língua inglesa em 2010. Trata-se de Life ascending - The ten great inventions of evolution (Norton, US$ 26,95, 344 páginas), do bioquímico Nick Lane, do University College de Londres. Desde que li esse livro, decidi devorar toda a obra de Lane. 

Referências:

Gerrienne, P., P.G. Gensel, C. Strullu-Derrien, H. Lardeux, P. Steemans, & C. Prestianni. 2011. A Simple Type of Wood in Two Early Devonian Plants. Science 333(6044):837.

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