A evolução natural da vida é a morte

Essa frase é óbvia. Suas implicações nem tanto. Por que, afinal, a evolução fez a vida “inventar” a morte?

PETER MOON

Esta frase é óbvia. É um clichê. Será mesmo? “A evolução natural da vida é a morte” é uma frase concisa e perfeita. Intuitivamente ela é perfeita, pois sabemos que a morte é o definidor último da condição humana. No longo prazo estaremos todos mortos, não é mesmo? Filosoficamente, a frase é igualmente perfeita, pois sua lógica é de uma circularidade brilhante. A vida termina na morte, para da morte surgir a vida. Espiritualmente a frase também é perfeita, pois dá a esperança da vida eterna àqueles que não conseguem suportar a ideia que do pó viemos e ao pó retornaremos, literalmente. Resta definir o que seria este tal “pó”. É aqui que entra a sua beleza científica. Este é o sentido que mais me interessa. Por que, afinal, a evolução fez a vida “inventar” a morte? Esta questão não é desprovida de sentido. Pelo contrário, sua profundidade é tamanha que sua solução, no dia em que for encontrada, será capaz de responder a todas aquelas questões físicas e metafísicas.

Por que, afinal, a vida na Terra foi adaptada para morrer? Imagine as primeiras bactérias pululando no oceano primordial. Se elas surgiram nas fontes hidrotermais das profundezas abissais ou em alguma outra circunstância, isso não vem ao caso. O que interessa é o seguinte: uma vez que a evolução aperfeiçoou os processos físico-químicos que sustentam o metabolismo das bactérias, como a sua divisão, alimentação, movimento e reprodução, por que elas tinham que morrer? A morte é uma certeza para todas as formas de vida, mas não precisaria ser assim. Há mais de 3 bilhões de anos, naqueles oceanos primordiais fervilhando de vida, alguma bactéria poderia ter sofrido mutações em seus genes, mutações que lhe permitissem continuar reciclando indefinidamente os seus órgãos internos e externos.

O segredo da vida eterna

Um exemplo. Caso tal bactéria flutuasse muito próxima à superfície, poderia ser exposta à radiação ultra-violeta, ter o seu DNA danificado e morrer. Naquela época, dada a ausência de uma atmosfera rica em oxigênio - e por consequência a ausência de uma camada de ozônio capaz de barrar aquela radiação emitida pelo sol - os raios UV atravessavam a atmosfera esterilizando o ar e os continentes, sendo barrados apenas pela água do mar. Uma bactéria dotada de mutações capazes de proteger o seu material genético da ação devastadora dos raios UV teria uma enorme vantagem adaptativa sobre todas as outras trilhões de trilhões de trilhões bactérias flutuantes. Com o passar das eras, a linhagem iniciada por aquela bactéria poderia proliferar e tomar conta do meio ambiente, monopolizando o acesso às fontes de nutrientes e extinguindo todas as suas concorrentes. 

Imaginando um pouco mais longe, uma forma de vida resistente aos raios UV poderia somar esta característica a muitas outras mutações, como a reciclagem de moléculas danificadas da parede celular e dos seus órgãos internos, de modo a continuar sempre jovem - e viver indefinidamente. Seria a receita para a vida eterna. Em princípio, seria possível. Não há nenhuma lei biológica que obrigue a vida a desembocar na morte. Na prática, não foi o que aconteceu.

Até hoje, 4 bilhões de anos após a evolução da vida na Terra, não existe nenhuma célula de nenhuma forma de vida capaz de proteger o seu DNA da inalienável fragmentação - e morte - quando exposto diretamente aos raios ultra-violetas. E 4 bilhões de anos foi tempo mais do que suficiente para ter surgido tal mutação “anti-UV”, ou qualquer outra que levasse à reciclagem eterna da bactéria. Se não surgiu, ou surgiu e desapareceu, resta saber por que?

Da eternidade para o caos

A essência da vida está na transmissão dos genes para as gerações futuras. A transmissão pode acontecer através da divisão celular, como fazem as bactérias, ou graças ao sexo, como preferem as plantas, os fungos, os animais, o papai e a mamãe. A transmissão não é perfeita. No caso de um bebê, suas 3 bilhões de letras do código genético foram herdadas metade do pai e metade da mãe - descontadas as mutações. 

Por mais aperfeiçoada que seja a união dos genes dos pais para a geração de um novo ser vivo, o processo é tão intrincado e envolve uma quantidade tão vasta de letras (ou moléculas) que está longe de ser perfeito. Cada criança nasce com 3 milhões de mutações que são dela e somente dela, e estão ausentes das 3 bilhões de letras do código genético de cada um dos pais. A quase totalidade das mutações é inofensiva, ou desativada. Algumas poucas podem ser benéficas. Outras, não. Esta possibilidade está na essência da lógica por trás do mecanismo da seleção natural. As mutações benéficas conferem mais chances de sobrevivência ao seu portador. As maléficas podem encurtar a sua trajetória de vida. É daí que surgem novas espécies, e outras se extinguem.

Cada ser humano é formado por 100 trilhões de células. O interior de cada uma delas guarda uma cópia completa do genoma ou DNA. Ou seja, as 3 milhões de mutações exclusivas de cada um de nós estão multiplicadas 100 trilhões de vezes. Estaria tudo em ordem não fosse o fato de que nem todas as células são bem comportadas, ou melhor, elas não se comportam sempre da forma como deveriam. Vez por outra, alguma delas se rebela contra a ordem estabelecida e começa a se multiplicar de forma insana e devastadora. É o câncer, uma doença que aflige todos os seres pluricelulares, sejam eles plantas, peixes ou mamíferos.

A biologia acorrentada

Em princípio não há nenhuma lei biológica que obrigue a vida a desembocar na morte. Mas, num universo físico, as leis da física se sobrepõem às da biologia. Uma importantíssima é a Segunda Lei da Termodinâmica. Ela trata de um princípio universal básico, a entropia. Há inúmeras definições para a entropia. A minha predileta reza que tudo o que é simples tende, invariavelmente, a se tornar complexo. A organização sempre dá lugar à desorganização. Da ordem nasce o caos. Há que se concordar que, no meio de 100 trilhões de células, cada uma com 3 milhões de mutações, a margem de chances para brotar o caos é exponencial. É praticamente incontornável. 

Agora considere as trilhões de trilhões de trilhões de bactérias que infestam e infestavam os oceanos. Nesta sopa pululante e infecta, o caos tem ordens de magnitude de vantagem sobre a ordem perfeita das coisas para brotar e se proliferar, sabotando a vida eterna. A começar pelo fato de que, às bactérias, de nada interessa a eternidade. Elas evoluíram para se dividir, transmitindo seus genes, e morrer. Com os seres humanos é a mesma coisa. Na impossibilidade termodinâmica de conquistar a vida eterna, a segunda melhor alternativa foi a que escolhemos. Atingir a maturidade sexual, encontrar um companheiro ou companheira, ter filhos, criá-los, e viver até ver os netos nascerem, e ser agraciado com “a sensação da eternidade” que advém da “certeza de que plantamos nossa semente, ela vingou e começa a dar frutos”.

Esta frase eu ouvi em 1995 de meu pai, quando ele viu nascer minha filha Victoria, a sua primeira neta. Meu pai não é um intelectual nem um nerd como o filho. Mas é um sábio. Assim como a vida é sábia. A evolução fez a vida “inventar” a morte porque, entre a eternidade inatingível e a degeneração caótica, a melhor alternativa viável era a morte.

Tudo isso eu aprendi num livro espetacular, eleito pela Sociedade Real de Ciências britânica como o melhor livro de divulgação científica publicado em língua inglesa em 2010. Trata-se de Life ascending - The ten great inventions of evolution (Norton, US$ 26,95, 344 páginas), do bioquímico Nick Lane, do University College de Londres. 
É brilhante!

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