O dragão de Komodo e o tigre de bengala

O novo monstro brasileiro de Pangea e os 100 anos da deriva continental


PETER MOON

Há 100 anos, em 6 de janeiro de 1912, um meteorologista alemão apresentou na reunião anual da Sociedade Geológica Alemã uma hipótese absurda. Alfred Wegener propôs que a crosta terrestre não seria estática nem totalmente sólida. Ousou propor algo que ia contra todo e qualquer senso comum. Os continentes que sustentam cordilheiras, calotas geladas, deserto, lagos, florestas e a civilização, apesar de colossais, seriam maleáveis e móveis.
Não é preciso ser nenhum gênio para, ao observar o Mapa Mundi, perceber que a América do Sul e a África, não fosse os 4 mil quilômetros do Atlântico Sul que as separam, encaixariam uma na outra quase perfeitamente como peças de um quebra-cabeças planetário. Wegener investigou esta semelhança atentamente. Percebeu que, virando aqui e movendo ali, América do Sul, África, Antártida, índia e Austrália também se encaixariam, formando um antigo supercontinente.
Wegener resolveu estudar rochas coletadas nos dois lados do Atlântico. Percebeu que, em muitos casos, as rochas do litoral africano conservavam as mesmas espécies de moluscos marinhos fossilizados achadas em rochas do litoral brasileiro. Desde o século XVIII sabe-se que esta coincidência só poderia significar uma coisa. Antes da descoberta da radioatividade, o único meio para aferir a idade das rochas era através dos fósseis que elas aprisionam. Ora, quando rochas de continentes diferentes conservam fósseis semelhantes, elas são contemporâneas.
Foi esta contemporaneidade que Wegener descobriu nas rochas que sustentam o litoral brasileiro e os de Angola, da Namíbia e da África do Sul. Sem falar no fato de que muitas formações geológicas dos dois lados do Atlântico Sul eram formadas exatamente pelos mesmos tipos de rochas. Não fosse o oceano, elas poderiam se fundir numa só.
Há um século, foi o que Wegener propôs. Segundo a sua Teoria da Deriva Continental, os continentes se moveriam sobre a crosta terrestre ao longo das eras numa valsa perpétua. O que afastaria ou aproximaria os continentes seriam mudanças na geografia do leito oceânico. O responsável por estas mudanças seria o fluxo de rocha derretida no interior do planeta.

"Continentes ambulantes! Que bobagem absurda!"
...Exclamaram há um século os sumos-sacerdotes da geologia. Assim como o Igreja Católica combateu as heresias heliocêntricas de Copérnico e de Galileo, assim como a Igreja Anglicana ridicularizou a teoria da evolução de Darwin, da mesma forma, no início do século XX, os catedráticos da Europa e dos Estados Unidos se agarraram aos seus velhos dogmas e ridicularizaram Wegener.
Na defesa de sua teoria, Wegener chegou a propor que, no passado, todas as massas de terra teriam estado unidas em um único Urkontinent, um supercontinente que viria a ser conhecido como Pangea. A ideia não era original. Em meados do século XIX, o geólogo austríaco Eduard Suess identificou fósseis de uma antiga espécie de samambaia chamada glossopteris em rochas da América do Sul, da África e da Índia (estes últimos desenterrados na região de Gondwana, no centro do subcontinente indiano). Para explicar a existência dos fósseis de glossopteris em pontos tão distantes do planeta, Suess postulou a existência de antigas "pontes" que conectariam os continentes em priscas eras. À reunião dos antigos continentes austrais com suas pontes Suess deu o nome de Gondwanaland.
Assim como Suess em seu tempo, Wegener foi solenemente ignorado pelos seus pares empoleirados na academia.
Nos anos seguintes, Wegener deixou de lado a sua teoria da deriva continental e retornou ao seu foco principal de pesquisa, o estudo da atmosfera do Ártico. Realizou diversas expedições polares. Em 1930, aos 50 anos, antes de iniciar uma invernada no platô gelado da Groenlândia, perdeu-se numa nevasca e desapareceu. Seu corpo foi encontrado seis meses depois. Wegener morreu no anonimato, tal qual Gregor Mendel, o monge austríaco descobridor da genética, ou o pintor holandês Vincent van Gogh. O reconhecimento póstumo da genialidade dos três estava reservado para a posteridade.
Como se sabe, Wegener tinha a razão. A comprovação da teoria da deriva continental, hoje mais conhecida como teoria da tectônica de placas, só foi possível nos anos 1960 e 1970, com a descoberta do geomagnetismo. O geomagnetismo é uma propriedade das rochas. No momento em que a lava incandescente brota de fissuras no leito oceânico e resfria rapidamente em contato com a água gelada das profundezas abissais, ela solidifica preservando em suas moléculas uma "assinatura" magnética. Esta assinatura, ou melhor, esta orientação magnética, indica a direção onde o pólo magnético terrestre se encontrava no instante em que a rocha solidificou. O Pólo Norte Magnético, como seu nome indica, fica próximo ao Pólo Norte. Mas o pólo magnético não é fixo. Ele se move vários quilômetros por ano, e no passado, chegou a inverter de pólo inúmeras vezes, situando-se próximo ao Pólo Sul.
O antigo predador pampaphoneus ataca há 260 milhões de anos um pareiassauro herbívoro no que hoje é o Rio Grande do Sul autor: Voltaire Neto  (Foto: Foto: Reprodução)



É esta arqueologia do magnetismo terrestre que as rochas do leito oceânico conservam. Nos anos 1960, quando a marinha americana começou a usar batiscafos para mapear a topografia oceânica, tornando a navegação mais segura aos submarinos nucleares, um subproduto do trabalho foi a coleta e o estudo de rochas do meio do oceano Atlântico. Foi quando descobriu-se a idade das rochas da cordilheira transatlântica, a maior cadeia de montanhas do planeta, que se estende da Islândia até as ilhas Malvinas, Esquecidas cinco quilômetros abaixo das ondas, as rochas da cordilheira transatlântica eram novíssimas. Em termos geológicos, haviam acabado de se formar.
Os oceanógrafos também perceberam que, quão mais próximas das fendas submarinas no centro da cordilheira estavam as rochas do leito oceânico, mais jovens elas eram. Inversamente, quão mais distantes das fissuras e próximas dos continentes estavam elas, mais antigas eram. Assim provou-se que, de fato, oceanos e continentes não são imóveis. Eles estão assentados sobre duas dezenas de gigantescas placas tectônicas que sustentam a crosta terrestre e se encaixam como um quebra-cabeças. As regiões de contato entre as diversas placas são os pontos onde o magma subterrâneo vaza para sedimentar novas porções de leito oceânico, expandindo o oceano (como acontece na cordilheira transatlântica), ou aonde as placas se chocam e se destróem, como ocorre no oceano Pacífico diante do Chile, onde a placa oceânica penetra abaixo da placa da América do Sul, fazendo com que os Andes se elevem.
Ao usar métodos de datação radioativa, os geôlogos puderam estabelecer a idade destas rochas e saber em quais idades geológicas elas solidificaram. No caso do Atlântico Sul, ficou-se sabendo que há 100 milhões de anos não havia oceano. América do Sul e África encontravam-se coladas. Pertenciam a um antigo supercontinente austral, a hipotética Gondwana teorizada por Suess, que também abarcava a Antártida, a Austrália, Índia, Madagascar e a península arábica.
Wegener e Suess acertaram ao apontar a existência de uma antiga massa continental austral. Erraram nas razões para explicá-la. Nunca existiram pontes naturais interligando os continentes. Eram os continentes que estavam conectados formando Gondwana, no hemisfério sul, e a setentrional Laurentia, que amalgamava as Américas Central e do Norte à Eurásia.
Da mesma forma, os continentes não se moviam por obra do fluxo e refluxo do magma no centro da Terra. As responsáveis eram as placas tectônicas.

Um século de surpresas
A idéia da deriva continental tem apenas 100 anos. Ela foi provada nos anos 1970 e continua surpreendendo os cientistas. Em dezembro, uma nova evidência da dança continental foi encontrada, quando paleontólogos argentinos anunciaram ter achado na Antártida os primeiros fósseis de dinossauros saurópodes, os colossos quadrúpedes e pescoçudos que foram os maiores animais terrestres que existiram.
Fósseis de saurópodes têm sido achados em todos os continentes que formavam Gondwana. A exceção era a Antártida. Como no antigo continente a Austrália era separada da América do Sul pela Antártida, é razoável supor que os répteis gigantes achados na Argentina, para habitar a Austrália, também teriam vivido na Antártida, que 100 milhões de anos era muito mais quente que hoje.
A ciência funciona assim. Uma suposição razoável é uma hipótese a procura de comprovação. O achado de restos de saurópodes na Antártida é mais uma prova da existência do antigo continente meridional de Gondwana.
Gondwana e Laurentia se formaram a partir da cisão de Pangea, o supercontinente único que existiu entre 500 e 200 milhões de anos atrás. Se os geólogos têm uma boa ideia do formato de Gondwana e Laurentia, o mesmo não se aplica a Pangea. Ela é mais antiga. Sua geografia é mais antiga. O desenho dos continentes deformou muito desde então.
Por isso é tão importante a descoberta, anunciada esta semana, de um antigo réptil carnívoro que viveu no Rio Grande do Sul há 260 milhões de anos, no período Permiano. Trata-se doPampaphoneus biccai, um animal que viveu num tempo quando ainda não haviam dinossauros nem mamíferos. Eles ainda não haviam evoluído. No período Permiano, a biosfera terrestre eram tão rica e complexa como a atual, só que fundamentalmente diferente. A paisagem era dominada por répteis protomamíferos, nossos ancestrais longínquos. Havia também répteis ancestrais dos dinossauros, bem como tubarões de água doce e anfíbios gigantes como a maior salamandra que existiu, o prionossuco, um monstro de 9 metros que viveu no Maranhão há 270 milhões de anos.
Toda esta fauna maravilhosa vivia no centro da Pangea. Para redesenhar a geometria de Pangea, os paleontólogos e os geólogos recorrem muitas vezes aos fósseis escavados em diferentes regiões do mundo. O pampaphoneus vem assentar mais uma peça nesse enigma geológico.
"O Pampaphoneus biccai era uma mistura de um dragão de Komodo com um tigre de bengala", diz o paleontólogo salvadorenho Juan Carlos Cisneros, 38 anos, da Universidade Federal do Piauí, em Teresina. O pampaphoneus era um réptil dinocefálio. Era um carnívoro com cerca de 3 metros de comprimento. É o primeiro carnívoro do Permiano achado na América do Sul.
Como já se conheciam na África do Sul animais semelhantes ao pampaphoneus, era natural esperar que, cedo ou tarde, fossem achados fósseis parecidos no Brasil, pois o Rio Grande do Sul e a África do Sul estavam coladas no Permiano. O que não era de esperar seria descobrir que o pampaphoneus era muito mais parecido com uma espécie achada na Rússia, o titanophoneus, que tinha 7 metros.
Ora, na configuração mais em voga de como teria sido Pangea, a América do Sul e a Rússia ficam por demais distantes uma da outra para abrigar animais tão semelhantes, pondera Cisneros e seus colegas no estudo publicado na revista científica americana "Proceedings of the National Academy of Sciences".
Será que o desenho atual de Pangea está correto? Ou será que o achado do pampaphoneus indica a necessidade de repensar a posição relativa da Ásia e da América do Sul naquele antigo tabuleiro mundial?


Referências:
Cerda, I.A., A.P. Carabajal, L. Salgado, R.A. Coria, M.A. Reguero, C.P. Tambussi, & J.J. Moly. 2012. The first record of a sauropod dinosaur from Antarctica. Naturwissenschaften 99(1):83-87. 
Cisneros, J.C., F. Abdala, S. Atayman-Güven, B.S. Rubidge, A.M. Celâl Sxengör, & C.L. Schultz. 2012. Carnivorous dinocephalian from the Middle Permian of Brazil and tetrapod dispersal in Pangaea. Proceedings of the National Academy of Sciences. doi:10.1073/pnas.1115975109
Wegener, A. 1912. Die Herausbildung der Grossformen der Erdrinde (Kontinente und Ozeane), auf geophysikalischer Grundlage. Petermanns Geographische Mitteilungen 63:185-195, 253-256, 305-309.
Wegener, A. 1912. Die Entstehung der Kontinente. Geologische Rundschau 3(4):276-292.

Comentários