O dia em que eu fui parar no mundo da Lua

Ou, memórias de um terráqueo abduzido por selenitas

PETER MOON

A Terra fotografada da Lua pelos astronautas da Apollo 11, em 1969.
Em 1969, eu tinha seis anos e morava no Brooklin, um bairro de classe média na zona sul de São Paulo. Era uma região residencial, arborizada e sem nenhum prédio. Meu mundo era formado por um pequeno quadrilátero com meia dúzia de quadras no entorno da Rua Guararapes, onde ficava aquela vilinha com apenas dois sobrados, um dos quais era o meu.

Na São Paulo dos anos 1960, o espaço para brincar era a rua. Era lá que andávamos de bicicleta, disputávamos partidas de taco, empinávamos pipa, derrapávamos carrinhos de rolimã, botávamos fogo em lesma e incendiávamos terrenos baldios. Aos seis anos, eu tinha uma noção bastante precisa do que era perto e longe. Perto era a calçada na frente de casa. Longe era o mercadinho a três quarteirões de distância. Era um ponto de peregrinação diária. Ia a pé comprar chicletes Ping Pong de tutti frutti (mas não de hortelã, eca!), drops Dulcora, caramelos de leite e tomar guaraná caçulinha. Do lado do mercado ficava a banca de jornais, outra fonte inesgotável de diversão, com seus gibis e álbuns de figurinhas.

Além daquele quadrilátero só existia o clube e as casas dos avós (eu só entraria na escola no ano seguinte), aonde só se chegava a bordo do possante Fusca 67 do meu pai. Ele cruzava ruas e avenidas deixando para trás Gordines, DKWs e aqueles triciclos ridículos com formato de ovo chamados Romisettas. Só os Simca Chambords como os do tenente Carlos, o vigilante rodoviário, davam mais trabalho.

Ah, claro, havia a televisão. Ela era a porta para um outro mundo, um mundo em preto e branco e cheio de chuviscos. A gente perdia um tempo danado mexendo na antena toda vez que mudava de canal. Quando alguém decidiu que enfiar uma palha de aço na antena aparentemente era a solução, palhas de aço migraram da pia das cozinhas para as salas de estar de todo o Brasil. O mundo era diferente, e mais divertido.

Ajustar a imagem do televisor dava um trabalhão, mas valia a pena. Lá estavam os meus heróis de Jornada nas Estrelas, “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”. Lá vivia o National Kid, o primeiro super-herói japonês, sempre em luta contra os incas venusianos (Auika!) e os monstros abissais – dos quais eu morria de medo. Eu assistia muito desenho animado, mas gostava mesmo era das séries espaciais (em 1995, entendi perfeitamente a frustração do xerife Woody ao ser trocado pelo patrulheiro espacial Buzz Lightyear. Eu teria feito o mesmo). A corrida espacial estava no ar, ou melhor, nas ondas de tevê, nas capas de revista e manchetes dos jornais. Em julho de 1969 havia uma coisa muito importante acontecendo que eu não sabia bem o que era. Os adultos só falavam disso. Todo mundo só falava disso. O homem iria pousar na Lua.

O pouso que ninguém viu

O primeiro passo de Armstrong na Lua, televisionado e com chuviscos
Pra mim aquilo não era grande coisa. A gente via a Lua quase toda a noite, bastava olhar para o céu, ué? Quando estava cheia, não parecia distante, mas próxima. “Se eu construísse um elevador bem grande, também chegaria lá”, era a lógica de um menino de seis anos cujo universo estava circunscrito a uma meia dúzia de quadras. Era a lógica das crianças da minha geração. E aquela lógica tinha dia e hora para acabar: 20 de julho de 1969, às 16h17, horário de Brasília.

Parecia final de copa do mundo (esta comparação eu só pude estabelecer um ano depois, em 1970, quando, se não o mundo, pelo menos o Brasil parou). Ninguém tirava o olho da televisão, naquela que seria a primeira transmissão ao vivo para todo o planeta. A transmissão era uma beleza. Chuvisco que não acabava mais. O módulo lunar Eagle havia se desgarrado fazia um tempão da nave Apollo 11, em órbita da Lua, mas pousar que era bom, nada. Só chuvisco.

Os adultos pareciam apreensivos, comentavam que os astronautas Neil Armstrong e “Buzz” Aldrin corriam risco de se esborrachar na Lua, “caso os retrofoguetes não conseguissem frear a queda vertiginosa do módulo lunar, durante a sua descida desenfreada em direção à superfície,” quase imagino a frase pronunciada pela voz empolada e onipresente de Heron Domingues, o Repórter Esso.

“Se esborrachar na Lua... Opa, agora ficou legal”, pensei. Apesar dos chuviscos e do fato de eu não estar entendendo nada do que estava se passando naquela telinha em preto e branco de 14 polegadas, a perspectiva de presenciar ao vivo os astronautas se esborrachando na Lua parecia imperdível. Colei o olho no televisor. Mas nada de pouso. Só chuvisco.

Aquela espera insuportável chegou ao fim quando a câmera no módulo lunar começou a exibir imagens do mar da Tranqüilidade, a região da Lua escolhida para o pouso. Era uma superfície desolada que se aproximava rapidamente. Entre chuviscos e a estática na voz dos locutores, a superfície foi ficando mais próxima, mais próxima, mais próxima (“Vão se esborrachar! Vão se esborrachar!”), até que o pouso aconteceu - e ninguém viu.

É verdade, ninguém viu. O módulo levantou tamanha nuvem de poeira que a telinha ficou branca. Demorou outra eternidade até a poeira baixar. Neste momento, em meio à estática, ouviu-se a voz de Armstrong, o comandante da Apollo 11: “Houston, Tranquility Base here. The Eagle has landed”.

Depois de outra eternidade de espera (“pô, ninguém morreu...”), a porta do módulo se abriu. Armstrong começou a descer com dificuldade uma escadinha. Sua roupa era um trambolho. Nem olhar pra baixo ele podia? Mas foi assim mesmo, um pé depois do outro, e não sem antes dar uma escorregadela inesquecível no penúltimo degrau, que ele pulou no vazio e pisou na Lua.

O dia em que tudo mudou

Armstrong na Lua
Quando a Águia pousou, meu mundo se transformou. Não foi naquela tarde nem de uma hora para a outra. Mas a mudança se deu, inexorável. Meu mundo deixou de ser a minha rua, aquele quadrilátero circunscrito pelo mercadinho e a banca de jornais. DKWs e Romisettas perderam seu encanto. Faço parte da primeira geração de humanos cujo universo infantil deu lugar ao maior de todos, sem escalas intermediárias. Num dia, eu morava na Rua Guararapes e brigava com a minha irmã. No dia seguinte, continuava brigando com ela, só que agora na superfície de um planeta chamado Terra, que tem como satélite a Lua e gira em torno do Sol.

As identidades de brasileiro, latino-americano e ocidental vieram dentro do pacote. Não foram apreendidas, compreendidas, questionadas, mastigadas e deglutidas uma a uma, e no devido tempo. Eu era uma criança de bairro. Virei um menino imerso no universo. E adoro. Faz parte de mim. Nunca houve espanto, desconforto, desconfiança ou descrédito. Minha inserção na Via Láctea foi um parto natural indolor.

Desde então, sonho com viagens interestelares mais rápidas que a luz a planetas muito além da imaginação. Imagino contatos imediatos do terceiro grau com seres amistosos esverdeados e de orelhas pontudas (moças alienígenas charmosas também seriam bem-vindas). Não são marcianos nem selenitas, os seres “lunáticos”. Levam mais o jeitão do vulcaniano Dr. Spock.

Em 20 de julho de 1969, mesmo de forma inconsciente, resolvi abraçar a ciência em minha vida. Acho que naquele dia o jornalista que escreve essa coluna começou a ser engendrado. Desde então, desejo viver num futuro que ainda parece muito distante. Desde então, eu vivo no mundo da Lua.

Texto publicado em 04/06/2010 na coluna No mundo da Lua, no site ÉPOCA Online

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