“Não sei se isso é verdade,
escrevo o que se fala,
mas tudo é possível.”
História, Heródoto (485?-420 a.C.)
Advertência
Dirijo minhas palavras a todos aqueles - e só aqueles - que delas privam o direito da escuta. Cerrem, portanto, as portas a todos os não-iniciados. Tapem-lhes os ouvidos, sem exceções. Mas você, entretanto, que venera os Deuses segundo o lugar que lhes é de direito, que respeita as palavras e a honra dos nobres heróis e dos gênios subterrâneos, empresta-me agora toda a sua atenção, pois das investigações e dos relatos prodigiosos de Teléfanes de Fócaia (1, 2) apresentados aqui não se pode - nem se deve - levantar a menor acusação de injúria aos Deuses, à coragem e à determinação dos helenos, ou de um leviano menosprezo ao poderio do Bárbaro.
Poder-se-ia, outrossim, acusar o narrador pelos longos anos de silêncio frente à importância dos fatos aqui narrados. Contra isto, entenda-se: um segredo por mais importante que seja não deve nunca morrer junto com as entranhas do seu possuidor. Deve na verdade, e dependendo dos mistérios e dos perigos que encerra, ser preservado oculto das vistas dos homens. Pelo menos até o dia em que um iniciado possa dele fazer o devido uso. Até lá, silencia-se. E do nosso segredo, tenha certeza, apenas os Imortais compartilharão.
Capítulo I
Lade, uma ilhota em frente à cidade de Míletos. Trezentas e cinqüenta trirremes. Sob o comando de Dionísios (3), a esquadra iônia preparava-se para a guerra. Nos últimos dias, milhares de homens exercitavam-se nas artes da luta no mar. E se queixavam amargamente. Isto porque em sua imensa maioria jamais haviam tripulado qualquer tipo de embarcação bélica. Eram homens livres que deixaram suas casas atendendo ao chamado para combater as forças do Bárbaro (4). Eram em sua maioria homens despreparados para o adestramento árduo que se seguiria. Daí às primeiras queixas, foi um passo. Sob a alegação de “não serem atenienses muito menos lacedemônios (5)”, os remadores reclamavam do tratamento ímpio dado pelos pilotos, ao passo que estes últimos reclamavam da falta de respostas rápidas dos remadores às suas ordens.
Nem os comandantes se entendiam. Oriundos de diversos povos, discutiam as táticas de guerra a ser empregadas, discutiam as alternativas da formação da esquadra no combate e não entravam em acordo sobre a posição que cada um deveria defender durante o combate: se à esquerda ou à direita, na vanguarda ou retaguarda. Cada general procurava insistentemente fazer prevalecer o seu ponto de vista. O resultado foi o surgimento de boatos sobre tratados de paz que cada um deles teria firmado em separado com delegações persas. Delegações, aliás, que ninguém jamais viu. Aconteciam também fugas frequentesde escravos e hoplitas (6), muitas vezes frustradas, e que terminavam com a execução do fugitivo.
Cada um destes pequenos acontecimentos, destes entreveros e inquietações, traduzia o sensível aumento da tensão na tropa. Enquanto existissem apenas incertezas, esta situação prosseguiria.
Mas, como era de esperar, um dia a incerteza teria de cessar. Com a chegada de novas informações provenientes da costa, foi o que de fato aconteceu. Os mensageiros davam conta de que, já na noite anterior, as forças terrestres do Bárbaro se aproximavam em marcha acelerada das muralhas de Míletos. Quanto às suas forças navais – e seria contra elas que combateríamos - estas se encontravam fundeadas ao largo e prontas para o ataque.
O dia amanheceu encoberto por uma espessa bruma leitosa impedindo que divisássemos nossas próprias naus e as do inimigo. Não se via nenhum trecho de céu. Apenas inalava-se odores marinhos, sentia-se a brisa na pele e a umidade fria da manhã. Escutava-se também os sons dos homens e da natureza. O marulho das águas vindo de encontro ao casco. As lamentações das aves marinhas que planavam sobre a neblina à procura de um trecho visível de mar e alimento. O bocejar e as imprecações dos tripulantes, alguns ainda sonolentos, outros já vigilantes, aguardando a seqüência dos acontecimentos. Ah, sim, ouvia-se naturalmente os peãs (7), entoados pelos sacerdotes em algum ponto da praia e destinados a conseguir as boas graças de Apolo para o combate.
À medida que a bruma foi dissipando, os homens já totalmente despertos começaram a colocar seus elmos de penachos coloridos e ajustar as fíbulas das couraças e caneleiras. Agarravam armas, remos ou talismãs.
O sol caminhava para o alto do céu. Os estandartes tremulantes e o vento inconstante encapelavam o mar, turvando-o de um azul sinistro. Eram presságios desalentadores, mas o que fazer? A esquadra iônia encontrava-se imóvel junto à costa, alinhada em formação de combate, as proas voltadas para o oceano. Na ala leste, milésios, priênios, miúntios, quianos, eritreus, tênios, foceus e lésbios. Na ala oeste, os sâmios (8).
Ouvi o alerta das sentinelas. Todas apontavam na mesma direção. Apertando os olhos pude distinguir algo que se confundia com a linha d'água. De um extremo ao outro, o horizonte estava coalhado por minúsculas velas de cores as mais diversas, e que aumentavam a cada instante. Naquele momento, não poderia afirmar a quem quer que fosse o tamanho da frota inimiga. A simples visão do poderio do Bárbaro foi suficiente para dissolver todo e qualquer vestígio da impetuosidade adolescente que ainda restasse em mim. De nada valiam meu arco, minha espada, meu escudo e minhas convicções. Lá estava o inimigo. E se aproximava rapidamente.
Em pé, sobre o tombadilho de uma das três naus focéias, eu teria o melhor ângulo de visão do teatro de operações. Ou a pior, dependendo do ponto-de-vista. Estaria bem no meio da batalha. A minha era a nau-capitânia, o navio do grande Dionísios, o comandante da armada iônia. Éramos mais de duzentos homens entre remadores, marinheiros e hoplitas. Enfrentaríamos o grosso do ataque fenício – sim, fenícios, eles formavam o grosso frota de Dareios, ao lado de cíprios, cilícios e egípcios – que vinham pela frente, direto para a nossa proa. E eram mais de seiscentas as embarcações do Bárbaro, entre trirremes e naus de trinta e de cinqüenta remos. Hoje, com a certeza do passar dos anos, posso afirmá-lo seguramente, mas naquele momento, como disse poucas linhas acima, seria incapaz de fazê-lo.
Enquanto a frota inimiga se aproximava, alguma coisa aconteceu. Depois daquele dia aprendi a não deixar de dar ouvidos a quaisquer boatos. Em meio aos gritos de comando, fomos surpreendidos ao constatar que muitas naus saíam de formação, afastando-se. Primeiro foram os sâmios, a seguir os lésbios, e por fim o grosso da aramada iônia. Bateram em retirada. Fugiram. Nos traíram. Deveria, afinal, haver alguma verdade naquelas histórias sobre delegações persas e tratados de paz...
Âncoras içadas, vozes de comando e a cadência dos remos. O mar continuava agitado. As trirremes seriam difíceis de manobrar. Com as recolhidas, nós, hoplitas, nos postamos junto à murada. A tática de combate escolhida por Dionísios seria a do abalroamento lateral, jogando o esporão da nossa proa contra o costado do inimigo. Com pouco mais de cento e cinqüenta trirremes àquela altura, aproximamos nossos barcos cerrando formação. Os pilotos praguejavam insultando seus remadores enquanto a linha fenícia navegava há menos de dez pletros (9).
Flechas dardos e esporões de abalroamento. Dionísios gritava ordens e enviava sinais. A superfície da água crispava-se com o sulco das flechas inimigas que ainda não conseguiam nos atingir – mas reduziam a distância a cada instante. Duas setas cravaram em meu escudo. Ao meu lado, um companheiro com menos sorte tombou trespassado na garganta. Aí, veio o primeiro choque. Um baque surdo, o mundo tremendo e o ruído do madeirame se partindo.
Não estava atento às manobras do piloto de modo que perdi a sustentação e caí de costas quando nossa proa rasgou a frente de uma nau fenícia. Os remadores faziam uso de longas varas e dos remos para soltar nosso navio dos destroços da embarcação que afundava. As varas também serviam para espetar, furar e matar os fenícios que se debatiam na superfície.
A corda do meu arco vibrava a cada nova seta. Abalroamos outros dois enormes navios egípcios. Eles eram lentos, mas afundaram rápido. Incendiamos um terceiro, mas não havia espaço para manobra tal a aglomeração de embarcações à nossa volta. Lanças, fogo e cabos de abordagem. O velame do mastro principal se incendiou. Fuligem fumaça e egípcios invadindo o convés. Larguei meu arco e desembainhei a espada. A luta, agora, era no tombadilho.
Na minha frente, um jovem bárbaro de pele escura, barba espessa saindo do capacete de couro trançado, um escudo côncavo e um machado. Percebi o medo da morte em seus olhos e, tenho certeza, ele pressentiu o mesmo nos meus. Investiu com um golpe horizontal do qual me desvencilhei pulando para trás. Com minha mão esquerda - sou canhoto – esperei o machado passar para tentar estocá-lo na barriga. Ele era ágil. Percebeu o golpe antes de eu ter chance de furá-lo. Recuou ao mesmo tempo que ergueu o machado para descê-lo com violência na direção de minha perna. O machado silvou no ar e arrebentou uma tora do tombadilho. Poderia ter sido meu pé.
Aí, surgiu a oportunidade. Enquanto o egípcio erguia novamente seu machado, abriu a guarda. Enterrei até o punho minha lâmina na sua axila direita. O sangue jorrou. Ele me olhou, a surpresa dando lugar a dor e ao vazio. Tombou.
Nunca havia matado alguém antes. Pelo menos, não assim, tão de perto a ponto de cheirar a morte. O alvo das minhas flechas nunca fez parte dos meus pensamentos. Se a batalha não existisse e apenas nós dois tivéssemos combatido, teria me detido no assunto (como o fiz de fato dias depois), na tentativa da conscientização precisa do meu ato. Recordo-me que, em realidade, perdi apenas alguns instantes contemplando aquele corpo curvado de um modo estranho, dificilmente visto entre as formas vivas, mesmo durante o sono. O sangue viscoso fluía ininterrupto de tronco do homem, empapava seu cabelo e a sola de meus pés.
No convés, remadores tossiam e esfregavam os olhos por causa da fumaça. A maioria dos hoplitas e dos fenícios estava morta e Dionísios - ainda em pé - tentava arrancar uma seta que tinha vindo se cravar na sua coxa direita. Não conseguiu. Alguém trapaçou-lhe com uma lança. Ela entrou bem no meio do abdômen e foi sair pelas costas, levando consigo sangue, carne e fragmentos de osso. Mais um morto.
Ouvi um estrondo surdo seguido pelo som do casco se partindo. Fui jogado para fora da murada. A água estava fria. Meu navio afundava. Havia muitos corpos em movimento entre os destroços. Mas a quantidade de mortos por flecha, lâmina, fogo e afogamento era muito maior. Eu me debatia num mar de guerreiros mortos. O lago dos mortos no Hades seria assim?
Tentei agarrar algo que flutuasse. Era difícil flutuar no meio daquela profusão de detritos. Agarrando um pedaço de casco semi-calcinado, tive ainda que lutar contra dois egípcios que queriam fazer o mesmo. Usei um remo para partir suas cabeças.
Saída nunca descobri de onde, uma longa seta africana veio enterrar-se em meu ombro direito. Dor. Depois o silêncio. Água salgada, céu azul, naus, gritos, o cheiro de fumaça, de mar e de sangue, tudo se esvaiu. Devo ter boiado inconsciente amarrado aquele pedaço de pau por muito tempo.
Notas de rodapé:
1 - Telephanes (Τηλεφάνης), foi um escultor grego de Fócida que trabalhou para os reis da Pérsia.
2 - Focéia ou Phokaia (do grego Φώκαια) ou ainda Phocaea, cidade-Estado iônica no litoral da Ásia Menor (a atual Foça, na Turquia). Focéia floresceu por volta de 600 a.C., mas foi conquistada pelas forças persas de Ciro, o Grande, em 546 a.C.
3 - Dionísios, o general da armada de Míletos.
4 - Para os helenos, os antigos gregos, bárbaros eram todos os povos que não falavam grego. No cado, o “Bárbaro” era Ciro, o rei e criador do império persa.
5 - Lacedemônios: natural ou habitante da Lacedemônia pu Esparta.
6 - Hoplita (do grego ὁπλίτης), o soldado – e homem-livre – da infantaria grega.
7 - Peã ou paian (em grego: παιάν), hino especialmente dedicado ao deus Apolo.
8 - Tropas de cidades-Estado como Míletos, Priene, Quios, Focéia, Lesbos e Samos, entre outras.
9 - Antiga medida de comprimento, correspondente a aprox. 30 metros.
fim do Capítulo I
leia aqui o Capítulo II
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