John Barry?: “A vacina da gripe suína é prioridade”

O historiador diz que a gripe suína está substituindo a gripe comum e fazer vacina tradicional é inútil


Peter Moon

O Brasil inaugurará em outubro a única fábrica de vacinas de gripe da América Latina, no Instituto Butantan, em São Paulo. Ela poderá fazer 20 milhões de doses contra a gripe comum ou 60 milhões contra a gripe suína. O governo americano anunciou no dia 29 que vacinará a partir de outubro metade da população do país contra o novo vírus. No Brasil, o Ministério da Saúde prioriza a produção da vacina comum. Só haverá vacina pandêmica em 2010. Até lá, a gripe comum poderá já ter desaparecido. Só restará a suína. “Em todas as pandemias, o novo vírus substituiu o antigo. Nos Estados Unidos, 100% das gripes já são suínas”, diz o americano John Barry, autor de uma premiada história da Gripe Espanhola. No Brasil, o vírus A/H1N1 responde por 75% dos casos. “A vacina pandêmica é prioridade”, afirma Barry.

QUEM É Após uma longa carreira no jornalismo, John M. Barry, de 62 anos, abandonou a reportagem, nos anos 1990, para escrever livros. É um dos mais respeitados e premiados historiadores e ensaístas dos Estados Unidos.


O QUE FAZ
É pesquisador do Centro de Pesquisa Bioambiental das universidades Tulane e Xavier, em Nova Orleans



O QUE PUBLICOU
The ambition and the power: a true story of Washington (1989); Rising tide: the great Mississippi flood of 1927 and how it changed America (1997); e The great influenza – The story of the deadliest pandemic in history (2004)

ÉPOCA – O Brasil tinha, até o dia 31, 1.958 casos de gripe suína e 56 mortos. O total de infectados é muito maior. Para o Ministério da Saúde, 75% dos casos de gripe no país já são causados pelo novo vírus A/H1N1.
John M. Barry –
Isso era esperado. Em todas as pandemias aconteceu o mesmo. O vírus pandêmico substituiu o vírus da gripe comum, invadindo e dominando o meio ambiente dos vírus influenza: o ser humano. Quando surge um novo vírus, ele é mais contagioso e perigoso. Em poucos anos, após toda a população mundial ser exposta e adquirir resistência – ou ser imunizada com a vacina –, o vírus pandêmico abranda, para se tornar o vírus da gripe sazonal. O H1N1 que emergiu em 1918 e causou a Gripe Espanhola circulou pelo planeta até 1957, quando foi substituído pelo H2N2, da Gripe Asiática. Este foi substituído pelo H3N2 da Gripe de Hong Kong, de 1968. O H3N2 circula desde então. Agora, ele está desaparecendo. O novo H1N1 está tomando seu lugar. Nos Estados Unidos, virtualmente 100% dos casos de gripe já são causados pelo H1N1.


ÉPOCA – O Brasil tem a única fábrica de vacina de gripe da América Latina. O Ministério da Saúde tem dito que a prioridade é fazer a vacina sazonal. Só haverá vacina pandêmica em 2010.
Barry –
A vacina pandêmica ainda não existe. Os primeiros lotes nos Estados Unidos e na Europa devem ficar prontos daqui a três meses. A vacina é a única solução definitiva para conter a pandemia. Se 75% dos casos de gripe no Brasil já são causados pelo H1N1, produzir a vacina pandêmica deveria ser uma prioridade absoluta do governo brasileiro. Priorizar a produção da vacina sazonal é fazer vacina para uma gripe que está desaparecendo.


ÉPOCA – Quando o senhor percebeu a seriedade da nova gripe?
Barry –
Em 24 de abril, quando soube do primeiro comunicado da OMS anunciando uma nova epidemia de gripe no México, com 58 mortos e 900 doentes. “Pronto, é isso! Ela chegou”, pensei. Na época, achava que bastariam dois meses para o total de casos explodir e a vigilância epidemiológica parar de contá-los, o que ainda não aconteceu.


ÉPOCA  Isso leva a crer que o vírus é tão brando quanto o da gripe comum?
Barry –
O vírus parece bastante brando, se comparado às pandemias do passado. A letalidade mais elevada de que tenho notícia é 0,4% do total de casos. Na Gripe Espanhola, a pior de todas, a letalidade média foi 2,5% ao longo de diversas ondas sucessivas da pandemia, entre 1918 e 1920. Houve picos, como no outono de 1918, que concentrou dois terços de todas as mortes. A letalidade flutuou muito. Algumas aldeias esquimós no Alasca perderam metade da população. Mas nada do que se vê hoje sugere a menor possibilidade da repetição daquele cenário. Por causa do inverno no Hemisfério Sul, no momento a gripe é pior na América Latina. A situação parece mais grave na Argentina que no Brasil.


ÉPOCA – No Brasil, gestantes e obesos formam o principal grupo de risco.
Barry –
Gestantes, crianças, obesos e idosos são grupos de risco em qualquer epidemia. No caso das pandemias de gripe, além deles, o vírus atinge com mais severidade os adultos jovens, entre 20 e 45 anos, a faixa etária mais saudável e produtiva da sociedade. Em 1957 e 1968, houve um aumento substancial nas mortes entre jovens e adultos.


ÉPOCA – Segundo o governo, 65% dos mortos tinham entre 20 e 45 anos.
Barry –
Você disse 65%? Eu não sabia disso. Como tinha dito, houve aumento sensível no número de mortes nessa mesma faixa etária nas pandemias de 1957 e 1968 – mas isso não foi nada comparável a 65% do total de casos, como declara seu governo. Um porcentual assim só se viu em 1918.


ÉPOCA – A gripe está ficando mais grave?
Barry –
Não sabemos. Mesmo que o total de casos confirmados pela OMS seja 134 mil, no Brasil haja 100 mil casos não reportados ou 1 milhão nos Estados Unidos, não se sabe quanto tempo o vírus levará para se adaptar completamente ao organismo humano, desenvolvendo meios de driblar nosso sistema imune e, aí sim, tornar-se devastador. Isso pode jamais acontecer. Ou pode ser necessário mais um dia, outro mês ou alguns anos. Eventualmente, surgirá um vírus muito eficiente em matar. Esse, infelizmente, é o lado assustador do vírus influenza.


ÉPOCA – A gripe suína ainda não é a grande pandemia que todos temem?
Barry –
Hoje, graças ao estudo de dados epidemiológicos antigos, sabe-se que todas as pandemias começaram muito antes do que se supunha. O vírus que explodiu em letalidade em 1918 começou a circular em 1913 ou até antes disso. O vírus de 1957 surgiu em 1950 ou 1951. Não sabemos quem causou a pandemia russa de 1889-1893. Seu vírus nunca foi achado. Há evidências de que pode ter sido um H2N2 semelhante ao da Gripe Asiática de 1957, pois naquela pandemia a faixa etária que mostrou maior resistência eram os idosos com mais de 70 anos. Eles nasceram antes e durante a gripe russa. Pode ser que, ainda na infância, tenham sido expostos a uma antiga versão do H2N2.


ÉPOCA – Há evidências de que o mesmo pode estar ocorrendo hoje.
Barry –
O vírus H1N1 da gripe suína não surgiu no México em fevereiro, disso já se tem certeza. Ele estava circulando despercebido pelo meio ambiente há vários anos e só agora emergiu. Em 2009, ele ganhou visibilidade, mas ainda não adquiriu letalidade. Também já se sabe que o vírus da gripe suína é um descendente direto do vírus da Gripe Espanhola de 1918, que também era H1N1.


ÉPOCA – Em 2008, o senhor publicou um estudo mostrando que os soldados americanos que pegaram a gripe branda da primeira onda de 1918 passaram incólumes pela segunda onda, muito mais letal. O mesmo vale para hoje?
Barry –
O estudo mostra que nos quartéis onde houve um surto da primeira onda da gripe, até 94% dos soldados passaram incólumes pela segunda onda, que matou dezenas de milhões em todo o mundo. Por outro lado, nos quartéis que não tiveram contágio na primeira onda, um terço da tropa adoeceu e dezenas de milhares morreram. Isso sugere que os planos de contingência contra uma pandemia de gripe deveriam considerar a imunização preventiva por uma primeira onda branda como uma hipótese de proteção contra a segunda onda, que potencialmente pode ser pior.


ÉPOCA – Bastaram seis semanas para a gripe suína dar a volta ao mundo. As outras pandemias precisaram de seis meses. O vírus atual é mais contagioso?
Barry –
Não. O vírus se espalhou tão rápido por causa do avanço do tráfego aéreo. Nunca tanta gente viajou de avião, dando a volta ao mundo em menos de 24 horas. A aviação comercial transporta muito mais passageiros hoje que na última pandemia, em 1968.


ÉPOCA – Os Estados Unidos anunciaram no dia 29 que vão vacinar 160 milhões de pessoas, metade da população. A vacina é a única arma para deter a pandemia?
Barry –
Sim. Enquanto não houver vacina pandêmica, pode-se dar antiviral, internar doentes ou fechar escolas. O vírus voltará a cada inverno.


ÉPOCA –  O Brasil pode fazer 60 milhões de vacinas pandêmicas por ano. A Argentina quer comprar vacina do Brasil. É correto fornecer a eles antes de imunizar toda a população brasileira?
Barry –
Esse é o grande dilema ético que os países produtores de vacina enfrentarão. Teoricamente, faz sentido vacinar toda a população antes de exportar vacina. Mesmo alegando elevados princípios humanitários, politicamente será muito difícil para qualquer governante vender vacina antes de imunizar sua população. Será interessante ver quem prevalecerá: será o espírito de fraternidade ou o puro egoísmo?

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