Wozniak fala da amizade com Steve Jobs e de como criaram a Apple e conta quais são as suas invenções preferidas (entrevista republicada no site do The Washington Post)
Peter Moon
Woz e Jobs, em 1977. |
Entre os grandes responsáveis pela revolução do computador pessoal, um dos nomes menos conhecidos do grande público talvez seja o de Stephen Gary Wozniak. A exceção são os macmaníacos, para quem Woz é uma lenda. Isso não se deve apenas ao fato de ele e o amigo Steve Jobs terem sido os responsáveis pela criação da Apple, em 1976. Se Steve Jobs é hoje o rosto conhecido do público no que se refere à marca da maçã, quem idealizou, projetou e construiu os computadores Apple I e II, os computadores que definiram o futuro da indústria, foi Woz. E ponto final.
Já milionário, Woz se afastou da Apple no início dos anos 1980 para surpreendentemente virar professor primário. Mas este californiano brincalhão de 59 anos jamais deixou de dar vazão ao seu espírito criativo. Nos últimos 20 anos, não parou de criar novos produtos e invenções. Woz fala sobre tudo isso na autobiografia, iWoz - From computer geek to culture icon, de 2006.
Peter Moon – Acredita que a era do PC acabou?
Wozniak – Boa pergunta. Minha resposta é: não, não creio. Em termos simples, as pessoas querem realizar coisas por determinados motivos. Se você deseja fazer uma análise financeira para a sua empresa, o que faz? Usa um computador para reunir informações. Ainda assim, continuamos usando nossas vozes e mentes para nos comunicar. Os computadores possuem um teclado para teclar e informar o que a máquina deve fazer. E o teclado é operado pelos dedos. Por que isso deveria mudar?
Bom, desconsiderando o fato de que hoje se pode procurar instantaneamente uma informação ou encontrar qualquer pessoa no mundo através da internet, o computador continua sendo uma ferramenta versátil que fornece aos seres humanos uma interface com o mundo. Mas o computador possui outros propósitos. Ele serve para armazenar diversas coisas, música, fotografias, vídeos, e-mail. O computador é tão importante que não se pode imaginar a vida sem ele. Pode-se pensar optar entre o uso, na web, do Google Calendar no lugar do programa iCalender do Macintosh. As pessoas podem usar programas diferentes, mas continuam fazem basicamente as mesmas coisas com no teclado.
Uma visão ultrapassada é aquela que vê o computador pessoal dando lugar a dispositivos menores no celular. Eu não compro essa, não acredito nisso. Há muitos casos em que é preciso digitar num teclado. Existe um monte de coisas que não podem ser feitos no telefone. Enquanto existir o computador, continuará sendo o meio mais eficiente de acesso ao mundo. Quando chegarmos ao ponto em que tudo estiver na web, incluindo os aplicativos, então poderemos usar qualquer computador em qualquer lugar. Mas, definitivamente, não se pode fazer tudo num telefone (obs.: esta entrevista foi feita seis meses após o lançamento do iPhone, em janeiro de 2007).
Moon – Os fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, são os representantes atuais daquilo que você, Steve Jobs e Bill Gates representavam no fim dos anos 1970? Ou será que os próximos gênios da tecnologia serão chineses?
Wozniak – Não estou a par do que está acontecendo na China, comparado, por exemplo, com o Google. Dito isso, eu diria que nesse exato instante o melhor equivalente seria o Google. Não estou me referindo a Brin ou Page, mas à empresa Google. Ela conseguiu uma boa dianteira, mas quando algo novo aparece, pode surgir em qualquer lugar no planeta. Baseado em todas as evidências, o Google não está puramente sentado em cima dos seus louros. Seu sucesso se deve aos seus grandes aplicativos e ao modo como os combina de forma brilhante. Fico imaginando como será que eles fazem para mantê-los funcionando? Têm feito um trabalho incrível.
Woz, hoje. |
Moon – Você se descreve como um inventor e engenheiro. Quais são suas invenções mais recentes?
Wozniak – Minha última invenção é uma chave programada para o Segway, um dispositivo de transporte sobre duas rodas. É um projeto modesto, mas o fiz usando os mesmos padrões de qualidade que empregava nos velhos tempos. Além disso, faz alguns anos tive uma start-up que desenvolveu um sistema de monitoramento via GPS. E no fim dos anos 1980 desenvolvi um controle remoto que foi o primeiro controle remoto universal da história.
Wozniak – Minha última invenção é uma chave programada para o Segway, um dispositivo de transporte sobre duas rodas. É um projeto modesto, mas o fiz usando os mesmos padrões de qualidade que empregava nos velhos tempos. Além disso, faz alguns anos tive uma start-up que desenvolveu um sistema de monitoramento via GPS. E no fim dos anos 1980 desenvolvi um controle remoto que foi o primeiro controle remoto universal da história.
Moon – Quais dos seus inventos você mais se orgulha?
Wozniak – Acredite se quiser, o que eu mais adoro é a chave programada do Segway, ao lado do drive de disco flexível do Apple II – eu o fiz de modo incrivelmente rápido e totalmente diferente de qualquer outro drive produzido antes dele. Eu o projetei do jeito mais perfeito que poderia ser.
O Apple II foi provavelmente a minha maior invenção. Tive um monte de idéias malucas sobre como transformar coisas que eram muito complicadas, tornando-as mais simples e a um custo muito baixo, reunindo tudo num único computador. Havia muito mais coisas num único computador do que qualquer um poderia esperar. Ao fazê-lo, criei o padrão de como o computador pessoal seria daí por diante. Ao lado do Apple I, o Apple II mudou o mundo dos computadores, até então formado por máquinas feias e impessoais. O mundo mudou naquele dia e nunca mais foi o mesmo.
Também inventei o terminal de vídeo para o Apple I, com o qual podia acessar a antiga Arpanet, a ancestral da atual Internet. Desenvolvi ainda um vídeo game para o Atari num curtíssimo espaço de tempo e projetei um game para o meu celular. Nos anos 1970, antes da Apple, eu montava dispositivos para fazer ligações de graça para todo o mundo através de emissão de sinais sonoros pela linha telefônica. Desenhei um monte de chips para as calculadoras científicas da HP. É difícil resumir. A lista é longa. Minha vida como engenheiro foi repleta de desafios, apesar de ter reduzido o ritmo quando passei dos 30 anos.
Moon – Soube que se interessa por robótica?
Wozniak – Sim, é verdade.
Moon – Tenho visto surgir robôs assustadores, em especial aqueles desenvolvidos para o Pentágono. Eles se locomovem como se estivessem vivos. Você acha que a era do "Exterminador do Futuro" se aproxima?
Wozniak – Ela está se aproximando, mas muito lentamente. Estas máquinas que parecem andar usam dispositivos especiais de balanceamento. O modo como o ser humano anda é praticamente impossível de copiar. Então, essa aproximação acontecerá um pequeno passo de cada vez. Todos estes robôs farão muito bem uma única coisa, mas nunca veremos um robô fazer uma xícara de café, nunca!
Moon – Espero que tenha razão.
Wozniak – Pense nos passos que um ser humano precisa dominar para fazer uma xícara de café e verá que cobrem basicamente de dez a vinte anos de aprendizado. Para um computador fazer a mesma coisa ele teria que possuir o mesmo aprendizado, andando até sua casa usando algum tipo de sistema óptico de visão, abrindo a porta da maneira correta, virando para o lado errado, retrocedendo, procurando pela cozinha, detectando onde está a máquina de café, colocando o filtro de papel, sabendo como ligá-la, o que muda de um modelo para outro... Não se podem programar essas coisas, é preciso aprendê-las, é preciso olhar como outras pessoas fazem café. É este o tipo de lógica que o cérebro humano realiza para fazer uma xícara de café. Nunca veremos surgir a inteligência artificial. Pense no seu cachorro ou no seu gato. Eles são muito mais espertos do que qualquer computador.
Moon – Na sua autobiografia, conta que quando conheceu Steve Jobs notou que possuíam personalidades complementares. Você era o técnico enquanto ele tinha a visão de negócios; você era tímido e ele, extrovertido. Quando e como se conheceram?
Wozniak – Foi no início dos anos 1970, nos meus anos de faculdade, quando ele ainda estava no colegial. Eu já projetava computadores e um amigo me disse: você precisa conhecer o Steve Jobs, porque ele gosta de eletrônica e de fazer piadas. Então fomos apresentados. Adorávamos eletrônica e também adorávamos tentar conectar chips. Muito pouca gente, especialmente naquela época, fazia qualquer idéia do que eram os chips, como operavam e o que podiam fazer. Eu tinha projetado diversos computadores, estava à frente dele nessa área. Tínhamos uma atitude independente com relação às coisas do mundo, pensávamos por nós mesmos e éramos inteligentes o suficiente para não seguir as idéias que estavam na moda, como a contracultura. Steve tinha alguma ligação com a contracultura, mas eu era totalmente alheio a ela.
Moon – Ainda são amigos? Trocam idéias sobre tecnologia?
Wozniak – Sim, somos amigos. Conversamos com frequência, mas não tanto sobre tecnologia quanto antes.
Moon – Quando assisti ao filme Piratas do Vale do Silício (1999), fiquei com a impressão de que você era o único cara do bem no meio de um monte de gente do mau...
Wozniak – Para alguns, essa visão procede. Pode parecer assim, porque algumas vezes é preciso tomar certas decisões de negócios para fazer as coisas funcionarem. Acontece que eu era o único cara que não estava fazendo aquilo colocando o dinheiro em primeiro lugar. Eu queria fazer coisas legais, bons produtos para ajudar as pessoas. Nunca deixei o dinheiro ditar o caminho para onde iria. Não queria assumir uma atitude crítica nem forçar o pessoal da empresa a trabalhar. Queria que cada um vivesse sua própria vida. Realmente, não me importava que outras pessoas achassem as minhas idéias melhores que as delas. Eu desejava que o pessoal que trabalhava com a gente quando fundamos Apple fosse recompensado caso não possuíssem a ações da empresa. E ajudei-os nesse sentido, principalmente com as minhas próprias ações.
Moon – Por que saiu da Apple?
Wozniak – Sendo o tipo de engenheiro que sou, eu projetava coisas do meu próprio jeito, trabalhando sozinho. Mas a companhia havia crescido ao ponto de ter organizado um departamento de engenharia. Ainda assim, eu podia circular pela empresa e fazer qualquer projeto que desejasse. Mas queria trabalhar com gente de fora, fazendo novos produtos, fazendo coisas para mudar o mundo. Na verdade,jamais saí da Apple. Apenas fui criar novas empresas. Nunca deixei de ser empregado da Apple. Até hoje recebo um cheque todos os meses.
Moon – Estou errado quando penso que Jobs voltou-se para o lado escuro da força, quando começou a exigir demais dos funcionários, usando para isso o artifício da humilhação?
Wozniak – Ele agiu com inteligência para fazer prevalecer a sua visão no meio de um monte de pessoas muito qualificadas que trabalhavam na empresa quando fundamos a Apple. Fez isto porque muito poucos viam as coisas numa perspectiva tão ampla quanto ele. Percebe? Ele tinha que perseguir e alcançar grandes feitos dentro de um cronograma muito apertado. Steve agiu do seu próprio jeito porque não estava trabalhando sozinho, como era o meu caso. Tinha que forçar as pessoas ao máximo. A visão que ficou foi que ele estava apenas competindo para ser o cara mais poderoso da paróquia ou que procurava ser a grande força oculta por trás de tudo o que se fazia. O que está feito, está feito, e o mundo ficou melhor assim.
Moon – Ainda acredita que a Apple estava certa ao não licenciar o sistema operacional do Macintosh?
Wozniak – Isso é muito difícil de dizer, mesmo hoje. Pense no iPod e o que ele significa para a Apple em termos de dinheiro. Para fazer da Apple uma companhia tão importante no setor de computadores, nós tínhamos que fazer muitas escolhas. Se a Apple tivesse licenciado o seu sistema operacional, ainda assim teríamos nos tornado tão grandes e tão bons na criação de grandes produtos? Não se pode olhar para trás e decidir como teria sido o futuro da empresa. Teria dado certo? Não vale a pena perder tempo com isso. Com isto quero dizer que a Apple fundamentou algumas decisões importantes sobre boas razões. O nosso maior patrimônio é a lealdade dos nossos consumidores, e muito dessa lealdade deriva de pessoas que acreditam no que é a Apple: uma empresa que faz tudo, o sistema operacional, o hardware, os programas e os serviços. É o sucesso e a grandeza dos produtos que estão em questão quando se tem o controle sobre todos os aspectos da fabricação de um computador.
Moon – Você era contrário a Guerra do Vietnã. Por causa disso, em 1976 votou em Jimmy Carter para presidente dos Estados Unidos. A propósito disso, em 20 de maio de 2007 (dois meses antes desta entrevista), Carter disse sobre o governo Bush: “Considerando-se o impacto negativo da nação ao redor do mundo, esta administração é a pior da história”, ao que o porta-voz da Casa Branca rebateu, chamando Carter de “irrelevante”. Concorda com Carter?
Wozniak – É claro que concordo com Carter. Aproveito para observar que não deveríamos dar ouvidos a pessoas que fazem um erro após outros após outro, e que mentem para tentar nos enganar. Deveríamos dar ouvidos àquele que tinha razão quando começaram a Guerra do Iraque. Naquela época, em 2003, Jimmy Carter escreveu um excelente artigo no The New York Times. Curto, tinha uma ou duas páginas e colocou de forma simples e direta quando se deve e quando não se deve ir à guerra. Ao lê-lo hoje, fica tudo muito claro. Deveríamos ter ouvido alguém como Carter, e não Bush. O ódio contra a América é dez vezes maior do que jamais o foi. Isso é óbvio. Quando se usa a força para tomar um país, quando as pessoas vêem seus irmãos, irmãs, sobrinhas e sobrinhos sendo mortos, eles não esquece, e nos tratam como inimigos. Também pudera? Para o povo do Iraque a América é assassina.
Posso te garantir, meu pai me ensinou muito sobre porque nós éramos tão grandes graças à nossa Constituição, e porque ela levou ao maior grau de liberdade no mundo, e porque os outros povos nos admiravam por isso. Nós não torturávamos prisioneiros, os outros faziam isso. Eu acreditava que pertencia a um grande país. Ele ainda é o meu país, mas uma após outra das grandes coisas que o fizeram grande foram desmanteladas nos últimos anos sob George W. Bush. Como se podem pegar prisioneiros fora dos Estados Unidos e aplicar formas de justiça que jamais permitiríamos dentro do país?
Não, tudo isso é terrível. É o resultado de um sistema político que não diferencia um partido do outro. Uma vez que eles assumem o poder, só querem fazer todo o possível para assegurar a própria riqueza, propondo projetos de lei para ganhar dinheiro. Não existe praticamente ninguém (no governo) que saiba sob um ponto de vista moral como é que o país deve ser governado.
Moon – Possui algum sonho não realizado, como ter netos? Quais valores e virtudes passaria a eles?
Wozniak – Eu tenho três filhos e não procuro influenciá-los com os meus próprios valores. Eu os deixo agir de forma bem parecida com o personagem do filme Forrest Gump, sendo gentis com as pessoas, fazendo amigos e escolhendo as suas próprias influências. Vou auxiliá-los nesta direção. É assim que fui criado e acredito que é ótimo criar meus filhos do mesmo jeito. E tenho certeza de que serei avô dentro de pouco tempo. Essa é uma das vantagens principais em ter filhos.
Moon – Mas você possui algum sonho não realizado?
Wozniak – Fazer 750.000 pontos no Tetris do Gameboy (risos). Também sonho construir uma casa que seja muito eficiente do ponto de vista de consumo de energia. Isso acontecerá em breve. Ela usará o tipo certo de madeira, montada do modo correto para fazer a casa aquecer no inverno e resfriar no verão. Quando ficar pronta, não será preciso gastar com energia de calefação ou condicionamento de ar. Adoro este projeto. Ele lembra o modo como eu fazia computadores. E quero construí-la eu mesmo. O projeto deve estar terminado no ano que vem (em 2008).
Moon – Li que você treina para um concurso de comedores de cachorro quente... É verdade?
Wozniak – Não, nunca ouvi nada sobre disso. Quase sempre quando me entrevistam alguém faz alguma pergunta muito estranha, e eu às vezes respondo “Sim”, só para fazer graça. Mas é uma brincadeira.
Moon – Está na sua biografia da Wikipedia.
Wozniak – É verdade? Alguém colocou lá. Eu jamais tiraria isso de lá. É engraçado! Adorei! Sabe o que mais? Eu adoro cachorro quente desde os tempos de faculdade. (Observação: desde que esta entrevista foi feita, a referência ao concurso foi retirada da página na Wikipedia)
Moon – Por fim, uma curiosidade: No seu livro há uma foto muito estranha com você e Steve Jobs em 1971, mostrando um enorme lençol com o desenho de um dedo médio em riste simbolizando F... Vocês pretendiam estendê-lo na entrada da escola de Jobs no primeiro dia de aula. O que me deixou curioso é que o lençol trazia a frase “Saudações do Brasil”. Por que isso?
Wozniak – (Gargalhando) Escolhemos o nome de um país que os americanos conheciam. Eles poderiam acreditar que aquele sinal realmente significava uma saudação naquele país. Então, simplesmente dissemos: Brasil! Mas era brincadeira. Só brincadeira.
Publicada originalmente em 18/07/2007 no IDG Now!, e republicada em 19/07/2007, no site do The Washington Post, com o título “Wozniak on Apple, AI and future inventions”, entre outros sites americanos e europeus.
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