Aprendiz de feiticeiro

Sobre Antônio Meneses, Maria João Pires e o desafio de se tornar músico

Peter Moon

Na primeira semana de julho, fui a Campos do Jordão (SP) para entrevistar Maria João Pires, a maravilhosa pianista portuguesa “quase brasileira” (“dei entrada na papelada para a naturalização. Ainda não saiu. Estou esperando”), ao lado do igualmente soberbo violoncelista pernambucano Antônio Meneses. Maria João e Meneses se reuniram para tocar juntos pela primeira vez. Os dois concertos realizados nos dias 8 e 9, com sonatas de Beethoven para piano e cello, e sonata para piano, além da 3ª Suíte para violoncelo solo de Bach, foram os pontos altos do 41º Festival Internacional de Inverno (leia Quando os gênios se tocam).


Maria João Pires e Antônio Meneses, no dia em que 
se conheceram, em Campos do Jordão
(foto: Patricia Stauis)
A entrevista estava marcada para a hora do almoço da terça-feira, 6. Meneses e eu conversávamos no saguão do Grande Hotel de Campos do Jordão, aguardando Maria João (leia Ode à Maria João Pires). Eu sabia que o encontro de dois músicos daquela estatura seria memorável. Não sabia que seria histórico. Eles não se conheciam?!? Estava escrito que dois dos maiores músicos em atividade iriam trocar beijos e cumprimentos bem na minha frente. Espero na coluna de hoje acrescentar umas coisinhas e momentos agradáveis que ficaram de fora da edição impressa.

Voltemos ao saguão do hotel, antes da chegada da pianista. Eu conversava com Meneses, e estava nervoso. Nervoso não, o adjetivo correto é inseguro. Fiz minha carreira jornalística cobrindo ciência e tecnologia. Entrevistei mais de uma dezena de ganhadores do prêmio Nobel. Só me senti inseguro da primeira vez, em 1994, diante do americano Arno Penzias, o co-descobridor, em 1965, da radiação escura. A descoberta comprovou a teoria de que o universo surgiu no Big Bang. A conversa com Penzias fluiu bem, e eu perdi o medo de falar com um Nobel.

É engraçado o jeito como a mente gosta de brincar com a gente. Meu inconsciente foi pinçar o arquivo com a memória da conversa com Penzias, um acontecimento esquecido há anos, só para atormentar. A lembrança afluiu ao consciente justamente ali, na frente de Meneses. O desconforto que sentia devia ser muito, muito parecido – para não dizer o mesmo.

Não sou músico. Logo, não achava que o meu parco conhecimento de música erudita ou clássica (escolha o rótulo que preferir. Ou então faça melhor, esqueça-o. Pense apenas em boa música) estaria à altura de uma conversa com aqueles dois virtuoses. Mas o meu amigo e editor de cultura da ÉPOCA, Luís Antônio Giron – que é músico – achava que eu teria competência para “tirar de letra” aquela entrevista. Só tinha faltado combinar com Maria João e Menezes...

Eu havia conhecido Meneses na tarde anterior, durante uma master class, uma aula para alunos avançados de violoncelo. O Festival de Campos se apóia tanto nos recitais e concertos quanto nas master classes dos músicos e conjuntos convidados com bolsistas de todo o Brasil. As aulas acontecem no Preventório Santa Clara, um edifício grande e antigo, do início do século XX, construído originalmente para abrigar e cuidar de doentes com um quadro clínico que poderia evoluir para a tuberculose. Mas lá não há doentes há décadas. A única tosse que se ouve no Preventório é aquela que incomoda as execuções musicais.

O lugar respira música. Desde o estacionamento, já se ouve à distância os sons de violinos, pianos ou canto lírico. No gramado, um grupo de garotos bolsistas aproveita à hora do almoço para jogar bola. Ali e acolá, vê-se uma moça tocando violino à sombra das árvores ou um garoto repassando pela enésima vez a música que estuda faz meses para apresentar na master class.

Aprendiz de feiticeiro

Entrei no prédio e percorri um longo corredor repleto de salinhas à direita e à esquerda, com o nome do músico a quem está reservada. No fim do corredor ficava a capela. Abri a porta com cuidado. A master de Meneses já havia começado. Uma moça dos seus 20 anos estava enfrentando dificuldades para tocar o prelúdio da 1ª Suíte de Johann Sebastian Bach. Talvez estivesse nervosa, talvez fosse falta de técnica, muito provavelmente seriam as duas coisas, pois as Seis Suítes de Bach são dificílimas. Músicos jovens podem e devem estudá-las – agora conseguir tocá-las é outra história. Para interpretá-las, só mesmo alguém como Meneses, que gravou o ciclo completo em 2004 (confira aqui sua interpretação do prelúdio da 1ª Suíte).

Meneses estava sentado à frente da moça. No colo, amparava com carinho o seu cello, uma valiosa obra de arte construída há 300 anos pelo mestre napolitano Alessandro Gagliano (1700- c.1735). Quando a moça terminou a execução, Meneses fez algumas observações sobre a maneira como ela empunhava o arco, sobre a dificuldade técnica da suíte e sobre a importância de sempre imaginar como Bach quis que sua música fosse tocada – um exercício muito difícil, pois o mestre de Leipzig morreu em 1750. Estudar música é estudar seus compositores. São anos de estudo e pesquisa. Só quem passa por este calvário, tem chance de se tornar intérprete.

Enquanto Meneses falava, olhei à minha direita e vi no canto da capela um garoto moreno e gordinho. Tinha o violoncelo no colo, permanecia imóvel e parecia tímido. Quando chegou sua vez, sentou-se na cadeira diante de Meneses, que perguntou o que iria tocar? “O Allegro Appassionato, de Saint-Saëns,” respondeu Lucas (confira aqui a interpretação da inglesa Jacqueline du Pré). “Muito bem”, disse Meneses, acenando com a cabeça para Lucas iniciar a execução. E foi o que o garoto fez. Aquele adolescente ainda imberbe tocou e tocou e tocou. Todas as notas estavam no lugar. Aquilo não era tentar fazer música. Aquilo era música!

Meneses se levantou e começou a andar pausadamente de um lado a outro. Vez por outra olhava o teto da capela, apreciando o som, para em seguida voltar os olhos para Lucas e seu violoncelo. Num momento, apoiou-se ao piano de cauda que estava ao seu lado e pareceu deixar de analisar para começar a apreciar a música tangida pelo arco de Lucas. Este, muito sério, totalmente compenetrado, não parava de mergulhar e se aventurar pelo universo de Camille Saint-Saëns (1835-1921).

Quando acabou, o acorde da última frase ecoou ainda por alguns segundos pela capela. Depois, fez-se silêncio. Eu estava boquiaberto. Havia mais uma meia dúzia de músicos na capela, todos mudos. Finalmente, Meneses iniciou um aplauso. Todos o acompanhamos. Lucas estava suando, sem graça, e só conseguiu murmurar duas vezes um “obrigado” meio sem jeito.

“Você melhorou muito desde a última vez que nos vimos. Quanto tempo faz?”, perguntou Meneses. Fazia um ano e meio. “Quantos anos você tem?” Lucas disse que tinha 14. “É engraçado. Meu primeiro recital foi aos 13 anos. E toquei o Allegro Appassionato. Nunca mais toquei essa música”, revelou o homem de 53 anos.
“Lucas, a sua técnica está muito boa. Agora você precisa parar de ser violoncelista e começar a ser músico!” decretou Meneses – e passou a fazer observações sobre a interpretação correta da melodia e o sentimento que o compositor quis passar em cada uma das notas. A master class havia começado.

No meio da pelada

No dia seguinte, voltei ao Preventório umas 9 da manhã, antes de seguir para a entrevista com Maria João e Meneses. A pelada no gramado parecia à mesma. Só os garotos eram diferentes. Lá no meio vi Lucas. Eu tinha que conhecê-lo. “Lucas, Lucas, vem cá, por favor?”. O menino se virou pra mim, saiu do jogo e veio em minha direção. Estava todo suado. Ofegante. Aquilo era bom. O jovem violoncelista “aprendiz de feiticeiro” não era um enclausurado, que só vive para a música. “Lembra de mim, eu vi sua aula com o Meneses ontem. Puxa, muito bom, foi muito bom mesmo!” disse. Ele agradeceu. Fiz o questionário padrão de qualquer repórter e fiquei sabendo que Lucas Martins Barros era mineiro de Belo Horizonte, filho de uma violista da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, e havia começado a estudar violoncelo com 9 anos.

“O que você sentiu quando um músico como Meneses aplaudiu a sua apresentação?” Lucas me olhou incrédulo. “Aplaudiu? Ele aplaudiu, é mesmo?”. Respondi que não só ele como todos na sala. “Puxa! Não percebi. Estava tão nervoso...” A reação do garoto fazia sentido. Quando se entra no universo de um compositor para executar sua obra, finda a execução leva certo tempo para que os sons e acordes desapareçam, e a mente clareie. Mas isso só ocorre com os intérpretes.

Achei que, se Lucas não se lembrava do aplauso, talvez eu lhe fizesse um favor relembrando-o de muito mais. “E você se lembra o que foi que ele disse pra você?” Lucas fez que sim. “Ele disse que agora você tinha que parar de ser violoncelista para começar a ser músico,” repeti. O menino acenou com a cabeça. “Você sabe por que ele disse isso?”, insisti. Lucas, como eu desconfiava, disse não. “Para Meneses, você já é violoncelista.” Lucas se empertigou, abriu os olhos, soltou um suspiro de surpresa... “É mesmo...”, e foi abrindo um sorriso que, espero, recorde para sempre.

De volta ao saguão

“Hoje cedo conversei com aquele menino, o Lucas, que tocou ontem o Allegro Appassionato. Lembra dele?” perguntei a Meneses, enquanto aguardávamos Maria João chegar. “Sim, foi a segunda ou terceira vez que dei aula para ele.” Disse que Lucas não se lembrava de ter sido aplaudido por Meneses. Também contei ter explicado ao garoto o significado (um dos significados) do conselho que Meneses lhe tinha dado, bem como qual foi a sua reação. O violoncelista experiente me olhou e sorriu. “É, Lucas tem talento.”

No instante seguinte, uma senhorinha miúda e sorridente surgiu na porta do hotel. Maria João e Meneses se conheceram diante dos meus olhos. E fomos almoçar.

Passados quatro dias, ao escrever esta coluna continuo me perguntando o enorme desafio que um garoto talentoso como Lucas tem pela frente: deixar de ser violoncelista para se tornar músico, como Maria João Pires e Antônio Meneses.

Não sei se Lucas irá conseguir. Afinal, ser solista é uma glória reservada para muito poucos. Mas torço por ele.

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