O dia em que a pianista Maria João Pires e o violoncelista Antônio Meneses se conheceram - na minha frente!!!
Peter Moon
Embora façam parte da família dos instrumentos de cordas, o piano e o violoncelo não poderiam ser mais diferentes. A beleza do piano é sóbria e imponente. O violoncelo é intimista, feito para ser envolto, quase abraçado pelo artista. As 88 teclas do piano exibem todas as notas disponíveis, o violoncelo as oculta. Elas devem ser achadas pelo músico, ao pressionar o ponto exato de uma das quatro cordas enquanto a tange com o arco. As 220 cordas do piano são invisíveis. Não são dedilhadas, mas percutidas por um martelo acionado por uma tecla – o que faz do piano um instrumento de percussão. Mesmo com tantas diferenças (ou por causa delas), piano e violoncelo se complementam. O som do violoncelo tem a extensão e o timbre da voz humana. A extensão do piano abarca o universo sonoro perceptível a nosso ouvido.
Tocados por grandes músicos, piano e cello viram cúmplices. Iniciam um diálogo envolvente, no qual se aproximam, se distanciam e se encontram. O efeito pode ser apenas encantador ou realmente extraordinário – como se pode esperar de um encontro entre a pianista Maria João Pires e o violoncelista Antônio Meneses.
Os dois se viram pessoalmente pela primeira vez na terça-feira, 6 de julho. Eu estava lá, no saguão do Grande Hotel de Campos do Jordão, na hora do almoço. Maria João e Meneses vieram ao 41° Festival Internacional de Inverno para se apresentar juntos, interpretando obras de Beethoven e Bach. Logo depois de nossa conversa, a dupla iniciou os ensaios para seu primeiro recital, no dia 8, em Campos do Jordão, seguido por um segundo, no dia 9, em São Paulo. O diálogo musical era considerado o ponto alto do festival.
Não é para menos. Ambos estão entre os maiores músicos eruditos em atividade. São dois virtuoses. “Não, virtuose é a palavra errada”, corrige-me Maria João, franzindo a testa. “Antes de tudo somos músicos!” Meneses concorda com um sorriso. Assim como seus instrumentos, Maria João, que completou 66 anos no dia 23 de julho, e Meneses, de 52 anos, são muito diferentes. Maria João é uma senhorinha sorridente e miúda, de aparência frágil. Meneses é um homem grande. Impossível passar despercebido. Em 2006, ela trocou a Europa pelo Brasil. Em 1979, ele fez o caminho inverso.
Meneses é simpático, mas reservado. Tal distância foi adquirida em três décadas na Basileia, na Suíça. Pernambucano do Recife e criado no Rio de Janeiro, Meneses ganhou o mundo graças a seu virtuosismo ao violoncelo. Embora não tenha a mesma fama de Yo-Yo Ma ou Mischa Maysky, Meneses não lhes deixa nada a dever. É solista das melhores orquestras do mundo e, entre 1998 e 2008, participou do trio Beaux Arts. Com o pianista fundador do Beaux Arts, Menahem Pressler, gravou em 2008 a obra completa para piano e violoncelo de Beethoven. Em 2004, já havia registrado o cânone do cello, as Seis suítes de Bach. O programa dos recitais no Brasil incluiu duas sonatas para piano e cello e uma sonata para piano solo, de Beethoven, e a terceira suíte de Bach.
Maria João nasceu em Lisboa. Começou a tocar aos 5 anos. Aos 7, deu o primeiro recital. Aos 20, iniciou uma carreira de concertista internacional, tornando-se artista exclusiva do selo Deutsche Grammophon, o mais prestigioso da música erudita. Uma honra que ela divide com a argentina Martha Argerich, o sérvio Ivo Pogorelich e o chinês Lang Lang (leia Ode à Maria João Pires). Apesar da rotina de viagens, concertos e gravações, Maria João criou quatro filhas (ela tem seis netos. O sétimo está para nascer, razão pela qual deve se ausentar do Brasil nos próximos meses - "para ficar perto da filha").
Quando a última filha saiu de casa, Maria João quis largar a vida de concertista em tempo integral. Decidiu viver no Brasil. Em 2006, comprou uma casa em Lauro de Freitas, perto de Salvador, Bahia, e se mudou com o piano Yamaha. Adotou dois garotos baianos, Lucas e Cláudio, hoje com 14 anos, que devoravam pratos de macarrão enquanto conversávamos. Maria João pediu desculpas por não almoçar. Não se sentia bem. Pediu chá- verde. Depois do voo de Salvador a São Paulo, a família chegou tarde da noite a Campos – e ela ainda fez questão de ir ao mercado comprar comida para o café da manhã. Comeu um pão de queijo que lhe caiu mal. “Nós, vegetarianos, temos estômago sensível”, disse.
Habituou-se ao calor da Bahia? “O problema é o piano. Ele fica numa sala com ar-condicionado, que não tolero. Quando toco, abro as janelas. Se vou à Europa, o piano fica no ar frio. A oscilação de temperatura acaba com ele. Não sei se fico em Salvador. Mas do Brasil não saio. Já tenho a residência. Entrei com pedido de naturalização. Ainda não saiu.”
Os melhores pianos são muito sensíveis. Atingem o auge aos 20 anos, depois começam a decair. Com o violoncelo é o inverso. Um grande instrumento, se bem tocado, melhora com o tempo. O de Meneses tem 300 anos. Foi feito pelo mestre Alessandro Gagliano, de Nápoles. Seus instrumentos só perdem para os Stradivarius e os Guarneri del Gesù, de Cremona.
Pergunto como é para eles tocar Beethoven em instrumentos tão diferentes. “Não é problema”, diz Meneses. “O pianoforte de Beethoven era muito diferente do piano atual. O som era outro.” Pergunto como seria o entrosamento entre dois grandes intérpretes. “Não faço a menor ideia,” diz Meneses, rindo. “Só vamos descobrir no ensaio.” E quanto à visão de cada um da obra de Beethoven: para surgir o diálogo é preciso fazer concessões? “Não, não se fazem concessões”, diz Maria João. “Procura-se chegar a um consenso artístico. Antônio e eu nunca tocamos juntos. O resultado pode ser interessante.”
Interessante? O termo é no mínimo impreciso. Se o piano e o violoncelo se complementam tão bem, esse encontro já devia estar previsto havia mais de 200 anos no alto de alguma das partituras de Beethoven.
Peter Moon
Maria João veio de Salvador e Antônio Meneses da Suíça para dois recitais inéditos no Brasil (foto: Patricia Stauis) |
Tocados por grandes músicos, piano e cello viram cúmplices. Iniciam um diálogo envolvente, no qual se aproximam, se distanciam e se encontram. O efeito pode ser apenas encantador ou realmente extraordinário – como se pode esperar de um encontro entre a pianista Maria João Pires e o violoncelista Antônio Meneses.
Os dois se viram pessoalmente pela primeira vez na terça-feira, 6 de julho. Eu estava lá, no saguão do Grande Hotel de Campos do Jordão, na hora do almoço. Maria João e Meneses vieram ao 41° Festival Internacional de Inverno para se apresentar juntos, interpretando obras de Beethoven e Bach. Logo depois de nossa conversa, a dupla iniciou os ensaios para seu primeiro recital, no dia 8, em Campos do Jordão, seguido por um segundo, no dia 9, em São Paulo. O diálogo musical era considerado o ponto alto do festival.
Não é para menos. Ambos estão entre os maiores músicos eruditos em atividade. São dois virtuoses. “Não, virtuose é a palavra errada”, corrige-me Maria João, franzindo a testa. “Antes de tudo somos músicos!” Meneses concorda com um sorriso. Assim como seus instrumentos, Maria João, que completou 66 anos no dia 23 de julho, e Meneses, de 52 anos, são muito diferentes. Maria João é uma senhorinha sorridente e miúda, de aparência frágil. Meneses é um homem grande. Impossível passar despercebido. Em 2006, ela trocou a Europa pelo Brasil. Em 1979, ele fez o caminho inverso.
Meneses é simpático, mas reservado. Tal distância foi adquirida em três décadas na Basileia, na Suíça. Pernambucano do Recife e criado no Rio de Janeiro, Meneses ganhou o mundo graças a seu virtuosismo ao violoncelo. Embora não tenha a mesma fama de Yo-Yo Ma ou Mischa Maysky, Meneses não lhes deixa nada a dever. É solista das melhores orquestras do mundo e, entre 1998 e 2008, participou do trio Beaux Arts. Com o pianista fundador do Beaux Arts, Menahem Pressler, gravou em 2008 a obra completa para piano e violoncelo de Beethoven. Em 2004, já havia registrado o cânone do cello, as Seis suítes de Bach. O programa dos recitais no Brasil incluiu duas sonatas para piano e cello e uma sonata para piano solo, de Beethoven, e a terceira suíte de Bach.
Maria João nasceu em Lisboa. Começou a tocar aos 5 anos. Aos 7, deu o primeiro recital. Aos 20, iniciou uma carreira de concertista internacional, tornando-se artista exclusiva do selo Deutsche Grammophon, o mais prestigioso da música erudita. Uma honra que ela divide com a argentina Martha Argerich, o sérvio Ivo Pogorelich e o chinês Lang Lang (leia Ode à Maria João Pires). Apesar da rotina de viagens, concertos e gravações, Maria João criou quatro filhas (ela tem seis netos. O sétimo está para nascer, razão pela qual deve se ausentar do Brasil nos próximos meses - "para ficar perto da filha").
Quando a última filha saiu de casa, Maria João quis largar a vida de concertista em tempo integral. Decidiu viver no Brasil. Em 2006, comprou uma casa em Lauro de Freitas, perto de Salvador, Bahia, e se mudou com o piano Yamaha. Adotou dois garotos baianos, Lucas e Cláudio, hoje com 14 anos, que devoravam pratos de macarrão enquanto conversávamos. Maria João pediu desculpas por não almoçar. Não se sentia bem. Pediu chá- verde. Depois do voo de Salvador a São Paulo, a família chegou tarde da noite a Campos – e ela ainda fez questão de ir ao mercado comprar comida para o café da manhã. Comeu um pão de queijo que lhe caiu mal. “Nós, vegetarianos, temos estômago sensível”, disse.
Habituou-se ao calor da Bahia? “O problema é o piano. Ele fica numa sala com ar-condicionado, que não tolero. Quando toco, abro as janelas. Se vou à Europa, o piano fica no ar frio. A oscilação de temperatura acaba com ele. Não sei se fico em Salvador. Mas do Brasil não saio. Já tenho a residência. Entrei com pedido de naturalização. Ainda não saiu.”
Os melhores pianos são muito sensíveis. Atingem o auge aos 20 anos, depois começam a decair. Com o violoncelo é o inverso. Um grande instrumento, se bem tocado, melhora com o tempo. O de Meneses tem 300 anos. Foi feito pelo mestre Alessandro Gagliano, de Nápoles. Seus instrumentos só perdem para os Stradivarius e os Guarneri del Gesù, de Cremona.
Pergunto como é para eles tocar Beethoven em instrumentos tão diferentes. “Não é problema”, diz Meneses. “O pianoforte de Beethoven era muito diferente do piano atual. O som era outro.” Pergunto como seria o entrosamento entre dois grandes intérpretes. “Não faço a menor ideia,” diz Meneses, rindo. “Só vamos descobrir no ensaio.” E quanto à visão de cada um da obra de Beethoven: para surgir o diálogo é preciso fazer concessões? “Não, não se fazem concessões”, diz Maria João. “Procura-se chegar a um consenso artístico. Antônio e eu nunca tocamos juntos. O resultado pode ser interessante.”
Interessante? O termo é no mínimo impreciso. Se o piano e o violoncelo se complementam tão bem, esse encontro já devia estar previsto havia mais de 200 anos no alto de alguma das partituras de Beethoven.
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