Em busca da vala comum dos mortos da Gripe Espanhola em São Paulo
Peter Moon
Na primavera de 1918, quando a pandemia se instalou na cidade, num bairro operário como o Brás os imigrantes, em sua maioria italianos, moravam em cortiços. Os mortos eram postos de manhã nas calçadas e recolhidos por carroças do serviço sanitário. Quem podia pagar pelo enterro – uma minoria – despediu-se dos entes queridos no cemitério da Consolação. Foi lá, no cemitério da Consolação, onde vi pela primeira vez o túmulo de uma vítima da Espanhola. Não era qualquer túmulo. Era o de Rodrigues Alves (1848-1919), presidente da República entre 1902 e 1906. Reeleito no fim de 1918, não chegou a assumir o Palácio do Catete. Morreu de pneumonia causada pela Espanhola. Seu túmulo é um enorme mausoléu rococó que fica no canto esquerdo, bem nos fundos do cemitério.
Na quinta-feira 29 de julho, meu interesse não era ver mausoléus pomposos. Queria achar uma vala comum, uma vala escavada às pressas no Cemitério Goiabeira (havia muitas goiabeiras naquele morro lapeano), criado às pressas para receber centenas de cadáveres da gripe.
Procurei a vala comum dos mortos de 1918. Não achei. Ela sumiu, assim como as goiabeiras que davam nome ao local, hoje conhecido como Cemitério da Lapa. Perguntei a um jardineiro. Seu P. pediu para não revelar o nome. Disse que trabalhava no local há 30 anos e temia represálias da direção do cemitério se eu dissesse a alguém que ele falou comigo – um temor infundado, creio.
Seu P. contou que a vala comum foi exumada pela prefeitura há uns 15 anos (não consegui checar essa informação até o momento). Ele me levou ao local onde era a vala, uma quadra bem no alto do cemitério, hoje coberta por mausoléus bonitos. “Não nos deixaram chegar perto. Veio um trator e começou a remover a terra. Era osso que não acabava mais. Todos os esqueletos foram colocados em mais de 800 sacos. Eles foram guardados lá, naquela casinha no fundo do cemitério”, disse, apontando para uma casa caiada. “Como é que alguém sabe que os ossos de um saco são os da mesma pessoas?”. Não sabem, respondi. “Pois é, não sabem. Nem identificação as ossadas têm”.
A história oral transmitida por quatro gerações de coveiros e que chegou aos meus ouvidos foi a de carrocinhas puxadas por cavalos que chegavam dia e noite, sem parar. “Aqui era um lamaçal. Não tinha caixão nem nada. Os mortos eram jogados na vala e cobertos por cal,” diz Seu P. “Eu sei que foram cobertos por cal porque, quando fizeram a exumação, as roupas e sapatos antigos que não haviam apodrecido e ainda vestiam os esqueletos estavam enegrecidos. Tinham sido queimados pela cal”, diz Seu P. “Aqui embaixo passa um córrego. Nunca poderiam ter feito um cemitério aqui. Esse terreno está condenado. Não pode ser usado para mais nada.”
Na Gripe Espanhola, também houve sepultamentos em túmulos ou só havia a vala comum? “Não, teve enterros sim, senhor. Aqui tem gente enterrada desde o século XIX”, disse Seu P. Não era possível, respondi, informando que o cemitério tinha sido criado em 1918. “Então é isso. Tem gente enterrada dessa época, nos túmulos mais ricos. Seguindo aqui rente ao muro o senhor vai achá-los”.
Foi o que tentei fazer. Desci pela lateral do cemitério, ao lado do muro que ladeia uma avenida. Fui lendo os nomes nas lápides. A maioria era de famílias italianas: Gugliemi, Giometti e Rábano. Aqui e ali havia nomes de famílias portuguesas, algumas alemãs e uma ou outra de japoneses. Alguns túmulos estavam cuidados. Muitos outros, abandonados. Inúmeras placas de bronze com o nome das famílias haviam desaparecido – possivelmente furtadas. Ainda assim, dava para ler os nomes a partir da mancha indelével que o sol e a chuva deixaram, marcando o contorno das placas desaparecidas.
Andei, andei, andei. O sol a pino do meio-dia. O cemitério estava vazio. Apenas um gato apareceu calmo na minha frente. Parou, me olhou, talvez esperando alguma comida. Como eu não tinha, o felino (o da foto) prosseguiu seu caminho e sumiu no meio de duas lápides.
Não achei nenhuma sepultura de 1918. As mais antigas são da década de 1940. Uma única, de uma menina de 16 anos que Seu P. chama de santa, é de 1922. Ele garante que a menina Benta morreu de gripe. Mas não deve ter sido da Espanhola, pois esta desapareceu tão repentinamente quanto surgiu, em 1920.
Toda aquela história de pandemia e valas comuns tinha me dado fome. Era hora do almoço. Saí de lá e fui detonar um Xis bacon salada... ;)
P.S:
Para quem estranhou este meu itinerário urbano de férias, uma explicação. Estou escrevendo um livro sobre as pandemias de gripe, começando com a Gripe Russa de 1889-1903 até chegar à Gripe Suína de 2009. Daí meu interesse pela vala comum do Cemitério Goiabeira. Preciso voltar ao cemitério. Preciso ir à administração ver se existe algum registro com os nomes dos mortos jogados na vala comum. Seu P. diz que este livro existe, “todo comido por traças”. É o que pretendo descobrir.
Peter Moon
Na primavera de 1918, quando a pandemia se instalou na cidade, num bairro operário como o Brás os imigrantes, em sua maioria italianos, moravam em cortiços. Os mortos eram postos de manhã nas calçadas e recolhidos por carroças do serviço sanitário. Quem podia pagar pelo enterro – uma minoria – despediu-se dos entes queridos no cemitério da Consolação. Foi lá, no cemitério da Consolação, onde vi pela primeira vez o túmulo de uma vítima da Espanhola. Não era qualquer túmulo. Era o de Rodrigues Alves (1848-1919), presidente da República entre 1902 e 1906. Reeleito no fim de 1918, não chegou a assumir o Palácio do Catete. Morreu de pneumonia causada pela Espanhola. Seu túmulo é um enorme mausoléu rococó que fica no canto esquerdo, bem nos fundos do cemitério.
O gato do cemitério da Lapa |
Procurei a vala comum dos mortos de 1918. Não achei. Ela sumiu, assim como as goiabeiras que davam nome ao local, hoje conhecido como Cemitério da Lapa. Perguntei a um jardineiro. Seu P. pediu para não revelar o nome. Disse que trabalhava no local há 30 anos e temia represálias da direção do cemitério se eu dissesse a alguém que ele falou comigo – um temor infundado, creio.
Seu P. contou que a vala comum foi exumada pela prefeitura há uns 15 anos (não consegui checar essa informação até o momento). Ele me levou ao local onde era a vala, uma quadra bem no alto do cemitério, hoje coberta por mausoléus bonitos. “Não nos deixaram chegar perto. Veio um trator e começou a remover a terra. Era osso que não acabava mais. Todos os esqueletos foram colocados em mais de 800 sacos. Eles foram guardados lá, naquela casinha no fundo do cemitério”, disse, apontando para uma casa caiada. “Como é que alguém sabe que os ossos de um saco são os da mesma pessoas?”. Não sabem, respondi. “Pois é, não sabem. Nem identificação as ossadas têm”.
A história oral transmitida por quatro gerações de coveiros e que chegou aos meus ouvidos foi a de carrocinhas puxadas por cavalos que chegavam dia e noite, sem parar. “Aqui era um lamaçal. Não tinha caixão nem nada. Os mortos eram jogados na vala e cobertos por cal,” diz Seu P. “Eu sei que foram cobertos por cal porque, quando fizeram a exumação, as roupas e sapatos antigos que não haviam apodrecido e ainda vestiam os esqueletos estavam enegrecidos. Tinham sido queimados pela cal”, diz Seu P. “Aqui embaixo passa um córrego. Nunca poderiam ter feito um cemitério aqui. Esse terreno está condenado. Não pode ser usado para mais nada.”
Na Gripe Espanhola, também houve sepultamentos em túmulos ou só havia a vala comum? “Não, teve enterros sim, senhor. Aqui tem gente enterrada desde o século XIX”, disse Seu P. Não era possível, respondi, informando que o cemitério tinha sido criado em 1918. “Então é isso. Tem gente enterrada dessa época, nos túmulos mais ricos. Seguindo aqui rente ao muro o senhor vai achá-los”.
Foi o que tentei fazer. Desci pela lateral do cemitério, ao lado do muro que ladeia uma avenida. Fui lendo os nomes nas lápides. A maioria era de famílias italianas: Gugliemi, Giometti e Rábano. Aqui e ali havia nomes de famílias portuguesas, algumas alemãs e uma ou outra de japoneses. Alguns túmulos estavam cuidados. Muitos outros, abandonados. Inúmeras placas de bronze com o nome das famílias haviam desaparecido – possivelmente furtadas. Ainda assim, dava para ler os nomes a partir da mancha indelével que o sol e a chuva deixaram, marcando o contorno das placas desaparecidas.
Andei, andei, andei. O sol a pino do meio-dia. O cemitério estava vazio. Apenas um gato apareceu calmo na minha frente. Parou, me olhou, talvez esperando alguma comida. Como eu não tinha, o felino (o da foto) prosseguiu seu caminho e sumiu no meio de duas lápides.
Não achei nenhuma sepultura de 1918. As mais antigas são da década de 1940. Uma única, de uma menina de 16 anos que Seu P. chama de santa, é de 1922. Ele garante que a menina Benta morreu de gripe. Mas não deve ter sido da Espanhola, pois esta desapareceu tão repentinamente quanto surgiu, em 1920.
Toda aquela história de pandemia e valas comuns tinha me dado fome. Era hora do almoço. Saí de lá e fui detonar um Xis bacon salada... ;)
P.S:
Para quem estranhou este meu itinerário urbano de férias, uma explicação. Estou escrevendo um livro sobre as pandemias de gripe, começando com a Gripe Russa de 1889-1903 até chegar à Gripe Suína de 2009. Daí meu interesse pela vala comum do Cemitério Goiabeira. Preciso voltar ao cemitério. Preciso ir à administração ver se existe algum registro com os nomes dos mortos jogados na vala comum. Seu P. diz que este livro existe, “todo comido por traças”. É o que pretendo descobrir.
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