Como a Amazônia derrotou o maior industrial da história

Peter Moon


Na lista da Amazon.com dos cem melhores livros publicados nos Estados Unidos em 2009, entre as obras de não-ficção há dois livros sobre a Amazônia brasileira. Um deles é Z - A cidade perdida, a biografia do coronel Percy Fawcett, o explorador inglês que sumiu em Mato Grosso em 1925, enquanto procurava a fabulosa cidade do título. O segundo livro começa na mesma época em que Fawcett se embrenhou na floresta. É Fordlândia - Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva (Rocco, 400 páginas, R$ 56), do historiador da Universidade de Nova York Greg Grandin.



As casinhas de Fordlândia em 1930 (acima) e a cidade em ruínas (abaixo).
Fordlândia era um latifúndio com 1 milhão de hectares e 300 mil seringueiras, situado às margens do Rio Tapajós e distante ainda hoje um dia e meio de viagem de barco de Santarém, no Pará. O projeto foi criado em 1928 para abastecer de látex as fábricas da Ford nos Estados Unidos. No meio da floresta foi erguida uma cidade com centenas de casas pré-fabricadas, armazéns, hospital, lojas e cinema. Era como se um subúrbio americano tivesse sido encaixotado e despachado para os trópicos.


Fordlândia seria o lar de milhares de trabalhadores brasileiros e americanos. Henry Ford (1863-1947) queria replicar na floresta o modelo de negócio com o qual se tornou o primeiro magnata da indústria automobilística. Ele era obcecado pelo domínio de todas as etapas da cadeia de produção industrial, sempre visando reduzir custos. Cada parafuso de seus carros (assim como o chassi e a carroceria) era produzido com o minério de ferro extraído de suas minas e transformado em aço em suas siderúrgicas, alimentadas por carvão de suas minas. Para dominar o ciclo completo, faltava produzir látex, a matéria-prima dos pneus.

Em 1928, o ciclo da borracha na Amazônia há muito havia terminado. Entre 1870 e 1900, a totalidade do látex consumido no mundo saiu de Belém e Manaus, gerando uma enorme riqueza que foi desperdiçada, entre outras coisas, na construção do belíssimo Teatro Amazonas, em Manaus. No início do século XX, a participação brasileira no mercado de látex começou a minguar. Quem passou a dominá-lo foram os seringais da Malásia. Suas mudas tinham sido contrabandeadas do Brasil em 1876 pelo inglês Henry Wickham – cuja saga foi contada em outro bom livro recente, O ladrão no fim do mundo (2008), de Joe Jackson. Natural da Amazônia, a seringueira, ou Hevea brasiliensis, produzia mais no Sudeste Asiático. Não era atacada pelas pragas que havia no Brasil.

Ford, o homem que tentou domar a Floresta Amazônica, foi um dos grandes protagonistas do capitalismo moderno. Caipira que tinha ojeriza a leite de vaca (ele só tomava leite de soja), ele nasceu numa fazenda no Estado de Michigan, perto da pequena Detroit, que viria a se tornar a sede da indústria automobilística mundial por boa parte do século XX. Como muitos caipiras, Ford sentia desconforto na cidade grande. Evitava ir a Nova York ou Chicago. Ele também não perdia tempo lendo livros, desconfiava dos intelectuais e detestava os políticos de Washington e os banqueiros de Wall Street. Antissemita, Ford dizia que os judeus estavam tomando o controle econômico e político da América.

Ford só se sentia bem no campo – ou no interior de suas fábricas. Ele acreditava no valor do trabalho simples e metódico – como a ordenha das vacas, uma tarefa repetitiva e com hora marcada. Ford foi o responsável pela transposição do taylorismo, a filosofia administrativa do século XIX responsável pelo cartão de ponto dos escritórios de Manhattan, para o chão de fábrica da Ford Motor Company, montadora que fundou em 1903 e que ainda é dirigida por um de seus bisnetos. O sonho de Ford era fazer um carro popular, acessível ao bolso da classe operária americana. Em 1908, lançou o famoso Modelo T, que ficou conhecido no Brasil como “Ford bigode”. Era um carro simples, robusto, com peças padronizadas e intercambiáveis. Todos eram idênticos. “Qualquer consumidor pode ter um carro da cor que quiser, contanto que seja preto” é sua frase mais famosa.

Na Ford, tudo era pensado tendo em vista minimizar custos e maximizar a produção. Em 1909, a fábrica empregava 1.600 operários e fez 14 mil carros. Em 1912, 19 mil pessoas fizeram 160 mil. O grande salto veio em 1913, com a introdução da linha de montagem. Certa vez, Ford contou que tirou a inspiração das “linhas de desmontagem” dos matadouros, em que os açougueiros retiram partes das carcaças enquanto estas seguem numa corrente.

Com a linha de montagem, a produção explodiu. O tempo de fabricação de um carro caiu de 12 horas para 90 minutos. Em 1915, foram feitas 400 mil unidades com 19 mil operários. Em 1918, 50% dos carros nos Estados Unidos eram Modelos T. E seu preço era a metade do de 1908.

Na linha de montagem, o trabalho era repetitivo e era proibido conversar. Metade dos operários se demitia com menos de um ano de fábrica. Contratar e treinar substitutos consumia tempo e reduzia o potencial de produção. Em 1915, Ford dobrou os salários dos funcionários, que passaram a morar em bairros planejados com casas confortáveis. Eles também eram incentivados a economizar para comprar um Modelo T. Para impedir os empregados de torrar o ganho extra com mulheres, jogo e bebida, fiscais visitavam cada casa, interrogando as famílias para saber se levavam uma vida regrada.

Foi armado com esse bem-sucedido arsenal de organização e métodos que Ford decidiu enfrentar a floresta. Da infância na fazenda, Ford extraiu a lição de que, para cada praga, havia um remédio. Para retomar a produção de látex no Brasil a preços competitivos e produzir ele mesmo os pneus (em vez de comprá-los da Goodyear), bastaria aplicar a lógica da produção em massa nos seringais no Pará. Na Amazônia, crescem cerca de cinco seringueiras por hectare.

No auge do ciclo da borracha, os seringueiros vagavam semanas pela mata coletando o látex das árvores. Aos olhos de Ford, o método tradicional não era prático nem lógico. Em Fordlândia seria diferente. Longe das cidades, dos políticos e dos bancos, Ford poderia reproduzir o ambiente saudável da fazenda de sua infância numa terra inexplorada. Seriam plantadas centenas de milhares de seringueiras num espaçamento preciso, visando maximizar a coleta do látex.

A “ordenha” das árvores seguiria uma rotina precisa, cronometrada. Ford arrendou suas terras do governo do Pará. O pagamento seria na forma de um porcentual do preço do látex exportado. Os empregados ganhariam dez vezes mais que um trabalhador brasileiro nos anos 1920. Em contrapartida, teriam de usar crachás e trabalhar nas horas mais quentes do dia. E nada de bares nem bordéis. Em Fordlândia, eles eram proibidos.

O resultado dessa utopia funcional foi um desastre. A reunião maciça de mudas foi um chamariz para a pior praga do seringal, um fungo que destrói as folhas e mata a árvore. Em 1930, o controle moral da vida dos caboclos levou-os ao motim. Para se salvar, os gerentes americanos se embrenharam no mato. Em 1940, com a Segunda Guerra Mundial, os seringais da Malásia caíram na mão dos japoneses. Foi quando Fordlândia ganhou breve sobrevida – apenas para ser definitivamente abandonada em 1945, com o lançamento do látex sintético. Em 20 anos, Ford enterrou no projeto meio bilhão de dólares em valores de hoje. Passados 60 anos, a cidade continua lá. As casas viraram ruína. Só a grande torre está em pé. Nela, ainda se lê, esmaecido, o nome Ford. É o que sobrou.

Originalmente publicado em ÉPOCA, em 06/11/2009.

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