Fidel Castro: “O modelo cubano não funciona”

Aos 84 anos, Fidel castro critica o gigantismo do Estado cubano, demonstra simpatia para com os judeus e adverte o Irã para o risco de uma guerra nuclear

Peter Moon


Em 2008, um ano antes de completar meio século na presidência de Cuba, o ditador Fidel Castro passou o cargo ao irmão caçula, Raúl. Fidel estava muito doente e precisava ser submetido a um longo tratamento. O governo cubano nunca revelou qual seria o mal que afligia o líder máximo da revolução comunista de 1959. Sabe-se apenas que a doença era grave e estava ligada ao sistema digestivo. Fidel, o homem alto, magro, de barba grisalha e eternamente trajando uma farda verde-oliva igual à dos tempos do chefe-guerrilheiro de Sierra Maestra, de repente saiu de cena. O vozeirão de um dos maiores ícones maior da esquerda latino-americana (o outro é seu companheiro de luta “Che” Guevara), capaz de discursar ao povo cubano em praça público por horas a fio, vociferando contra o imperialismo ianque, se calou.

Foram quase dois anos de silêncio, com pouquíssimas aparições públicas. Sabia-se apenas que Fidel continuava vivo, pois volta e meia saía publicada no Granma, o diário oficial do Partido Comunista, alguma carta sua atacando o avanço dos biocombustíveis, cujo cultivo seria para Fidel uma ameaça à produção de alimentos. Nestes dois anos, Fidel lutou contra o seu maior inimigo, a saúde, e venceu, assim como venceu todos os inimigos políticos do passado. Mas qualquer doença muito grave deixa seqüelas. Com Fidel não seria diferente.

Hoje com 84 anos, Fidel recuperou a saúde e a vontade de interferir nos destinos de Cuba - e do planeta. Apesar de velho e frágil – ele anda com a ajuda de dois guarda-costas – sua mente continua clara e a voz poderosa. Mas suas crenças mudaram. A proximidade da morte deve ter levado Fidel a reavaliar a sua biografia e fazer um acerto de contas com os erros que cometeu no passado. Esta é uma das explicações plausíveis – mas não a única – para explicar o teor surpreendente das declarações revisionistas e dos pedidos de desculpas que Fidel começou a ventilar na imprensa internacional.

O primeiro pedido formal de desculpas veio em 31 de agosto, quando Fidel admitiu ao jornal mexicano La Jornada que seu governo perseguiu homossexuais nas décadas de 1960 e 1970. “Aqueles foram momentos de muita injustiça.” Na época, gays e lésbicas foram exonerados de cargos públicos, presos ou enviados a campos de trabalho forçado. “Se alguém deve ser responsabilizado por isto, sou eu.”

Aquela Mea culpa foi apenas o aperitivo. O prato principal começou a ser servido na semana passada, e em doses homeopáticas, através dos posts do jornalista americano Jeffrey Goldberg, no site da revista The Atlantic. Goldberg é o autor da reportagem de capa da edição de setembro da Atlantic. Após falar por meses com dezenas de fontes no Irã, nos Estados Unidos e em Israel, Goldberg conclui que um ataque aéreo israelense ao Irã é iminente, caso as sanções econômicas impostas pelas Nações Unidas obrigando Teerã a abandonar seu programa nuclear não surta efeito. O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, negou diversas vezes a existência do holocausto judeu na 2ª Guerra Mundial. Ele chama Israel de “entidade sionista” e promete varrê-la do mapa. Segundo Goldberg, para o governo israelense um Irã nuclear é a maior ameaça ao povo judeu desde Adolf Hitler. Daí a iminência de um ataque, que segundo Goldberg ocorrerá o mais tardar até março de 2011.

A reportagem de Goldberg repercutiu no mundo todo. Fidel ficou preocupado. A tensão latente do Oriente Médio pode ter feito o líder cubano recordar a Crise dos Mísseis de 1962. Após a fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos em 1961, promovida por cubanos expatriados e financiada pela CIA, Fidel temia a iminência de uma invasão americana. Pediu aos soviéticos para instalar mísseis em Cuba. Seu pedido quase arrastou o mundo a uma catástrofe termonuclear. No auge da crise, Fidel pediu ao então premiê soviético Nikita Kruschev que bombardeasse os Estados Unidos. Para Fidel, em 2010 uma ameaça semelhante paira sobre a paz: a iminência do ataque israelense ao Irã. Sua voz precisava voltar a ser ouvida. Fidel escolheu Goldberg como seu porta-voz.

Foi com surpresa que Goldberg recebeu há poucas semanas a ligação de um diplomata cubano, transmitindo o convite de Fidel para o jornalista entrevistá-lo em Havana. Goldberg chamou a amiga Julia Sweig, uma especialista em política cubana do Conselho de Relações Exteriores, em Washington.

O primeiro dia da entrevista começou com uma declaração de apoio de Fidel ao povo judeu. “Não conheço ninguém que tenha sido mais caluniado que os judeus. Eles são caluniados e culpados por qualquer coisa. Ninguém culpa os muçulmanos por nada. Não há nada que se compare ao Holocausto”, afirma Fidel, “Estou dizendo isto para que você comunique” Ahmadinejad. A seguir, Fidel expôs o seu temor de um ataque israelense. “A capacidade iraniana de retaliação está subavaliada.” O presidente americano Barack “Obama poderia ter uma reação exagerada e uma escalada gradual poderia tornar-se uma guerra nuclear”.

Para a analista Julia Sweig, as declarações de Fidel têm um motivo: “Fidel começa a reinventar a si mesmo, não como um chefe de Estado, mas um líder internacional. Ele ganhou um tempo de vida que não esperava ter. Está revisitando a história, e revisitando a própria história”.

Mas nenhuma reavaliação poderia ser mais bombástica do que aquela reservada para a hora do almoço. Perguntado se o modelo cubano ainda poderia ser exportado, disse: “O modelo cubano não serve mais nem para nós mesmos.” A declaração permaneceu no ar. Fidel não fez novos comentários. Apenas continuou comendo sua refeição frugal, um prato de salada, peixe, pão com azeite e um copo de vinho tinto.

A interpretação de Julia é a seguinte: “Fidel não está rejeitando as ideias da revolução. Foi um reconhecimento que, sob o ‘modelo cubano’ o estado assumiu um papel grande demais na economia”. 

Apesar de semi-aposentado, Fidel usa o seu poder de influência para ajudar o irmão Raúl nas reformas econômicas liberalizantes. Raúl já legalizou a existência de pequenos negócios familiares e até a compra de imóveis por investidores estrangeiros. Mas Raúl sofre resistências da facção linha-dura do PC e da burocracia. Eles são os destinatários mais prováveis do recado de Fidel sobre o fracasso do modelo cubano.

A repercussão da crítica de Fidel ao modelo cubano foi imediata e mundial. Na 6a-feira, 10 de setembro, apenas 48 horas após suas declarações, Fidel fez uma aparição pública na Universidade de Havana para afirmar que tinha sido mal interpretado pelo jornalista americano e que teria afirmado "exatamente o oposto. É o regime capitalista que não serve nem mais para os Estados Unidos". A atitude pode ser interpretada como um recuo estratégico momentâneo. Mas com relação à defesa dos judeus e o alerta a Ahmadinejad sobre o risco de um conflito em larga escala no Oriente Médio, Fidel não retrocedeu palavra.

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