Havia mamutes no Brasil?

A descoberta em Rondônia do enorme dente molar de um elefante extinto levanta a possibilidade dos mamutes terem habitado a América do Sul

Peter Moon
Após 20 anos esquecido num laboratório, fóssil de dente de 
mamute pode ser uma das mais importantes descobertas da 
paleontologia na América do Sul
Até a julho de 2010, acreditava-se que os mamutes só habitaram a Europa, a Sibéria e a América do Norte até se extinguir a 10 mil anos – e que jamais atingiram a América do Sul. Os fósseis de mamute mais ao sul que se conhece foram achados na Costa Rica, na América Central. Os mamutes americano e siberiano são espécies extintas de elefantes. São primos em primeiro grau dos elefantes africano e asiático. A América do Sul era território exclusivo do mastodonte – um parente distante dos elefantes. Será mesmo? Esta história pode estar a um passo de ser reescrita. Tudo por causa de um único e enorme dente molar de 12 centímetros e 45 mil anos. Ele foi achado em 1990. Estava a 20 metros de profundidade, no garimpo de Taquara, às margens do rio Madeira, em Rondônia. 

Durante a corrida do ouro de Rondônia, nos anos 1980, os garimpeiros usavam balsas para dragar o fundo do rio Madeira e seus afluentes. Ao lavar o lodo do fundo dos rios à procura de pepitas, era comum achar ossos e dentes de animais extintos, em sua maioria mastodontes. O enorme molar achado pelo garimpeiro Chico da Pampa parecia apenas mais um dente de mastodonte. Por isso, Pampa doou o fóssil a Miguel Sant’Anna, do Laboratório de Paleontologia da Universidade Federal de Rondônia (Unir), em Porto Velho. Como acontece com a maioria dos fósseis, aquele dente foi guardado numa gaveta e esquecido por anos. Não se trata de desleixo. Nada disso. Acontece em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos e Europa. A razão é simples: todo ano se acha mais fósseis do que a comunidade mundial de paleontólogos – que não é grande - consegue estudar.

O dente ficou esquecido por 20 anos, até a paleontóloga Ednair Rodrigues do Nascimento, da Unir, pousar seus olhos nele. “Logo pensei em elefantes”. Ednair procurou seu orientador, o argentino Mario Cozzuol, de 50 anos, paleontólogo na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Ao ver o fóssil, Mario também enxergou um elefante. O dente foi apresentado à comunidade científica em 21 de julho, no 7º Simpósio Brasileiro de Paleontologia de Vertebrados, realizado no Rio de Janeiro. E se tornou a sensação do encontro.

Mamute ou capivara gigante?
Eu fiquei sabendo da descoberta do dente de mamute através de uma torrente frenética de mensagens trocadas entre os membros do fórum da Society of Vertebrate Paleontology, que ameaçavam entupir a minha caixa postal. 

A foto do dente, publicada no jornal Folha de S.Paulo, correu o mundo através da internet. Quando bati os olhos nela, soube de imediato que não se tratava de um dente de mastodonte. Não sou paleontólogo, sou historiador da ciência. Mas já vi dentes de mastodonte suficientes para reconhecer a diferença. Agora imaginar que se trataria de um mamute ou de uma mega-capivara estava muito além do meu parco conhecimento. Mas esta era exatamente a discussão travada no fórum. 

Eu não tinha como opinar. Só me restava acompanhar a troca de e-mails. A maioria dos especialistas afirma que o dente seria de uma capivara – não de elefante. Como um dos meus principais interesses é estudar a fauna extinta da América do Sul, eu sabia que na Venezuela há 8 milhões de anos existiu um roedor de 3 metros e 700 quilos (a capivara atual, o maior roedor vivo, tem 40 kg), a Phoberomys pattersoni. Também lembrava que, há poucos anos, acharam no Uruguai os restos de um roedor ainda maior, o Josephoartigasia monesi. O bicho viveu entre 4 e 2 milhões de anos, tinha o tamanho de um hipopótamo e pesava uma tonelada. 

Embora enormes, aqueles roedores eram pequenos demais para possuir uma boca que comportasse molares de 12 centímetros. Uma capivara com dentes deste tamanho teria que ser maior que um elefante africano, de 3,5 metros de altura e 5 toneladas. Imaginei uma capivara do tamanho de um megatério, a maior das preguiças terrestres, com 8 metros de altura. Foi o que escrevi no fórum. 

“A Josephoartigacia e a Phoberomys não eram capivaras, mas dinomídeos, uma família de roedores sul-americana totalmente diferente, da qual só resta hoje a pacarana,” corrigiu-me Mario no fórum. Segundo ele, a maior das capivaras era a Neochoerus, já extinta. Seu maior dente tinha 5 cm de comprimento e 1 cm de largura. “O molar de que estamos falando tem 15 cm de comprimento e 5 cm de largura. Não consigo imaginar outra coisa do que um elefante, provavelmente um mamute,” diz. 

“Não gosto de usar a palavra mamute, porque as pessoas logo pensam num elefante peludo,” disse Mario, prosseguindo nossa conversa ao telefone. “Prefiro classificá-lo como Elephas, o gênero dos elefantes.” Mario e Ednair preparam um estudo sobre o dente para publicação numa revista científica. Pergunto a ele se é possível descrever uma nova espécie unicamente a partir de um dente. Mario respondeu que não o faria. Só se achar mais fósseis do animal. Mas existe jurisprudência. Em 1994, o paleoantrolólogo americano Tim White publicou na capa da revista Nature a foto de um único dente da espécie Ardipithecus ramidus, um ancestral humano de 4,5 milhões de anos. Somente com aquele dente, White descreveu a nova espécie.


À esquerda, o mamute (maior) e o mastodente. À direita, os roedores
Josephoartigasia monesi (acima) e Phoberomys pattersoni

















Um pouco de história
A possível descoberta de elefantes (ou mamutes) na América do Sul é um evento comparável ao achado dos primeiros fósseis de mamutes e mastodontes. A primeira menção de um elefante congelado ou mamute, como era chamado pelas tribos da Sibéria, foi feita pelo explorador holandês Eberhard Ysbrants Ides (1657-1708). Ides teria avistado uma carcaça de mamute enterrada no permafrost, o solo permanentemente congelado da Sibéria, em 1692, durante sua viagem de três anos até Pequim, acompanhando o embaixador russo indicado pelo czar Pedro, o Grande. 

No século XVIII, diversos fósseis de mamutes foram achados na Sibéria, e alguns foram parar nos primeiros museus de história natural, como o de Paris. Foi lá que o grande anatomista barão Georges Cuvier (1769-1832), considerado o pai da paleontologia, revelou a identidade dos fósseis siberianos. Cuvier percebeu que pertenciam a uma espécie de elefante diferente das vivas, a africana e a asiática. No dia 15 do Germinal do ano IV do calendário da Revolução Francesa (ou 4 de abril de 1796), Cuvier leu em público o seu estudo intitulado Les espèces d’éléphants fossiles comparées aux espèces vivantes (as espécies de elefantes fósseis comparadas às espécies viventes), onde afirmou que os mamutes diferiam do elefante tanto quanto o cachorro difere do chacal e da hiena. Assim como o cachorro tolera o frio do norte, enquanto chacal e a hiena vivem nos trópicos, poderia ter acontecido o mesmo com aqueles elefantes peludos, os mamutes extintos.

Foi Cuvier também quem identificou os mastodontes americanos. Em 1739, nas barrancas do rio Ohio (que fazia parte da colônia do Canadá e hoje pertence ao estado americano do Kentucky), tropas do comandante francês Barão Charles de Lougueuil encontraram ossos enormes, incluindo uma presa, um fêmur e três molares. Os restos daquele que ficaria conhecido como o “animal de Ohio” foram enviados ao Gabinete do Rei (o futuro Museu de História Natural), em Paris. A primeira tentativa de identificação foi feita em 1762, por Louis Jean Marie Daubenton (1716-1800). Pautado em uma minuciosa análise de anatomia comparada, Cuvier anunciou, em 1806, que aquele animal era uma outra espécie extinta de elefante, a qual deu o nome de mastodonte. 

Mais de 200 anos após Cuvier apresentar os mamutes e os mastodontes ao mundo, eis que surge a possibilidade da existência de uma nova espécie desconhecida de elefantes. E logo na América do Sul, onde se acreditava que aqueles paquidermes nunca haviam pisado – apenas seus primos distantes, os mastodontes.

Publicado originalmente em ÉPOCA Online, em 23/07/2010.

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