Queimadas no Acre revelam formas geométricas gigantes, obra de povos amazônicos pré-históricos
Peter Moon, de Rio Branco (AC)
Saindo de Rio Branco, pega-se a BR 317 em direção a Boca do Acre (AM). O asfalto, todo remendado, desaparece depois de alguns quilômetros, dando lugar a um retão de chão vermelho batido que, com a passagem do automóvel, desprende uma poeira densa, obrigando o motorista a ligar os faróis mesmo à luz do dia. À direita e à esquerda da estrada o que se vê são vastas áreas abertas pelo fogo para dar lugar a um pasto que abriga milhares de cabeças. Ao fundo, a mais de um quilômetro de distância, termina o pasto e começa a mata, cerrada, exuberante e milenar – exatamente como se espera que a floresta amazônica o seja. Visto da estrada, o sítio do “Seu” Jacó poderia se confundir com dezenas de outros espalhados por esse fim de mundo brasileiro. É preciso descer do carro, atravessar a porteira e andar uns 100 metros, rapidinho, bem no meio de dezenas de nelores com olhar desconfiado, para subir uma lombada de terra de uns dois metros de altura e entender por que o sítio do Seu Jacó é um lugar especial.
Diante de uma lombada há uma valeta de três metros de profundidade e diante dela uma nova lombada. Quem está no alto de alguma das duas observa os arredores em posição privilegiada. Quem desce a valeta se sente no fundo de um poço. Essa formação lombada-valeta-lombada estende-se em linha reta por uns 80 metros, quando quebra num ângulo reto para, 80 metros depois, completar o segundo braço de um quadrilátero imenso. Em seu interior, um círculo perfeito de 70 metros de diâmetro. Observada de um avião, voando a 500 metros do solo, a formação não dá uma idéia da enorme quantidade de terra deslocada durante a sua construção. Mas impressiona pela beleza de suas linhas. Parecem ter sido traçadas por um projetista gigante, dono de um esquadro monumental, tamanha a precisão com que suas arestas se encontram. Mas, como gigantes não existem, quem foi o povo responsável pela construção daquelas estruturas encravadas bem no meio da floresta? Que técnicas usaram para erigir formas tão perfeitas?
Daniken – A primeira imagem que vem à mente é a dos animais esculpidos no solo do deserto de Nazca, no Peru. Descobertos em 1927, eles teriam sido feitos há 3000 anos. Vistos do solo, as figuras peruanas parecem linhas sem-fim que se perdem no horizonte. Só de bem alto, a 1.500 metros de altura, suas formas começam a fazer sentido. Compõem um beija-flor, uma abelha e um macaco. Tais figuras ficaram famosas nos anos 70, quando o escritor suíço Erich von Daniken publicou o livro (vendeu milhões de exemplares), mais tarde transformado em filme documentário, Eram os deuses astronautas? Ele defendia a teoria de que certas civilizações, como a dos astecas, teriam sido visitadas por alguma forma de vida extraterrestre inteligente. Daí a justificativa de figuras que só fazem sentido quando vistas de muito alto. Contam os antropólogos, porém, que a intenção dos índios autores daquelas obras de arte milenares era enternecer os deuses, convencendo-os a fazer chover. Há 700 quilômetros de distância, no sítio do Seu Jacó, a chuva faz falta só mesmo nos meses de inverno, entre junho e agosto. Afinal, estamos na Amazônia acreana. No resto do ano chove e muito. Perguntado para que servem aquelas formas no solo do seu sítio, Jacó de Sá Queiroz, um cearense grisalho que não aparenta os 83 anos que tem, responde sem pestanejar: “É trincheira dos bolivianos do tempo da guerra.”
Revolta – O conflito a que ele se refere não é a Segunda Guerra Mundial, aquela mesma que o fez sair de Sobral em 1943 para se alistar entre os 80 mil “soldados da borracha” que invadiram os seringais do Acre para reviver de forma fugaz o ciclo da borracha. Seu Jacó fala da revolta do Acre, travada entre 1902 e 1903, que resultou na compra daquele Estado à Bolívia pelo governo brasileiro, um ano depois. O antigo seringueiro conta que tem aquele sítio desde 1955, quando toda a área era mata fechada. “Tirei tronco, queimei, limpei o mato, fiz tudo sozinho. Foi aí que descobri as trincheiras”, diz. Além do enorme quadrado, o sítio também possui um quadrilátero maior, de 150 metros de lado. “E no sítio do meu vizinho, o Chiquinho, tem outro”, diz o velhinho.
Segundo o arqueólogo Marcos Vinicius Neves, do Museu da Borracha em Rio Branco, o nome destas formações é geoglifo. Cerca de 20 deles foram descobertos no leste do Acre desde 1977, quando uma expedição escavou os primeiros dez, encontrando neles cacos de cerâmica branca e machados de pedra. Os geoglifos se espalham pelos vales dos rios Acre, Iquiri e Abunã, entre Rio Branco e Xapuri. Todos são geométricos, têm entre 50 metros e 350 metros de diâmetro e são muito, muito antigos: entre 800 e 2.500 anos de idade. No Brasil, só há um local com estruturas semelhantes: o vale do rio Juruá, no oeste do Amazonas. Lá existe uma aldeia cercada por valas de terra onde se planta ananás, um tipo de abacaxi com folhas espinhentas e cortantes, que se transformam numa barreira defensiva.
No caso do Acre, onde ainda existem tribos isoladas da civilização, não se conhece população indígena que construa estruturas como os geoglifos do sítio do Seu Jacó. Até o momento que a vegetação que os cobria foi – por sorte ou por azar – queimada, os geoglifos encontravam-se esquecidos. Como 90% do Acre continua floresta intocada, quantos outros geoglifos ainda não há por descobrir? Indo além: a floresta foi derrubada para a sua construção (e depois, voltou a crescer), ou os geoglifos são anteriores à floresta?
“Há que se perguntar se a floresta estava aqui quando as estruturas foram feitas”, pondera o paleontólogo Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre, que participou da expedição original. Sabe-se que a floresta amazônica é jovem, formou-se há 13 mil anos com o fim da chamada última idade do gelo. Antes disso, toda a região era composta por savanas, uma vegetação baixa e aberta onde viviam preguiças, camelos, tartarugas, mastodontes e jacarés, todos gigantes. Quem sabe a savana tenha resistido por mais tempo em algumas regiões como aqui no Acre, facilitando o trabalho dos índios pré-históricos?
Publicada originalmente em ISTOÉ, em 23/05/2000.
Peter Moon, de Rio Branco (AC)
Saindo de Rio Branco, pega-se a BR 317 em direção a Boca do Acre (AM). O asfalto, todo remendado, desaparece depois de alguns quilômetros, dando lugar a um retão de chão vermelho batido que, com a passagem do automóvel, desprende uma poeira densa, obrigando o motorista a ligar os faróis mesmo à luz do dia. À direita e à esquerda da estrada o que se vê são vastas áreas abertas pelo fogo para dar lugar a um pasto que abriga milhares de cabeças. Ao fundo, a mais de um quilômetro de distância, termina o pasto e começa a mata, cerrada, exuberante e milenar – exatamente como se espera que a floresta amazônica o seja. Visto da estrada, o sítio do “Seu” Jacó poderia se confundir com dezenas de outros espalhados por esse fim de mundo brasileiro. É preciso descer do carro, atravessar a porteira e andar uns 100 metros, rapidinho, bem no meio de dezenas de nelores com olhar desconfiado, para subir uma lombada de terra de uns dois metros de altura e entender por que o sítio do Seu Jacó é um lugar especial.
Diante de uma lombada há uma valeta de três metros de profundidade e diante dela uma nova lombada. Quem está no alto de alguma das duas observa os arredores em posição privilegiada. Quem desce a valeta se sente no fundo de um poço. Essa formação lombada-valeta-lombada estende-se em linha reta por uns 80 metros, quando quebra num ângulo reto para, 80 metros depois, completar o segundo braço de um quadrilátero imenso. Em seu interior, um círculo perfeito de 70 metros de diâmetro. Observada de um avião, voando a 500 metros do solo, a formação não dá uma idéia da enorme quantidade de terra deslocada durante a sua construção. Mas impressiona pela beleza de suas linhas. Parecem ter sido traçadas por um projetista gigante, dono de um esquadro monumental, tamanha a precisão com que suas arestas se encontram. Mas, como gigantes não existem, quem foi o povo responsável pela construção daquelas estruturas encravadas bem no meio da floresta? Que técnicas usaram para erigir formas tão perfeitas?
Daniken – A primeira imagem que vem à mente é a dos animais esculpidos no solo do deserto de Nazca, no Peru. Descobertos em 1927, eles teriam sido feitos há 3000 anos. Vistos do solo, as figuras peruanas parecem linhas sem-fim que se perdem no horizonte. Só de bem alto, a 1.500 metros de altura, suas formas começam a fazer sentido. Compõem um beija-flor, uma abelha e um macaco. Tais figuras ficaram famosas nos anos 70, quando o escritor suíço Erich von Daniken publicou o livro (vendeu milhões de exemplares), mais tarde transformado em filme documentário, Eram os deuses astronautas? Ele defendia a teoria de que certas civilizações, como a dos astecas, teriam sido visitadas por alguma forma de vida extraterrestre inteligente. Daí a justificativa de figuras que só fazem sentido quando vistas de muito alto. Contam os antropólogos, porém, que a intenção dos índios autores daquelas obras de arte milenares era enternecer os deuses, convencendo-os a fazer chover. Há 700 quilômetros de distância, no sítio do Seu Jacó, a chuva faz falta só mesmo nos meses de inverno, entre junho e agosto. Afinal, estamos na Amazônia acreana. No resto do ano chove e muito. Perguntado para que servem aquelas formas no solo do seu sítio, Jacó de Sá Queiroz, um cearense grisalho que não aparenta os 83 anos que tem, responde sem pestanejar: “É trincheira dos bolivianos do tempo da guerra.”
Revolta – O conflito a que ele se refere não é a Segunda Guerra Mundial, aquela mesma que o fez sair de Sobral em 1943 para se alistar entre os 80 mil “soldados da borracha” que invadiram os seringais do Acre para reviver de forma fugaz o ciclo da borracha. Seu Jacó fala da revolta do Acre, travada entre 1902 e 1903, que resultou na compra daquele Estado à Bolívia pelo governo brasileiro, um ano depois. O antigo seringueiro conta que tem aquele sítio desde 1955, quando toda a área era mata fechada. “Tirei tronco, queimei, limpei o mato, fiz tudo sozinho. Foi aí que descobri as trincheiras”, diz. Além do enorme quadrado, o sítio também possui um quadrilátero maior, de 150 metros de lado. “E no sítio do meu vizinho, o Chiquinho, tem outro”, diz o velhinho.
Segundo o arqueólogo Marcos Vinicius Neves, do Museu da Borracha em Rio Branco, o nome destas formações é geoglifo. Cerca de 20 deles foram descobertos no leste do Acre desde 1977, quando uma expedição escavou os primeiros dez, encontrando neles cacos de cerâmica branca e machados de pedra. Os geoglifos se espalham pelos vales dos rios Acre, Iquiri e Abunã, entre Rio Branco e Xapuri. Todos são geométricos, têm entre 50 metros e 350 metros de diâmetro e são muito, muito antigos: entre 800 e 2.500 anos de idade. No Brasil, só há um local com estruturas semelhantes: o vale do rio Juruá, no oeste do Amazonas. Lá existe uma aldeia cercada por valas de terra onde se planta ananás, um tipo de abacaxi com folhas espinhentas e cortantes, que se transformam numa barreira defensiva.
No caso do Acre, onde ainda existem tribos isoladas da civilização, não se conhece população indígena que construa estruturas como os geoglifos do sítio do Seu Jacó. Até o momento que a vegetação que os cobria foi – por sorte ou por azar – queimada, os geoglifos encontravam-se esquecidos. Como 90% do Acre continua floresta intocada, quantos outros geoglifos ainda não há por descobrir? Indo além: a floresta foi derrubada para a sua construção (e depois, voltou a crescer), ou os geoglifos são anteriores à floresta?
“Há que se perguntar se a floresta estava aqui quando as estruturas foram feitas”, pondera o paleontólogo Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre, que participou da expedição original. Sabe-se que a floresta amazônica é jovem, formou-se há 13 mil anos com o fim da chamada última idade do gelo. Antes disso, toda a região era composta por savanas, uma vegetação baixa e aberta onde viviam preguiças, camelos, tartarugas, mastodontes e jacarés, todos gigantes. Quem sabe a savana tenha resistido por mais tempo em algumas regiões como aqui no Acre, facilitando o trabalho dos índios pré-históricos?
Publicada originalmente em ISTOÉ, em 23/05/2000.
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