Eram os jesuítas astronautas?

Astrônomo do Papa diz que batizaria Ets – “não importa quantos tentáculos tivessem”

Peter Moon

“Espaço, a fronteira missionária final. Estas são as viagens da nave estelar Jesus Enterprise, em sua missão catequizadora de cinco anos, à procura de novos pagãos, novas civilizações hereges, audaciosamente indo onde nenhum jesuíta jamais esteve”. Já imaginaram uma versão missionária do seriado Jornada nas estrelas? No século XXIII, o capitão James T. Kirk e um cristão-novo do planeta Vulcano, o Dr. Spock, teriam como principal missão catequizar novos mundos, atraindo novas almas para o rebanho da Igreja Católica? Como Jornada nas estrelas é um seriado de ficção-científica, nada nos impede de botar um pouquinho de tempero ficcional religioso na história. 


Guy Consolmagno, astrônomo do Vaticano
Seguindo esta ótica revisionista cristã da ficção-científica, imagine como poderia ser Aliens, o resgate (1986). O filme começa em 2179, quando um pelotão de fuzileiros espaciais (space marines) desperta do hiper-sono. Sua nave entrou em órbita do planetóide LV-426, no sistema Zeta-2-Reticuli. Foi lá, em 2122, que os ocupantes da nave Nostromo foram exterminados por uma forma fascinante de vida: Alien, o oitavo passageiro (1979). Na nossa nova seqüência do filme original, os fuzileiros são “soldados de Deus” (God’s marines, em inglês), uma das alcunhas como são conhecidos os jesuítas. Sua missão é defender a cristandade interestelar e propagar a fé e a doutrina católicas entre as almas desgarradas, tenham elas tentáculos ou não, entre os infinitos mundos pagãos na Via Láctea. 

Quem se lembra dos filmes da série sabe que, apesar de monstros sanguinários, os aliens eram até certo ponto racionais. Ora, onde há razão existe uma alma, assim prega a Igreja. Logo, desde que a Companhia de Jesus foi criada em 1534 por Santo Inácio de Loyola, a missão primeira de qualquer jesuíta é resgatar almas desgarradas, trazendo-as através da salvação do batismo para o rebanho da Igreja. Em 2179, pelo menos na nossa versão do filme, não será diferente. O primeiro dever de um jesuíta do espaço é tentar catequizar alienígenas. 

Nos séculos XVI e XVII, foi exatamente isto o que as hostes da Companhia de Jesus fizeram com dezenas de milhões de índios americanos, os pagãos do Novo Mundo. A diferença entre a realidade passada e a ficção futura é que, se há 500 anos os índios batizados foram escravizados - e os que recusaram a catequese foram exterminados - quem entrará pelo cano em 2179 serão os jesuítas do espaço. Nossa refilmagem não é uma ficção de horror. É um filme de humor negro. Ao tentar catequizar os monstros, nossos jesuítas do espaço são trucidados ou viram incubadores de aliens. 

Parece ridículo? Será mesmo? Mas o ridículo é inerente às afirmações do jesuíta Guy Consolmagno, 57, um astrônomo do Vaticano. Consolmagno deu uma palestra, no dia 17, no British Science Festival, em Birmingham. A palestra ocorreu durante a controvertida visita ao Reino Unido de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI. Consolmagno disse ser fã de ficção-científica e afirmou que adoraria batizar um alienígena – embora admita ser remota a chance de um dia fazermos contatos imediatos de terceiro grau com vida inteligente extraterrestre. 

“Deus é maior que a humanidade”. Na Idade Média, diz Consolmagno, a definição de alma era ter inteligência, livre arbítrio, liberdade para amar e liberdade para tomar decisões. “Estas características podem não ser únicas aos humanos. Qualquer entidade – não importa quantos tentáculos tenha – possui uma alma. Eu adoraria se achássemos vida em outros lugares. Ficaria encantado se achássemos vida inteligente.” Mas Consolmagno batizaria um ET? “Só se me pedissem.” Santo Inácio de Loyola (1491-1556) imaginaria que sua missão catequizadora um dia seria alçada às esferas siderais? 

Consolmagno deve ter sido um pesquisador brilhante. Se não o fosse, certamente não teria sido aceito nos anos 1980 como professor de Ciência Planetária na Universidade Harvard e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Em 1989, a vocação religiosa falou mais alto, e aquele americano de Detroit entrou para a Companhia de Jesus. 

O irmão Consolmagno é hoje curador da coleção de meteoritos do Observatório do Vaticano. Ele acredita na necessidade da ciência e da religião andarem lado-a-lado. Em 2006, disse: “a religião precisa da ciência para se manter longe da superstição e próxima da realidade, protegendo-a do criacionismo, que no final das contas é uma forma de paganismo, ao transformar Deus num deus da natureza”. É uma afirmação irretocável. Revela um religioso que não deixa a fé embotar sua razão. Ou não? 

Até a semana passada, Consolmagno parecia ser uma das pouquíssimas vozes cientificamente educadas no Vaticano, cujo pontífice é o mais conservador em muitas décadas. Antes de ser eleito Papa, o cardeal Ratzinger, jamais esqueçamos, era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o atual nome da Santa Inquisição, aquela mesma que por séculos prendeu, torturou e queimou na fogueira dezenas de milhares de pessoas acusadas de bruxaria e heresia. 

Onde foi parar a lucidez científica de Consolmagno? Será que ele crê de verdade que a missão evangelizadora da Igreja - e a ação missionária dos jesuítas em particular - se estende aos confins da galáxia? Consolmagno acha mesmo que seria capaz de convencer um alienígena que o filho de Deus escolheu a forma humana para fundar a Sua Igreja num planeta minúsculo, em órbita de uma estrela insignificante entre outras 100 bilhões de estrelas da Via Láctea? É muita pretensão. Coitadinho de ET, o extraterrestre. Nesta visão evangelizadora cósmica, seu destino seria virar coroinha.

Publicado originalmente em ÉPOCA Online, em 23/09/2010.

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