A evolução contra a escravidão

Peter Moon

“Não conheço maior homem sobre a Terra”, dizia o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau a respeito de Lineu. Nos anos 1730, o naturalista sueco Carl von Linné (1707-1778) resolveu classificar toda a criação divina – ou, pelo menos, todos os seres vivos conhecidos naquele tempo – a partir de suas semelhanças anatômicas. Trabalhando sozinho na Universidade Uppsala, na Suécia, classificou milhares de espécies da flora e da fauna. Certo dia, viu-se num impasse. Onde colocaria o ser humano? Estabelecer uma classificação da criação divina que não incluísse o homem seria uma perigosa heresia. Lineu inseriu a nossa espécie entre os mamíferos, na ordem primata, ao lado de chimpanzés e gorilas. Embora lógica, a solução suscitava heresia ainda pior. Lineu não poderia botar o homem no mesmo patamar dos macacos. Para a Igreja, dentre toda a criação, apenas o homem era dotado de racionalidade – e de uma alma imortal. Por isso, Lineu criou um gênero exclusivo para nós, o Homo, e batizou-nos de Homo sapiens, o “homem sapiente”, em seu Sistema geral da natureza (1758).


Aglutinar toda a humanidade em uma única espécie criou novo problema. Se fôssemos todos iguais, como seria possível aos homens de fé – e às cabeças coroadas cuja majestade era dada por Deus – justificar o colonialismo europeu, exercido por brancos cristãos “civilizados” sobre os povos “bárbaros”, fossem eles amarelos, negros ou índios? A única mácula na biografia de Lineu foi criar “variedades” para o Homo sapiens: o europaeus, o asiaticus, o afer e o americanus. O que as diferenciava era o nível de consciência, que atingia seu ápice nos europeus. No extremo oposto estavam os negros, dotados de uma consciência suficiente apenas para diferenciá-los das feras. “Lineu rotulou o Homo afer de astuto, preguiçoso e libidinoso”, lê-se em A causa sagrada de Darwin – Raça, escravidão e a busca pelas origens da humanidade, de Adrian Desmond e James Moore (Record, 672 páginas, R$ 74,90). “A calúnia pegou, manchando a reputação de todos os povos de pele escura.”

A rotulagem lineana da humanidade sobreviveu até 1800, quando o médico alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) substituiu-a por outra, de fundo bíblico. Blumenbach dividiu a humanidade em raças. Substituiu os termos afer e asiaticus por negroide e mongoloide. Os brancos viraram caucasianos, os descendentes do povo de Noé. Eles sobreviveram ao dilúvio universal embarcando na grande arca. Quando as águas baixaram, a arca encalhou no Monte Ararat, no Cáucaso. Negros e amarelos também sobreviveram, mas não pela mão divina. Logo, eram espiritualmente inferiores aos brancos.

Estava criado um novo arcabouço “científico-teológico” para justificar a escravatura nas Américas. Se os negros eram incapazes de distinguir a justiça da brutalidade animal, eles jamais compreenderiam a injustiça de que eram vítimas. Nada sentiriam quando separados à força de suas famílias na África. Não sofreriam empilhados nos porões asfixiantes dos navios negreiros para a travessia do Atlântico, na qual um quarto “da carga” se perdia.

Aos sobreviventes restava uma rotina brutal. O trabalho começava antes de o sol nascer e terminava após as 10 da noite, quando então podiam comer. Dormia-se uns pares de horas antes de o suplício recomeçar, 365 dias por ano, pelo resto de suas curtas vidas. De cada cem escravos, só 25 ainda estariam trabalhando após três anos. Daí a necessidade do tráfico. Os donos de engenho brasileiros e caribenhos e os senhores das plantations americanas precisavam repor a mão de obra para manter o comércio de açúcar e algodão com a Europa.

Foi nesse contexto que, no fim do século XVIII, surgiu na Inglaterra o movimento abolicionista. Um membro eloquente foi Erasmus Darwin (1731-1802). Médico, filósofo e poeta, Erasmus foi avô de Charles Darwin (1809-1882), o cientista mais influente da história. Em 1859, ao publicar A origem das espécies, Darwin desvendou o segredo da evolução pelo mecanismo da seleção natural – aquilo que o biólogo inglês Richard Dawkins chamou, em seu novo livro, de O maior espetáculo da Terra (Companhia das Letras, 475 páginas, R$ 53).

Erasmus e Charles nunca se conheceram, mas o ideal abolicionista foi transmitido ao neto por suas tias. Nos anos 1820, quando Darwin trocou o curso de medicina em Edimburgo pela futura carreira de pastor na Universidade de Cambridge, o abolicionismo era a questão mais candente do Reino Unido. O Parlamento abolira a escravidão nas colônias britânicas e ordenara à Marinha Real apresar qualquer navio negreiro. Por pressão britânica, Dom Pedro I abolira o tráfico em 1826, o que fez o contrabando florescer. Ele era exercido às claras, como Darwin viu em Botafogo, no Rio de Janeiro, em 1832, no início de sua célebre volta ao mundo a bordo do Beagle.

Historiadores da ciência, Desmond e Moore dedicaram suas vidas a Darwin. Em 1991, publicaram uma biografia definitiva. Não é mais. Com a contínua publicação de novos volumes da Correspondência de Darwin (já são 17 tomos) e a descoberta de novas cartas (em 1991, eram 9 mil, hoje são 15 mil), emergiu uma nova visão dos motivos que levaram Darwin a empreender a saga intelectual que acabou por tirar o Homo sapiens do centro da criação – e empoleirá-lo num galho da árvore da vida. Para os autores, o motivador de Darwin foi o abolicionismo. Ele odiou a escravidão no instante em que pisou no Brasil. A teoria da evolução surgiu como fruto da busca da igualdade entre os homens. 

Originalmente publicado em Época, em 04/12/2009.

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