Jeffrey Sachs - “A culpa da crise é do presidente Bush”

Na semana da quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, o economista americano Jeffrey Sachs alertou nesta entrevista exclusiva para uma séria recessão nos Estados Unidos - que se realizou - e revelou os seus temores com o mundo atual. Para Sachs, a situação internacional lembra o mundo de 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial.

Peter Moon (em 2008)

O choque no mercado financeiro não deverá levar a uma depressão como a da década de 1930, afirma o economista americano Jeffrey Sachs, da Universidade Colúmbia. Mas é pouco provável que os Estados Unidos escapem de uma séria recessão. E ela vai afetar o mundo inteiro – inclusive o Brasil. Sachs, hoje com 55 anos, é um dos mais respeitados estudiosos do desenvolvimento sustentável do mundo. E é cauteloso: não arrisca um palpite sobre o tamanho e a duração da crise. Mas já elegeu o maior responsável pela recessão. É o presidente americano, George W. Bush. Nesta entrevista, Sachs aponta os caminhos que considera essenciais para enfrentar não apenas os problemas financeiros, mas outros grandes desafios da humanidade: a crise de energia, de falta de alimentos e de água.


Peter Moon – Quando o banco Bear Sterns quebrou, em março, o senhor disse que a crise não seria tão severa como a Grande Depressão. Mantém a mesma opinião? 
Jeffrey Sachs – Quando fiz essa previsão, salientei que ainda não sabíamos o que estava acontecendo em Wall Street nem quais seriam suas implicações para a economia mundial. Mesmo hoje, os efeitos do choque nos mercados financeiros sobre a economia real dos Estados Unidos e do resto do mundo permanecem um tanto incertos. A Grande Depressão dos anos 1930 não ocorreu apenas por causa de um grande choque no mercado financeiro, mas também por causa de camisas-de-força daquela época, como foi o caso do padrão-ouro (sistema monetário pelo qual cada banco era obrigado a lastrear seus títulos em ouro). Não temos esse tipo de camisas-de-força hoje. Portanto, não acredito em depressão. Creio que teremos uma recessão americana e que o resto do mundo sofrerá um desaquecimento. Se isso é correto ou não, ainda não dá para dizer. O que se vê neste momento é o tombo dos mercados financeiros. A economia real em diversos países continua crescendo. Apesar disso, eu diria que, agora, as chances de os Estados Unidos sofrerem uma séria recessão são muito elevadas.

Moon – A bancarrota do Lehmann Brothers foi a maior da História. Qual é o fundo do poço? 
Sachs – Agora vamos descobrir qual era o valor real dessas instituições. Elas claramente desempenharam um papel decisivo na expansão da bolha imobiliária. Mas não é óbvio que tenham tido um papel crítico na canalização de capital para as indústrias. Portanto, o seu desaparecimento não tem o mesmo significado que o colapso do setor bancário nos anos 1930. Naquela época, quando os bancos comerciais quebraram, aquilo significou o colapso dos meios de pagamento da economia. O crédito industrial desapareceu. Não acho que o mesmo ocorrerá hoje. Ficaria muito surpreso se essas quebras resultarem em um colapso como o que aconteceu na Argentina em 2001 ou na crise da Ásia em 1997. Não acho que os Estados Unidos vão enfrentar esse mesmo tipo de crise no balanço de pagamentos. Haverá, sim, uma correção de rumo na economia, após muitos anos de gastança irrefreada.

Moon – Quem é o culpado pela crise? 
Sachs – É difícil não culpar a administração Bush. Com sua visão de curto prazo, ela adotou uma política econômica irresponsável com enormes déficits orçamentários. O Federal Reserve (o banco central americano), sob a direção de Allan Greenspan (de 1987 a 2006), tem sua parcela de responsabilidade, porque criou as bases para a bolha imobiliária ao manter o custo do dinheiro tão baixo por tanto tempo. A falta de regulação do mercado financeiro também leva parte da culpa. A alta dos preços da energia complicou ainda mais o cenário econômico. Mas, graças a suas políticas monetária e fiscal, a maior responsabilidade pela crise é do presidente Bush.

Moon – E o Brasil? Vai ser afetado? 
Sachs – Como qualquer outro país, o Brasil não está livre dos efeitos da instabilidade nos mercados financeiros e na economia internacional. Essa imunidade não existe. Mas sou um grande otimista com relação ao Brasil. Em áreas cruciais para o planeta, como a produção de energia e alimentos, o país é capaz de oferecer soluções. O Brasil possui vastos e crescentes recursos energéticos e um potencial enorme como exportador de recursos naturais. Possui uma plataforma tecnológica diversificada e um sistema financeiro forte. Outro fator importante é a melhora geral da educação, especialmente a secundária, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos próximos anos, veremos o Brasil se tornar cada vez mais forte. É claro que existem problemas, como os persistentes bolsões de pobreza no Nordeste.

Moon – Como o mundo vai sair da crise? 
Sachs – O mundo se tornou totalmente interdependente. O tamanho da economia mundial é enorme e continua crescendo, graças à expansão econômica na China, na Índia e no Brasil. Essa recessão em algum momento vai passar. E aí as exigências em termos de energia, recursos naturais, água e biodiversidade vão aumentar dramaticamente. É por causa dessas limitações que devemos criar uma nova forma de economia. Ela precisa ser muito mais cooperativa em termos globais e centrada em tecnologias sustentáveis. O alto preço da energia e o choque climático, com o aumento do número de furacões no Caribe e tufões na Ásia, são sintomas de um mundo que está fora de controle. É um mundo em que a economia e o meio ambiente estão seguindo por um caminho insustentável, enquanto os líderes mundiais ficam estupefatos, sem fazer nada.

Moon – É esse o tema de seu livro, Common Wealth (Riqueza Comum). Que soluções o senhor apresenta? 
Sachs – O ponto central do livro é que não existem soluções simples nem baratas para resolver a crise de energia, garantir o abastecimento de água e a produção de alimentos. Mas a tecnologia e o conhecimento para solucionar esses desafios existem. Sua implementação depende do surgimento de novas lideranças econômicas, científicas e tecnológicas dispostas a estabelecer uma cooperação internacional. É precisamente o contrário do que aconteceu nos Estados Unidos nos últimos oito anos – e que temos agora a chance de alterar, caso os eleitores decidam mudar de direção.

Moon – Tudo depende da eleição americana? 
Sachs – Os problemas não vão desaparecer nem serão resolvidos por si sós. O liberalismo não é a solução para todas as coisas. Os Estados Unidos chegaram ao ponto em que se encontram hoje por causa da incompetência de sua administração nos últimos oito anos, um governo de uma inépcia chocante, que colocou sua ideologia acima da ciência. Eu temo que, caso John McCain seja eleito, qualquer boa idéia que tivermos seja ignorada em nome, por exemplo, de uma nova guerra.

Moon – Pesquisas em vários países apontam Barack Obama como o preferido no mundo. 
Sachs – Bom, eu não creio que o mundo escolheria errado diante da visão elitista e unilateral de McCain. Para mim, ele representa a política americana dos anos 1970. Não está afinado com os desafios atuais. Ele é obcecado com o extremismo islâmico. Para McCain, esse é o desafio central do nosso tempo, não a fome, a escassez de água, a pobreza e as mudanças climáticas. Na minha opinião, esses problemas são compartilhados por toda a humanidade e sua solução deveria ser compartilhada por todos. Fazendo isso, teríamos a chance de viver numa era com muito menos confrontos. Estou preocupado com a eleição presidencial. Seu resultado definirá se os políticos americanos começarão a buscar soluções para nossos problemas ou se continuarão numa espiral de conflitos.

Moon – Os desafios são enormes: crise econômica global, alteração climática, extremismo islâmico. O senhor é otimista? 
Sachs – Procuro ser sempre o mais realista possível, portanto temo que algo possa dar terrivelmente errado. Estou muito preocupado. Espero sinceramente que os desafios que enfrentamos, e que se aprofundam com a crise econômica, não desemboquem em um cenário parecido com o de 1914, porque aquele mundo praticamente se destruiu. Os efeitos devastadores da Primeira Guerra Mundial foram sentidos nas décadas seguintes, através da Grande Depressão dos anos 1930 e da Segunda Guerra Mundial. A História não precisava ter acontecido daquele jeito. Mas foi como ocorreu, porque permitimos. É sob essa ótica que enxergo a crise atual. Seria profundamente irresponsável se nós permitíssemos que uma ruptura como aquela acontecesse de novo. Não acho que os fatos se sucedam automaticamente nem que seja obra do destino ou da irracionalidade humana. A grande questão não é saber até onde vai a crise, mas garantir que o pior cenário jamais aconteça.

Entrevista publicada originalmente em ÉPOCA, em 19/09/2008.

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