Prazer, sou Ardi, sua tataravó

Ela tem 4,4 milhões de anos. Tem mãos iguais às nossas. É o achado mais importante em 40 anos

Peter Moon

É o mais perto que nós já chegamos do elo perdido, o espécime comum entre a espécie humana e os demais primatas. Seu nome é Ardi, a fêmea de uma espécie que carrega traços tanto humanos quanto simiescos. Ardi viveu na Etiópia, há 4,4 milhões de anos. Seu esqueleto, apresentado ao mundo na semana passada, é o mais completo de todos os hominídeos, as espécies nossas ancestrais. Sua espécie, a Ardipithecus ramidus, se encaixa perfeitamente no quebra- -cabeça evolutivo. Ela estabelece uma ponte entre fósseis muito primitivos de 7 milhões de anos, que mais pareciam gorilas, e a pequena Lucy, a célebre “avó da humanidade”, que viveu na Tanzânia há 3,5 milhões de anos.


Ardi viveu na Etiópia. Tinha 1,20 metro e 50 quilos. 
Era bípede, e talvez pegasse objetos com 
mãos similares às nossas
Um milhão de anos antes de Lucy, Ardi já caminhava sobre as duas pernas – mas também pulava de galho em galho. E era grande. Com 1,20 metro de altura e pesando 50 quilos, Ardi tinha o tamanho de um chimpanzé adulto, nosso mais próximo parente vivo. Seu cérebro também tinha volume semelhante ao de um chimpanzé. Mas as semelhanças param por aí. O traço mais impressionante de Ardi são suas mãos. Não são as mãos de um macaco. Elas são assustadoramente humanas. As mãos são a melhor ferramenta do Homo sapiens. Graças à versatilidade delas (com seu polegar opositor) aprendemos a lascar pedras e fazer fogo. Foi com elas que Shakespeare escreveu Hamlet e Michelangelo pintou a Capela Sistina. Daí a surpresa dos especialistas ao perceber que nossas mãos não são exclusividade humana – nem modernas. Elas são muito antigas.

Ardi é um enigma. Até sua descoberta, acreditava-se que o ancestral comum entre homens e chimpanzés fosse um chimpanzé mais inteligente. O simples fato de Ardi ter existido descarta essa hipótese. Agora, dizem seus descobridores, sabemos que o elo perdido era muito mais humano. O Homo sapiens é o elo mais recente – e nada revolucionário – de uma linhagem muito longa. Quem mudou, quem evoluiu rapidamente e se diferenciou foram os chimpanzés e os gorilas. Ninguém sabe ainda por quê. “Ardi é a coisa mais próxima que se conhece do ancestral comum. Ela tem traços que ninguém viu antes”, disse o antropólogo americano Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley, na apresentação do novo fóssil, no dia 1o de outubro, na sede da Associação Americana para o Progresso da Ciência, em Washington.

Em 1871, Charles Darwin escandalizou o mundo ao afirmar, em A descendência do homem, que o ser humano e o chimpanzé descendiam de um ancestral comum, “o elo perdido”. Pai da teoria da evolução, Darwin disse que seria impossível arriscar quais eram as características daquele ancestral, o que só poderia ser feito ao encontrar seu fóssil. Na falta dele, a alternativa seria olhar os gorilas e chimpanzés. Ao estudar suas semelhanças e diferenças com o homem, previu Darwin, poderíamos imaginar como teria sido o elo perdido.

Foi o que fizeram gerações e gerações de antropólogos. Ao seguir essa lógica, os cientistas construíram a imagem de um ancestral comum que remete a um chimpanzé primitivo. As várias espécies de hominídeos descobertas no século XX só reforçaram esse modelo. O exemplar mais completo era Lucy, da espécie Australopithecus afarensis, achada, em 1974, na Tanzânia. Há 3,5 milhões de anos, Lucy havia descido das árvores para ser bípede. Ela era incontestavelmente humana. O elo perdido com traços simiescos, portanto, tinha de ser mais antigo. Em 2003, o avanço da genética permitiu comparar o DNA de homens e chimpanzés. Descobriu-se que partilhamos 98,5% dos mesmos genes. Considerando a velocidade média das mutações, o elo perdido viveu há 6 milhões.

A história evolutiva da humanidade remete ao mito do herói. Nesse caso, nosso herói era um macaco indefeso. Ele não era dotado da força nem das presas e garras das feras selvagens. Sua única faculdade era a inteligência. Fazendo uso de seu dom, ele enfrentou os caprichos da natureza e lutou pela sobrevivência para, finalmente, tornar-se humano. Quanto aos chimpanzés, teriam permanecido nas florestas da África, vivendo num estado de inocência primitiva, como sempre o fizeram, catando e comendo piolhos uns dos outros.

Trata-se de uma visão bela e romântica. Graças a Ardi, agora sabemos que não condiz com a realidade. “Lucy era um ícone entre os fósseis. Desde sua descoberta, sempre que imaginávamos como seriam nossos ancestrais, Lucy vinha à mente – ou um chimpanzé”, diz o antropólogo C. Owen Lovejoy, da Universidade Estadual Kent, de Ohio. “Essas suposições estavam erradas. Ardi é nossa grande irmã mais velha.”


O esqueleto de Ardi, composto de crânio, braços, mãos,
bacia, pés e pernas, é o mais completo de um ancestral
humano
O esqueleto de Ardi foi achado no vale do Rio Awash, no Deserto de Afar, Etiópia. Os primeiros fósseis foram escavados em 1994. De lá para cá, uma equipe de 47 cientistas de todo o mundo encontrou milhares de fragmentos de mais de 110 indivíduos da espécie Ardipithecus ramidus – que quer dizer, no idioma da tribo afar, raiz do macaco terrestre. Do fóssil de Ardi sobreviveram partes do crânio, o maxilar com vários dentes e fragmentos de braços, mãos, bacia, pernas e pés. Os ossos estavam muito fragmentados e deformados. Corriam o risco de pulverizar com um simples toque. Por isso, a equipe gastou 15 anos coletando, limpando e estudando tudo com o máximo de cuidado. Os fragmentos do crânio foram tomografados pelo antropólogo japonês Gen Suwa, da Universidade de Tóquio. Suwa precisou de nove anos e 1.000 horas de computação gráfica para reconstruir um crânio virtual de Ardi. O resultado final é um alentado dossiê com 11 estudos, publicado na última edição da revista americana Science.

Por que não publicar as inúmeras descobertas aos poucos, em vez de esperar 15 anos até ter o estudo completo?, perguntei a Tim White, o líder da pesquisa. “Quinze anos versus 4,4 milhões de anos. Não vejo problema. Essa descoberta foi como achar uma cápsula do tempo de um período e um lugar do qual nada sabíamos”, diz White. “Além do esqueleto de Ardi na capa da Science, coletamos 150 mil amostras de animais, madeira e do solo. Há roedores, há morcegos, são dezenas de espécies antes desconhecidas. Para estudar essa avalanche de dados, reunimos os melhores especialistas do mundo para dissecar essas relíquias únicas e apresentar os resultados da forma mais ampla possível. Sim, levou 15 anos. Mas valeu a pena.”

Há 4,4 milhões de anos, a região de Awash era muito diferente da paisagem inóspita atual. Havia rios, lagos e bosques, que abrigavam uma fauna muito variada, com diversas espécies de cervos, elefantes, peixes, porcos-espinhos e macacos. Os dentes de Ardi mostram que, como nós, ela comia de tudo: frutas, raízes e carne.

“Ardi era muito primitiva. Os humanos retiveram alguns daqueles traços primevos”, diz Lovejoy. O melhor exemplo são nossas mãos. “É provável que a mão humana seja mais primitiva que a dos chimpanzés.” Olhe sua mão e entenda. Estique os dedos. Todos se projetam para a frente, apesar de o polegar poder se mover para o lado. Agora, coloque a palma da mão sobre uma superfície lisa. Você pode apoiar o peso do braço nela. Ardi fazia o mesmo. Suas mãos eram parecidas com as nossas, embora seu polegar fosse mais curto e os outros dedos mais longos. Desde Ardi, essa anatomia flexível está presente em todos os hominídeos. Mas não nos chimpanzés. Eles são incapazes de esticar a palma da mão, pois seu polegar é virado para o lado. Essa característica permite aos chimpanzés segurar melhor nos galhos das árvores, garantindo-lhes uma destreza arbórea que nos escapa. Há 4,4 milhões de anos, Ardi devia trepar em árvores de forma lenta e cuidadosa. Não tinha a mesma agilidade dos chimpanzés. Um milhão de anos depois, a tribo de Lucy perdeu essa habilidade. Sua espécie, a afarensis, era tão desajeitada em árvores como a nossa.

Se as mãos humanas são uma herança que Ardi nos legou, o mesmo não se pode dizer dos pés. Apesar de Ardi ser bípede, os dedões dos pés eram virados para o lado, como nos chimpanzés. Isso significa que Ardi não podia caminhar por longas distâncias, muito menos correr. Essa habilidade evoluiu com Lucy. Já os chimpanzés e gorilas ficam em pé eventualmente, mas não caminham. Para se locomover, eles fecham as patas dianteiras e se apoiam sobre os nódulos do dedos, coisa que Ardi nunca fez. Para os cientistas, andar apoiando-se nos dedos das mãos é uma adaptação recente dos chimpanzés, cuja anatomia evoluiu rápido nos últimos milhões de anos.

Já a mão humana é o fac-símile de um modelo anterior, que se encontra praticamente estagnado desde os tempos de Ardi. O mesmo argumento vale para o fato de sermos bípedes. Daí os cientistas inferirem que ambos os atributos são muito antigos. Eles datam do elo perdido. “O estudo de Ardi nos fez concluir que o último ancestral comum é bem mais velho que os estudos de DNA indicam”, diz White. “O ancestral viveu de 6 milhões a 9 milhões de anos atrás e tinha mãos como as nossas.”

Não havia grande diferença de tamanho entre os machos e fêmeas dos ramidus – um traço marcante nos gorilas machos, muito maiores que as fêmeas. Ardi dividia seu tempo entre as árvores e o solo, quando andava ereta. Ao fazê-lo, liberava as mãos para fazer o que quisesse. Se suas mãos eram parecidas com as nossas, será que conseguia manusear objetos, como galhos ou instrumentos de pedra?, perguntei a White. “A possibilidade existe. Mas vasculhamos cada centímetro quadrado de terreno e não achamos nenhuma pedra ou instrumento lascado.”

A descoberta de Ardi embaralha as peças do tabuleiro científico. Em vez de consolidar um pensamento antropológico cristalizado por décadas, Ardi veio tirar o pó dos armários mofados da academia. Sua existência questiona todas as nossas certezas com relação à origem do homem. E isso é ótimo! Agora, uma nova geração de cientistas terá a oportunidade de reunir os cacos das velhas teorias para estabelecer uma nova. Ela deve explicar por que a linhagem humana é tão antiga e por que os chimpanzés e gorilas se diferenciaram. Como profetizou Darwin há 140 anos, enquanto não se achar o elo perdido, o máximo que os cientistas podem fazer é usar a imaginação e dar palpites – sempre correndo o risco de estar redondamente enganados.

Originalmente publicada em Época, em 02/10/2009.

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