Darwin não encontrou explicação para o tamanho do bico da ave. Usando técnicas atuais, dois brasileiros desvendaram o mistério
Peter Moon
Se alguém visse um tucano pela primeira vez, tomaria sua cabeça e seu bico por uma dessas máscaras de nariz comprido com a qual assustamos as crianças”, escreveu, em 1780, o naturalista francês Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon. “Não posso deixar de me surpreender que a natureza tenha dotado com um bico tão prodigioso uma ave tão medíocre.” Em sua História natural das aves, Buffon afirmou que “o bico enorme, que por vezes excede o comprimento do corpo inteiro da ave”, não servia para nada. Não ajudava o tucano a se alimentar, quebrar nozes ou pegar objetos.
Um século depois, Charles Darwin intuiu que a extravagante cauda do pavão poderia ter evoluído como chamariz para atrair fêmeas, mecanismo que chamou de seleção sexual. “Não é de todo inacreditável que os tucanos devam o tamanho de seus bicos à seleção sexual”, escreveu em A descendência do homem (1871). Darwin estava errado. Machos das 40 espécies de tucanos têm bicos do mesmo tamanho e coloração que as fêmeas. Portanto, o bico não serve para cortejá-las. O maior biólogo de todos os tempos não conseguiu resolver o enigma. Quem forneceu a melhor pista, passados 138 anos, foram dois biólogos brasileiros, Augusto Abe e Denis Andrade, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro, São Paulo.
“Tudo começou no fim dos anos 1980, quando vi uma imagem de um tucano dormindo com a cabeça virada e o bico escondido entre as asas”, diz Abe, de 63 anos. “Aí pensei: ‘Então é assim que o bicho dorme? Será que ele agasalha o bico para não perder calor?’” A hipótese era plausível. Faltava testá-la. Abe e Andrade queriam estudar a dissipação de calor do bico do tucano. Precisavam de uma câmera fotográfica infravermelha. Não havia nenhuma na universidade. Ela teria de ser importada e era muito cara. A ideia foi para a gaveta. E lá ficou por 15 anos.
Em 2005, o biólogo canadense Glenn Tattersall visitou a Unesp. Na bagagem, trazia uma câmera infravermelha. Os brasileiros o convenceram a estudar dois tucanos comuns, ou tucano-toco, a maior espécie e a dona do maior bico. As aves foram fotografadas de dia e de noite, ao ar livre e em câmaras com temperatura controlada. As imagens revelaram que, quando a temperatura externa aumenta, o bico fica mais quente (mais claro, nas imagens em infravermelho). Fim do mistério: 229 anos após Buffon, a pesquisa dos brasileiros foi publicada na sexta-feira passada na revista americana Science.
O bico do tucano tem a mesma função das orelhas do elefante. Ele irradia calor ao meio ambiente. O bico é cheio de vasos sanguíneos e muito irrigado. “De dia, quando está muito quente, a ave se refresca perdendo calor pelo bico. De noite, quando esfria, ela esconde o bico sob a asa para não resfriar”, diz Andrade, de 38 anos. Mas o mistério não está totalmente resolvido. “Hoje, o bico tem essa função”, diz Andrade. “Não quer dizer que sempre foi assim. Não sabemos por que o bico aumentou ao longo da evolução dos tucanos. Essa é uma pergunta à qual ainda falta resposta.”
Publicada originalmente em Época, em 23/07/2009.
Peter Moon
Se alguém visse um tucano pela primeira vez, tomaria sua cabeça e seu bico por uma dessas máscaras de nariz comprido com a qual assustamos as crianças”, escreveu, em 1780, o naturalista francês Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon. “Não posso deixar de me surpreender que a natureza tenha dotado com um bico tão prodigioso uma ave tão medíocre.” Em sua História natural das aves, Buffon afirmou que “o bico enorme, que por vezes excede o comprimento do corpo inteiro da ave”, não servia para nada. Não ajudava o tucano a se alimentar, quebrar nozes ou pegar objetos.
O bico (em amarelo, à dir.) é a parte mais quente do tucano. Serve para a ave regular sua temperatura |
“Tudo começou no fim dos anos 1980, quando vi uma imagem de um tucano dormindo com a cabeça virada e o bico escondido entre as asas”, diz Abe, de 63 anos. “Aí pensei: ‘Então é assim que o bicho dorme? Será que ele agasalha o bico para não perder calor?’” A hipótese era plausível. Faltava testá-la. Abe e Andrade queriam estudar a dissipação de calor do bico do tucano. Precisavam de uma câmera fotográfica infravermelha. Não havia nenhuma na universidade. Ela teria de ser importada e era muito cara. A ideia foi para a gaveta. E lá ficou por 15 anos.
Em 2005, o biólogo canadense Glenn Tattersall visitou a Unesp. Na bagagem, trazia uma câmera infravermelha. Os brasileiros o convenceram a estudar dois tucanos comuns, ou tucano-toco, a maior espécie e a dona do maior bico. As aves foram fotografadas de dia e de noite, ao ar livre e em câmaras com temperatura controlada. As imagens revelaram que, quando a temperatura externa aumenta, o bico fica mais quente (mais claro, nas imagens em infravermelho). Fim do mistério: 229 anos após Buffon, a pesquisa dos brasileiros foi publicada na sexta-feira passada na revista americana Science.
O bico do tucano tem a mesma função das orelhas do elefante. Ele irradia calor ao meio ambiente. O bico é cheio de vasos sanguíneos e muito irrigado. “De dia, quando está muito quente, a ave se refresca perdendo calor pelo bico. De noite, quando esfria, ela esconde o bico sob a asa para não resfriar”, diz Andrade, de 38 anos. Mas o mistério não está totalmente resolvido. “Hoje, o bico tem essa função”, diz Andrade. “Não quer dizer que sempre foi assim. Não sabemos por que o bico aumentou ao longo da evolução dos tucanos. Essa é uma pergunta à qual ainda falta resposta.”
Publicada originalmente em Época, em 23/07/2009.
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