“Nova” espécie de réptil voador viveu no Brasil há 115 milhões de anos

Animal foi baseado em um fóssil contrabandeado do Brasil e que acabou comprado por um museu alemão

Peter Moon, em 2008

O Lacusovagus tinha uma de asa de até cinco metros.
Acima, o fóssil de sua crista.
Entre 251 e 65 milhões de anos atrás, enquanto os dinossauros reinavam sobre a terra, os senhores do ar eram répteis voadores chamados pterossauros, os maiores seres alados que existiram. Os melhores fósseis de pterossauro (que significa lagarto com asas) de todo o mundo são encontrados na China e no Brasil, na Chapada do Araripe, entre os Estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, onde diversas espécies de pterossauros foram encontradas desde 1971. O pterossauro mais recente foi batizado de Lacusovagus magnificens (viajante dos lagos). “Ele tinha uma envergadura de asas de até cinco metros. Era a maior espécie que viveu na região há 115 milhões de anos”, diz o paleontólogo inglês Mark Witton, que publicou a descoberta na prestigiosa revista britânica Palaeontology. O Lacusovagus era bem maior que o condor, a maior ave voadora existente, com uma envergadura de asas de três metros. Segundo Witton, ainda assim o Lacusovagus era um pterossauro de porte médio, quando comparado às maiores espécies conhecidas, que tinham mais de 12 metros de envergadura de asas, ou seja, eram maiores que um pequeno avião.

A descrição do Lacusovagus faz parte do trabalho de doutoramento de Witton, na Universidade de Portsmouth. A nova espécie foi estudada a partir do fóssil parcial de um crânio, a parte da frente do bico. De acordo com Witton, trata-se de uma descoberta importante, pois o seu Lacusovagus é diferente de todas as outras espécies de pterossauros do Araripe. Ele pertence a um grupo de pterossauros desdentados (a maioria dos encontrados no Brasil tinha dentes) que só são encontrados do outro lado do mundo, na China. “A descoberta de algo assim no Brasil – tão longe dos seus parentes mais próximos na China – demonstra quão pouco conhecemos sobre a história evolucionária deste fascinante grupo de criaturas”, diz Witton. Se a conclusão estiver correta, abre-se a possibilidade de que o Lacusovagus se trate, por exemplo, de uma espécie migratória, como acontece com tantos pássaros atuais.

Mas o trabalho de Witton perde o brilho quando se sabe que o fóssil foi adquirido de forma ilegal. Segundo Witton, o fóssil foi vendido há quatro anos por um negociante de fósseis para o Museu Estatal de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. Witton começou a estudá-lo há três anos, não teve participação na compra nem sabe qual foi o valor pago. “Tive muita sorte em ser o primeiro a poder estudar este fóssil, já que eles são tão raros”, afirma. Não é a primeira vez que isso acontece. Em 1994, o mesmo museu de Karlsruhe adquiriu outro fóssil contrabandeado do Brasil, que resultou em uma nova espécie de pterossauro, a Arthurdactylus conandoylei, descrita pelo paleontólogo alemão, Dino Frey, e seu colega inglês, David Martill, da Universidade de Portsmouth, onde Witton faz seu doutoramento. O mesmo Martill descreveu em 1996 um dinossauro brasileiro retirado do Araripe, o Irritator challengeri.

“Os pesquisadores estrangeiros sabem que estão cometendo um ato ilegal perante a lei brasileira”, afirma Alex Kellner, do Museu Nacional no Rio de Janeiro e maior especialista brasileiro em pterossauros. Segundo Kellner, nada desculpa a atitude de Mark Witton ou do museu alemão. “Esse fóssil de pterossauro é passível de repatriação. Agora que o trabalho científico foi feito, que os alemães devolvam o fóssil para o Brasil”. Witton concorda. “Acredito que o melhor seria colaborar com os pesquisadores do Brasil e, uma vez terminado o trabalho, retornar o material”, diz o inglês. “Mas não posso condenar o museu alemão, se ele adquiriu o fóssil do meu pterossauro por canais perfeitamente legais”.

O tráfico de fósseis é um problema mundial. No Brasil, o comércio de fósseis é ilegal desde 1942, como faz questão de frisar o site americano Paleodirect, ao anunciar a venda de um crânio raríssimo e maravilhosamente completo de pterossauro de 110 milhões de anos, retirado do Araripe. Preço: US$ 950 mil. “Nossa aquisição mais recente é uma coleção particular européia de fósseis de Santana (no Araripe) com mais de 70 anos”, lê-se no site. “São numerosos espécimes de qualidade espetacular, que vão muito além de qualquer coisa já vista em coleções particulares ou em museus”. O site faz questão de frisar que “os espécimes foram coletados originalmente nos anos 1930, antes do banimento da coleta, em 1942”. Caso o Paleodirect não possua documentação para comprovar a origem do fóssil, o Departamento Nacional de Produção Mineral, ligado ao Ministério das Minas e Energia, deveria recorrer à Interpol para pedir sua apreensão e repatriação.

“O Brasil tem um problema com relação aos seus fósseis”, diz Alex Kellner. A lei que proíbe o comércio de fósseis não é fiscalizada, ao contrário da Argentina, onde ela é respeitada e a maioria das descobertas de animais extintos é feita por paleontólogos argentinos. Recentemente, Kellner participou de um projeto para estabelecer um grupo permanente de pesquisa de fósseis na Chapada do Araripe. “Eram R$ 600 mil, ao longo de três anos, para custear uma equipe trabalhando 200 dias por ano no local”. Mas a verba foi negada pelo governo federal. “Se me deixassem escavar no Araripe 200 dias por ano (que correspondem ao período sem chuvas), nossa equipe e alunos encontrariam um monte de crânios como o do Lacusovagus, que acaba de ser anunciado”, afirma Kellner.

A chapada do Araripe é riquíssima em fósseis de pterossauros, mas também de peixes e de insetos. No período Cretáceo, o sertão estava no fundo do mar, ou melhor, de um grande lago interior, no imenso continente formado pela união da América do Sul com a África, que ainda não haviam começado a se separar para a abertura do oceano Atlântico. Os pterossauros se alimentavam dos peixes desse lago, assim como as aves marinhas o fazem hoje. Os pterossauros que caíam no mar e morriam, iam direto ao fundo, sendo rapidamente recobertos por sedimentos, o que fornecia as condições ideais para a sua fossilização. Assim como os dinossauros, todos os pterossauros se extinguiram há 65 milhões de anos, quando um meteoro se chocou contra a atual península do Yucatán, no México. 

Originalmente publicado em Época, em 02/12/2008.

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