Gelo no fundo de um poço de 3 km na Groenlândia conserva a poluição por chumbo da época dos césares
Peter Moon (em 1994)
Há 2 mil anos, a cidade de Roma dominava o mundo. Moradia de um milhão de pessoas, suas ruas viviam apinhadas por vendedores de todos os cantos do império, que vinham apregoar aos berros seus exóticos produtos. Roma era conhecida por essa algazarra, por essa poluição sonora. De agora em diante também será lembrada por sua poluição ambiental. Sim, pois ela existiu, e numa escala apenas comparável à provocada pela emissão de gases da frota crescente de veículos, a partir de 1930. Segundo pesquisadores franceses e americanos, que publicaram a descoberta na revista americana Science, o principal agente poluidor da Roma dos césares era o chumbo – proveniente das fundições. Essa revelação torna-se ainda mais surpreendente quando se sabe o local onde as provas daquela antiga poluição foram detectadas. Quem pensou numa escavação arqueológica em alguma antiga mina européia se enganou, porque o lugar certo são as profundezas geladas da Groenlândia, ilha pertencente à Dinamarca e localizada a mais de 4 mil quilômetros da Europa.
Trata-se do projeto Calota Gelada da Groenlândia, iniciado em 1990, com a finalidade de analisar o passado do clima terrestre. Isto é possível através do estudo da neve transformada em gelo no interior de um imenso poço de dez centímetros de diâmetro e 3.029 metros de profundidade – 15 metros maior que o Pico da Neblina. O empreendimento nasceu da constatação de que a neve é um ótimo indicador das condições climáticas, pois, ao cair no solo, ela carrega consigo amostra de gases, cinzas vulcânicas e poluentes atmosféricos transportados pelos ventos. O local escolhido, no planalto central da Groenlândia, tem temperatura média anual de 32ºC negativos. Esse inverno eterno possibilitou ao longo das eras um acúmulo de neve e gelo com mais de três quilômetros de profundidade – só comparável às imensas crostas de gelo da Antártida. Como um autêntico túnel do tempo, o poço perfurado esconde a três mil metros de profundidade gelo proveniente da neve que caiu na região há 200 mil anos – a mesma época que viu surgir na África uma espécie destinada a dominar o planeta: o homem.
Para descobrir as evidências de poluição no Mundo Antigo, os estudiosos do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS) e do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) enfrentam aquela região inóspita, vivendo por meses em pequenas barracas para se proteger das constantes ventanias que varrem o Ártico. Nesse acampamento improvisado, isolados do resto do mundo, eles colheram diversas amostras de gelo depositadas entre 130 e 1.280 metros abaixo da superfície. As amostras coletadas entre 130 e 350 metros são restos "fossilizados" de neve que caiu entre o século V, quando da queda do Império Romano, e o século XVI, época do Descobrimento das América. Outro extrato mais profundo (de 350 a 510 metros) era de neve que caiu entre 366 a.C. e 219 d.C. Ao longo deste período, Alexandre, o Grande, conquistou o Oriente Médio, Júlio César foi assassinado e o imperador Nero incendiou Roma. O time de "arqueólogos high-tech" pesquisou ainda as cotas de gelo situadas entre 570 e 620 metros, que vão do século X a.C. até o século V a.C. Momento áureo da Grécia, que abrange a criação da Odisséia por Homero, e o domínio da Grécia por Atenas, quando o escultor Fídias construiu o Parthenon e Sócrates filosofava.
Em seu trabalho, os sábios do presente analisaram a composição química do gelo daquelas eras passadas, assim como o ar, aprisionado no gelo na forma de bolhas microscópicas. Detectaram situações insuspeitadas de chumbo, a primeira evidência da poluição, que surgiram com as neves de sete mil anos, época do surgimento da fundição de metais preciosos, caso da prata. No Mundo Antigo, a fundição de peças de prata e a cunhagem de moedas eram feitas utilizando-se normalmente uma liga de prata e chumbo. Os dois metais eram aquecidos até derreter e então fundidos numa única peça. Fato ignorado pelos antigos, o processo era poluidor, pois durante a queima cerca de 5% do chumbo evaporava, indo para a atmosfera. Metal venenoso, que causa uma doença mortal chamada saturnismo, as partículas de chumbo eram transportadas pelos ventos espalhando-se por todo o Hemisfério Norte. As partículas em suspensão sobre a Groenlândia associavam-se com o vapor d’água das nuvens, precipitando-se no solo em forma de neve.
Logo os cientistas notaram que o acúmulo de chumbo aumentava à medida que o gelo se tornava recente, acentuando-se a partir do ano 1000 a.C., quando foram descobertas grandes minas de prata na Europa Central. Essas concentrações atingiram seus maiores índices entre os séculos V a.C. e III d.C., período que vai do apogeu da Grécia Clássica até a ascensão e poderio máximo do Império Romano – que fundia e refinava milhares de toneladas de prata e chumbo para a cunhagem de moedas. O chumbo era produzido em fornalhas a céu aberto, e as principais fundições espalhavam-se por toda a Europa, desde a Espanha e Inglaterra até a Grécia e a Ásia Menor.
A equipe de cientistas franco-americana identifica o ponto máximo de concentração de chumbo na época do nascimento de Cristo. Estima-se que, então, eram extraídas e processadas anualmente 80 mil toneladas métricas do metal. Essa produção cairia sensivelmente após a queda de Roma, invadida e saqueada em 576 d.C. pelas hordas de bárbaros ostrogodos da Germânia, lideradas pelo rei Teodorico. Era o início da Idade Média, mil anos de trevas e estagnação. A produção de chumbo só atingiria novamente aqueles níveis no final do século XVIII, durante a revolução industrial inglesa.
Para se ter uma idéia da contaminação por chumbo na Antigüidade, os pesquisadores afirmam que, entre os séculos IV a.C. e III d.C., foram depositadas 400 toneladas do metal somente na calota de gelo da Groenlândia. Esse volume equivale a 15% do chumbo depositado na região desde 1930. É a evidência mais antiga de uma poluição ambiental hemisférica produzida pelo homem. As concentrações tornaram-se maiores desde a década de 30 devido à queima de gasolina pelos automóveis. Para aumentar a qualidade do combustível, ele continha chumbo tetraetil, que era liberado na combustão, em forma de gás, pelos escapamentos. Como medida de controle ambiental, o chumbo foi eliminado da gasolina.
A busca de evidências físico-químicas para entender a história da exploração humana do planeta é apenas uma das experiências realizadas com o gelo do poço da Groenlândia. Já foi possível, por exemplo, saber que nos últimos dez milênios o clima terrestre tem sido excepcionalmente bom e constante. Isso apesar dos atuais tão temidos aquecimentos da Terra (o efeito estufa) e da degradação da camada de ozônio. Os registros no gelo mostram que, nos últimos 200 mil anos, o clima era muito pior, mais frio ou mais seco ou mais quente. A norma era a instabilidade, traduzida por mudanças bruscas de temperatura de até 10ºC em apenas 10 anos. Se ainda fosse assim, poderíamos prever que no inverno de 2004 os termômetros gaúchos desceriam 15 graus negativos. Ou, se o clima esquentasse, os tradicionais 40ºC do verão carioca passariam a 50ºC.
Muitas surpresas como essas ainda estão guardadas sob as calotas polares e no subsolo da Terra. É o caso das 11 espécies de microorganismos congelados há 70 séculos na capa de gelo da Ilha de Ellesmere, no ártico canadense. Descobertos este ano por biólogos de Quebec, dez desses seres microscópicos assemelham-se a bactérias hoje existentes. Um protozoário, no entanto, é totalmente desconhecido e ainda não foi identificado. A busca de novas formas de vida aprisionadas no gelo prossegue em Ellesmere. Restam ainda 100 mil anos de história na calota a escavar, que podem esconder imensa biodiversidade pré-histórica. Apesar de mortífero, o frio da Groenlândia e do Ártico mostra-se cada vez mais um aliado da ciência. Ele afugenta a vida e a civilização, mas preserva seus segredos.
Publicado originalmentel em ISTOÉ, em 28/09/1994.
Peter Moon (em 1994)
Há 2 mil anos, a cidade de Roma dominava o mundo. Moradia de um milhão de pessoas, suas ruas viviam apinhadas por vendedores de todos os cantos do império, que vinham apregoar aos berros seus exóticos produtos. Roma era conhecida por essa algazarra, por essa poluição sonora. De agora em diante também será lembrada por sua poluição ambiental. Sim, pois ela existiu, e numa escala apenas comparável à provocada pela emissão de gases da frota crescente de veículos, a partir de 1930. Segundo pesquisadores franceses e americanos, que publicaram a descoberta na revista americana Science, o principal agente poluidor da Roma dos césares era o chumbo – proveniente das fundições. Essa revelação torna-se ainda mais surpreendente quando se sabe o local onde as provas daquela antiga poluição foram detectadas. Quem pensou numa escavação arqueológica em alguma antiga mina européia se enganou, porque o lugar certo são as profundezas geladas da Groenlândia, ilha pertencente à Dinamarca e localizada a mais de 4 mil quilômetros da Europa.
Glaciologistas retiram gelo de poço na Groenlândia. |
Para descobrir as evidências de poluição no Mundo Antigo, os estudiosos do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS) e do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) enfrentam aquela região inóspita, vivendo por meses em pequenas barracas para se proteger das constantes ventanias que varrem o Ártico. Nesse acampamento improvisado, isolados do resto do mundo, eles colheram diversas amostras de gelo depositadas entre 130 e 1.280 metros abaixo da superfície. As amostras coletadas entre 130 e 350 metros são restos "fossilizados" de neve que caiu entre o século V, quando da queda do Império Romano, e o século XVI, época do Descobrimento das América. Outro extrato mais profundo (de 350 a 510 metros) era de neve que caiu entre 366 a.C. e 219 d.C. Ao longo deste período, Alexandre, o Grande, conquistou o Oriente Médio, Júlio César foi assassinado e o imperador Nero incendiou Roma. O time de "arqueólogos high-tech" pesquisou ainda as cotas de gelo situadas entre 570 e 620 metros, que vão do século X a.C. até o século V a.C. Momento áureo da Grécia, que abrange a criação da Odisséia por Homero, e o domínio da Grécia por Atenas, quando o escultor Fídias construiu o Parthenon e Sócrates filosofava.
Em seu trabalho, os sábios do presente analisaram a composição química do gelo daquelas eras passadas, assim como o ar, aprisionado no gelo na forma de bolhas microscópicas. Detectaram situações insuspeitadas de chumbo, a primeira evidência da poluição, que surgiram com as neves de sete mil anos, época do surgimento da fundição de metais preciosos, caso da prata. No Mundo Antigo, a fundição de peças de prata e a cunhagem de moedas eram feitas utilizando-se normalmente uma liga de prata e chumbo. Os dois metais eram aquecidos até derreter e então fundidos numa única peça. Fato ignorado pelos antigos, o processo era poluidor, pois durante a queima cerca de 5% do chumbo evaporava, indo para a atmosfera. Metal venenoso, que causa uma doença mortal chamada saturnismo, as partículas de chumbo eram transportadas pelos ventos espalhando-se por todo o Hemisfério Norte. As partículas em suspensão sobre a Groenlândia associavam-se com o vapor d’água das nuvens, precipitando-se no solo em forma de neve.
O gelo é mantido refrigerado. Ele aprisiona os gases da atmosfera do passado |
A equipe de cientistas franco-americana identifica o ponto máximo de concentração de chumbo na época do nascimento de Cristo. Estima-se que, então, eram extraídas e processadas anualmente 80 mil toneladas métricas do metal. Essa produção cairia sensivelmente após a queda de Roma, invadida e saqueada em 576 d.C. pelas hordas de bárbaros ostrogodos da Germânia, lideradas pelo rei Teodorico. Era o início da Idade Média, mil anos de trevas e estagnação. A produção de chumbo só atingiria novamente aqueles níveis no final do século XVIII, durante a revolução industrial inglesa.
Para se ter uma idéia da contaminação por chumbo na Antigüidade, os pesquisadores afirmam que, entre os séculos IV a.C. e III d.C., foram depositadas 400 toneladas do metal somente na calota de gelo da Groenlândia. Esse volume equivale a 15% do chumbo depositado na região desde 1930. É a evidência mais antiga de uma poluição ambiental hemisférica produzida pelo homem. As concentrações tornaram-se maiores desde a década de 30 devido à queima de gasolina pelos automóveis. Para aumentar a qualidade do combustível, ele continha chumbo tetraetil, que era liberado na combustão, em forma de gás, pelos escapamentos. Como medida de controle ambiental, o chumbo foi eliminado da gasolina.
A busca de evidências físico-químicas para entender a história da exploração humana do planeta é apenas uma das experiências realizadas com o gelo do poço da Groenlândia. Já foi possível, por exemplo, saber que nos últimos dez milênios o clima terrestre tem sido excepcionalmente bom e constante. Isso apesar dos atuais tão temidos aquecimentos da Terra (o efeito estufa) e da degradação da camada de ozônio. Os registros no gelo mostram que, nos últimos 200 mil anos, o clima era muito pior, mais frio ou mais seco ou mais quente. A norma era a instabilidade, traduzida por mudanças bruscas de temperatura de até 10ºC em apenas 10 anos. Se ainda fosse assim, poderíamos prever que no inverno de 2004 os termômetros gaúchos desceriam 15 graus negativos. Ou, se o clima esquentasse, os tradicionais 40ºC do verão carioca passariam a 50ºC.
Muitas surpresas como essas ainda estão guardadas sob as calotas polares e no subsolo da Terra. É o caso das 11 espécies de microorganismos congelados há 70 séculos na capa de gelo da Ilha de Ellesmere, no ártico canadense. Descobertos este ano por biólogos de Quebec, dez desses seres microscópicos assemelham-se a bactérias hoje existentes. Um protozoário, no entanto, é totalmente desconhecido e ainda não foi identificado. A busca de novas formas de vida aprisionadas no gelo prossegue em Ellesmere. Restam ainda 100 mil anos de história na calota a escavar, que podem esconder imensa biodiversidade pré-histórica. Apesar de mortífero, o frio da Groenlândia e do Ártico mostra-se cada vez mais um aliado da ciência. Ele afugenta a vida e a civilização, mas preserva seus segredos.
Publicado originalmentel em ISTOÉ, em 28/09/1994.
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