Vida e morte à sombra de Josef Stálin

Vasily Grossman, o romancista que testemunhou as piores batalhas da Segunda Guerra

Peter Moon

“Se as suas fotos não estão boas o bastante, é porque você não está perto o bastante”, disse certa vez o lendário fotojornalista húngaro Robert Capa. Ele cobriu a Guerra Civil Espanhola, desembarcou na Normandia no Dia D, em 1944, e morreu ao pisar numa mina na Indochina dez anos depois. Correspondentes de guerra como Capa e tantos outros foram os responsáveis por mostrar ao público ocidental as vitórias americanas contra nazistas e japoneses na Segunda Guerra Mundial. Agora, o outro lado. O Ocidente desconhece o trabalho dos repórteres soviéticos que revelaram as atrocidades dos nazistas no Leste Europeu. Isso aconteceu em parte por causa dos 50 anos de Guerra Fria, mas também porque quase tudo publicado na imprensa soviética tinha muito de propaganda – e muito pouco de jornalismo. Um Escritor na Guerra – Vasily Grossman com o Exército Vermelho 1941-1945 (Objetiva, 496 págs., R$ 56,90), organizado por Antony Beevor, preenche a lacuna.

Grossman na Alemanha em 1945, após sobreviver a Stalingrado
e denunciar os horrores de Treblinka
Tome o exemplo da Batalha de Stalingrado, a mais sangrenta da História. Entre julho de 1942 e fevereiro de 1943, a elite da máquina de guerra nazista usou tanques, granadas, metralhadoras e lança-chamas para dominar cada metro quadrado de cada edifício, casa e rua de uma cidade arrasada às margens do Rio Volga. O Exército Vermelho resistiu. Mas o custo foi assombroso: entre 1,5 e 2 milhões de mortos. No auge da luta, a expectativa média de vida de um soldado soviético era de um dia. O romancista ucraniano Vasily Grossman (1905-1964) viveu em Stalingrado por cinco meses. Correspondente do Estrela Vermelha, o jornal do Exército Vermelho, Grossman foi testemunha das piores batalhas da Segunda Guerra Mundial.

Da invasão nazista no verão de 1941 à tomada de Berlim quatro anos depois, ele escapou da morte diversas vezes. Em agosto de 1941, acompanhou a fuga desordenada das tropas bolcheviques diante da Blitzkrieg e do rápido avanço alemão através da Ucrânia. De volta a Moscou, seu editor lhe perguntou por que não havia escrito nada sobre a “defesa heróica (da cidade) de Orel”. Grossman respondeu que não havia escrito nada porque não houve defesa, nem heróica nem nenhuma outra. Não era membro do Partido Comunista.

Em julho de 1943, Grossman avançou com 3.600 tanques soviéticos contra as divisões Panzer de Hitler em Kursk, na maior batalha de tanques da História. Com a liberação da Ucrânia, o correspondente, que era judeu, correu à cidade natal de Berditchev para rever a mãe. Mas ela e todos os 30 mil judeus da cidade haviam sido assassinados. Em julho de 1944, Grossman foi um dos primeiros jornalistas a entrar no campo de extermínio de Treblinka, na Polônia. Estava vazio e arrasado. Antes da chegada dos russos, os nazistas procuraram eliminar as provas do genocídio. Grossman entrevistou os camponeses e as poucas dezenas de sobreviventes. Descobriu as histórias dos trens da morte, das câmaras de gás e dos 800 mil mortos. 


“Economia, eficiência e limpeza meticulosa – todas essas são boas qualidades típicas de muitos alemães”, escreveu no longo artigo “O inferno chamado Treblinka”. “Hitler pôs essas qualidades a serviço de crimes contra a humanidade. Nos campos de trabalho da Polônia, a SS agiu como se tudo se tratasse de um cultivo de couve-flor e batata.” O artigo foi usado como peça de acusação no Tribunal de Nuremberg, em 1946. Grossman, que sempre se queixou da forma como seus textos eram reescritos e censurados pelos editores do Estrela Vermelha, jamais conseguiu publicar mais nada que fizesse referência ao extermínio dos judeus. Stálin era contrário a destacar o sofrimento dos judeus. Para o ditador, o sofrimento na “Grande Guerra Patriótica” era de todo o povo soviético.

Em janeiro de 1945, Grossman entrou no gueto de Varsóvia. “Não há judeus na Polônia”, escreveu em seu caderno de anotações. No mesmo mês, estava entre as primeiras unidades soviéticas a entrar na Alemanha. Em abril, participou da batalha de Berlim. Em suas notas, testemunha a mudança dramática no comportamento do soldado soviético. O herói comum do povo deu lugar ao saqueador e ao estuprador. “Coisas horríveis estão acontecendo com as mulheres alemãs (...) horror nos olhos de mulheres e meninas”, escreve Grossman. Nada disso jamais foi publicado. “Eles estupraram todas as mulheres alemãs entre 8 e 80 anos”, escreveu em Berlim 1945: a Queda o historiador inglês Antony Beevor, também autor do relato definitivo sobre a Batalha de Stalingrado. 

Beevor e a russa Luba Vinogradova foram responsáveis pela descoberta, tradução e organização das anotações de Grossman que compõem Um Escritor na Guerra. Não há imagens gloriosas nem apologia ideológica, apenas dor e o cotidiano dos soldados e do povo. É “a cruel verdade da guerra” que foi desprezada pelo stalinismo.

Não é de admirar que, após a vitória, o escritor caísse em desgraça. Só não foi enviado a um Gulag, um campo de trabalhos forçados na Sibéria, porque Stálin morreu antes. Em 1960, Grossman terminou o maior trabalho de sua vida, o romance Vida e Destino (inédito no Brasil). Inspirado em Guerra e Paz, de Tolstói, e localizado em Stalingrado, é uma crítica ao totalitarismo. A KGB confiscou todos os originais. Desgostoso, seu autor morreu de câncer em 1964, sem saber da existência de uma última cópia do manuscrito. Ela foi publicada na Suíça em 1981 e na Rússia em 1988. Hoje, Grossman é considerado, ao lado do recém-falecido Alexander Soljenitsyn, um dos maiores romancistas russos do século XX. 

Originalmente publicado em Época, em 29/08/2008

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