O mestre da comédia morreu como filmava: à italiana
Peter Moon
"A comédia italiana é um tipo muito específico de comédia. Ela gira em torno de argumentos e temas dramáticos. As histórias são trágicas, mas o ponto de vista é cômico e humorístico", disse o cineasta Mario Monicelli, em 1999, ao site canadense Offscreen. “Esse tipo de comédia existe precisamente pelo fato de os italianos enxergarem a realidade e a vida dessa forma. As histórias que fazem rir se originam sempre da pobreza, da fome, da miséria, da velhice, da doença e da morte. São os temas que fazem os italianos rir.” Monicelli seguiu à risca sua receita cômica até o último ato, protagonizado em 29 de novembro. Aos 95 anos, doente terminal de câncer de próstata, jogou-se do 5º andar do Hospital San Giovanni, em Roma. Foi um fecho corajoso e trágico, digno do maior autor de comédias do cinema italiano. “Na comédia italiana, o final é sempre ruim.”
Monicelli era o mais italiano dos cineastas italianos. Ele não escapava para os planos oníricos de Fellini, não retratava a decadência da aristocracia como Visconti, não era experimental como Antonioni nem explícito e provocador como Pasolini. O cinema de Monicelli é o melodrama das pessoas simples, na luta diária pela sobrevivência, usando para tanto quaisquer artifícios e subterfúgios à disposição, sejam eles dignos ou imorais, legais ou inconfessáveis.
Monicelli era discípulo direto de Vittorio De Sica e de Roberto Rossellini. Eles fundaram o neorrealismo, a corrente cinematográfica italiana que surpreendeu as plateias do pós-guerra com seus temas ligados ao cotidiano com forte crítica social. Os melhores exemplos são Roma cidade aberta (1945), de Rossellini, e Ladrões de bicicleta (1948), de De Sica.
Comunista desde sempre, Monicelli se manteve fiel aos princípios neorrealistas. Sua genialidade reside no fato de usar o riso como arma de denúncia. Monicelli tornou-se o mestre da comédia italiana ao revelar graça na tragédia alheia. Ao fazer as plateias se enxergar retratadas na tela, conseguiu fazê-las gargalhar das próprias misérias e contradições. Autor de mais de 60 filmes e mais de 70 roteiros, Monicelli não poupou nenhuma das bases sobre as quais a sociedade italiana se sustenta: a família, a virgindade, o casamento, a Igreja, o bairrismo provinciano, as discussões sanguíneas, a malandragem, o machismo, a pasta, o vinho, o gosto pelos prazeres da vida, o saudosismo e a inveja.
O cineasta aprendeu a fazer comédia dirigindo filmes do humorista Totó nos anos 1950. Quando dominou o gênero, partiu para o voo solo. Seu primeiro sucesso, Os eternos desconhecidos (1958), com Vittorio Gassman e Claudia Cardinale, é a história de cinco aparvalhados metidos numa tentativa desastrada de assalto. Em 1959, conquistou o Leão de Ouro do Festival de Veneza com A grande guerra, sobre dois jovens, Gassman e Alberto Sordi, que fazem de tudo para escapar do serviço militar na Primeira Guerra Mundial.
Seguiram-se sucessos como Os companheiros (1963) e Casanova 70 (1965), ambos com Marcello Mastroianni. O reconhecimento mundial veio em 1966 com O incrível exército Brancaleone, a saga hilária de um cavaleiro medieval de araque (Gassman) numa versão bufa de Dom Quixote.
Meus caros amigos (1975) é um sério candidato a filme mais engraçado de todos os tempos. Tudo gira em torno de um grupo de amigos (Ugo Tognazzi, Philippe Noiret e Adolfo Celli) que vivem para se divertir. São senhores sérios, engravatados e grisalhos que invadem festas, vão a velórios falar mal do defunto desconhecido e estapeiam passageiros nas estações de trem.
Monicelli pertencia a uma geração de gênios que fez do cinema italiano uma referência estética do século XX. Era o cinema da realidade e do sonho, em contraposição à grandiloquência moralista hollywoodiana. Era um cinema que ficará na saudade dos espectadores que aguardavam ansiosos a estreia de alguma nova obra-prima – foram tantas!
A Itália de hoje, dominada pelo espectro de Silvio Berlusconi, é o retrato da decadência. Culturalmente, é uma sombra do passado. Não é a pátria que Monicelli amou. Quando ele pôs fim à própria comédia humana, restou um final triste. O cinema italiano só não morreu porque Ettore Scola ainda vive. Deve se sentir sozinho.
Peter Moon
"A comédia italiana é um tipo muito específico de comédia. Ela gira em torno de argumentos e temas dramáticos. As histórias são trágicas, mas o ponto de vista é cômico e humorístico", disse o cineasta Mario Monicelli, em 1999, ao site canadense Offscreen. “Esse tipo de comédia existe precisamente pelo fato de os italianos enxergarem a realidade e a vida dessa forma. As histórias que fazem rir se originam sempre da pobreza, da fome, da miséria, da velhice, da doença e da morte. São os temas que fazem os italianos rir.” Monicelli seguiu à risca sua receita cômica até o último ato, protagonizado em 29 de novembro. Aos 95 anos, doente terminal de câncer de próstata, jogou-se do 5º andar do Hospital San Giovanni, em Roma. Foi um fecho corajoso e trágico, digno do maior autor de comédias do cinema italiano. “Na comédia italiana, o final é sempre ruim.”
Monicelli era o mais italiano dos cineastas italianos. Ele não escapava para os planos oníricos de Fellini, não retratava a decadência da aristocracia como Visconti, não era experimental como Antonioni nem explícito e provocador como Pasolini. O cinema de Monicelli é o melodrama das pessoas simples, na luta diária pela sobrevivência, usando para tanto quaisquer artifícios e subterfúgios à disposição, sejam eles dignos ou imorais, legais ou inconfessáveis.
Monicelli era discípulo direto de Vittorio De Sica e de Roberto Rossellini. Eles fundaram o neorrealismo, a corrente cinematográfica italiana que surpreendeu as plateias do pós-guerra com seus temas ligados ao cotidiano com forte crítica social. Os melhores exemplos são Roma cidade aberta (1945), de Rossellini, e Ladrões de bicicleta (1948), de De Sica.
Comunista desde sempre, Monicelli se manteve fiel aos princípios neorrealistas. Sua genialidade reside no fato de usar o riso como arma de denúncia. Monicelli tornou-se o mestre da comédia italiana ao revelar graça na tragédia alheia. Ao fazer as plateias se enxergar retratadas na tela, conseguiu fazê-las gargalhar das próprias misérias e contradições. Autor de mais de 60 filmes e mais de 70 roteiros, Monicelli não poupou nenhuma das bases sobre as quais a sociedade italiana se sustenta: a família, a virgindade, o casamento, a Igreja, o bairrismo provinciano, as discussões sanguíneas, a malandragem, o machismo, a pasta, o vinho, o gosto pelos prazeres da vida, o saudosismo e a inveja.
O cineasta aprendeu a fazer comédia dirigindo filmes do humorista Totó nos anos 1950. Quando dominou o gênero, partiu para o voo solo. Seu primeiro sucesso, Os eternos desconhecidos (1958), com Vittorio Gassman e Claudia Cardinale, é a história de cinco aparvalhados metidos numa tentativa desastrada de assalto. Em 1959, conquistou o Leão de Ouro do Festival de Veneza com A grande guerra, sobre dois jovens, Gassman e Alberto Sordi, que fazem de tudo para escapar do serviço militar na Primeira Guerra Mundial.
Seguiram-se sucessos como Os companheiros (1963) e Casanova 70 (1965), ambos com Marcello Mastroianni. O reconhecimento mundial veio em 1966 com O incrível exército Brancaleone, a saga hilária de um cavaleiro medieval de araque (Gassman) numa versão bufa de Dom Quixote.
Meus caros amigos (1975) é um sério candidato a filme mais engraçado de todos os tempos. Tudo gira em torno de um grupo de amigos (Ugo Tognazzi, Philippe Noiret e Adolfo Celli) que vivem para se divertir. São senhores sérios, engravatados e grisalhos que invadem festas, vão a velórios falar mal do defunto desconhecido e estapeiam passageiros nas estações de trem.
Monicelli pertencia a uma geração de gênios que fez do cinema italiano uma referência estética do século XX. Era o cinema da realidade e do sonho, em contraposição à grandiloquência moralista hollywoodiana. Era um cinema que ficará na saudade dos espectadores que aguardavam ansiosos a estreia de alguma nova obra-prima – foram tantas!
A Itália de hoje, dominada pelo espectro de Silvio Berlusconi, é o retrato da decadência. Culturalmente, é uma sombra do passado. Não é a pátria que Monicelli amou. Quando ele pôs fim à própria comédia humana, restou um final triste. O cinema italiano só não morreu porque Ettore Scola ainda vive. Deve se sentir sozinho.
Originalmente publicado em Época, em 03/12/2010.
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