Descubra comigo um dos segredos mais bem guardados do universo musical parisiense, no qual tropecei sem querer, quase por acaso...
Peter Moon
"Um romance de rara sensibilidade sobre a redescoberta do amor pela música. A loja de pianos da Rive Gauche é uma silenciosa e apaixonante história sobre o piano e sua importância na vida francesa e na vida do próprio autor”, lê-se na contracapa deste livro de bolso, a surpresa mais deliciosa entre os livros que descobri em 2010. A loja de pianos da Rive Gauche, do americano T.E. Carhart (BestBolso, 294 páginas, R$ 17,90) foi publicado nos Estados Unidos em 2001. Encontrei o título por acaso, fuçando na lojinha da Sala São Paulo, antes de um concerto em junho. É o melhor livro que li em 2010 por duas razões: ele é ótimo - e esconde um segredo, um segredo cuja chave encontrei por acaso, e quero dividir com você.
O livro me pegou pela capa, com a foto parcial de um teclado antigo e sua referência à “Rive Gauche”, a margem esquerda do rio Sena, em Paris, o bairro dos artistas, da Universidade Sorbonne e dos charmosos cafés que reúnem a intelectualidade parisiense desde sempre. O livro era baratinho. Se fosse bom, daria para ler em dois ou três dias. Comecei a folheá-lo antes do início do concerto... e não parei mais. Foi quase a contragosto que interrompi a leitura na hora do concerto.
A história se passa nos anos 1990. O próprio autor, o escritor americano Thaddeus “Thad” Carhart, escreve em primeira pessoa. Carhart nasceu nos anos 1950 no interior da França, filho de um militar americano acantonado no país. Foi lá que passou a infância. Foi no ensino fundamental francês que o garoto teve suas primeiras aulas de piano, aprendendo o nome das notas musicais pela notação latina, a nossa Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si – e não na pouco inspirada versão anglo-saxônica, aquela que vai da letra A até a letra G, ou do Lá ao Sol.
Quando Carhart completou dez anos, seu pai foi transferido de volta aos Estados Unidos, onde o garoto continuou a estudar piano pelo prazer que sentia – ele nunca sonhou ser concertista, tinha consciência dos próprios limites. Quando chegou à high school, e de lá à universidade, abandonou o piano. E passaram-se 20 anos.
Nos anos 1990, o jornalista quarentão casado e pai de um casal de filhos conseguiu realizar o antigo sonho de voltar a morar na França. A família se instalou num pequeno apartamento na rive gauche. Todas as manhãs, Carhart saía para levar os filhos à escola. Depois, no caminho de volta, parava num café de um ruazinha tranqüila e estreita.
Logo na primeira semana, um fato lhe chamou a atenção. Através da vitrine do café, Carhart enxergou do outro lado da rua um caminhão estacionado. Do seu interior dois homens descarregavam pianos para dentro de uma loja. O letreiro dizia “Desforges Pianos”. Quase todos os dias havia algum piano sendo entregue ou retirado. Eram de todos os tipos. Havia pianos de cauda inteira e de meia cauda, pianos de armário, cravos e até espinetas. Alguns eram de concerto, todos negros. Uns eram brancos e outros rajados, valorizando os veios da madeira. Uns exibiam desenhos de marchetaria, enquanto outros apenas sobriedade. Muitos eram antigos, de todas as marcas que Carhart conhecia e muitas outras que nunca tinha ouvido falar.
Após várias semanas observando aquela dança de pianos, Carhart tomou coragem, atravessou a rua e abriu a porta da loja. Uma sineta soou. A sala que dava para a rua era pequena. Não havia piano à vista nem ninguém para atendê-lo. Uma porta se abriu e um senhor baixo e gordinho de mais de 60 anos surgiu: “Em que posso servi-lo, Monsieur?” Carhart disse que estava pensando em comprar um piano de segunda mão. O velho Desforges manteve o sorriso no rosto, e disse não poder ajudá-lo. Se ele quisesse retornar lá, disse o francês, quem sabe algum cliente poderia um dia se desfazer de seu piano usado.
Carhart saiu da loja decepcionado e intrigado. Mas seguiu o conselho de Desforges e voltou lá umas duas ou três vezes no mês seguinte. Ao vê-lo, o francês era sempre gentil. O sorriso não saia do rosto. Mas parecia impacientar-se com a insistência do americano. Sua resposta era sempre a mesma: infelizmente não teria como ajudá-lo. Carhart insistiu ainda um par de meses. Quando estava para desistir, algo mudou. Quem veio atendê-lo não foi Desforges, mas um homem mais jovem, obviamente seu assistente. “Meu colega me disse que o senhor tem vindo aqui em busca de um piano”, disse Luc. “Nós apenas consertamos pianos”, e olhou para o teto. “Bem... se o senhor nos fosse recomendado por algum dos nossos clientes, talvez ficasse mais fácil achar o piano que procura”, disse Luc, deixando a frase no ar. “Alguns dos seus clientes?”, disse Carhart. “Isso mesmo, há muitos deles aqui no quartier”, afirmou Luc.
Carhart saiu de lá pensando como faria para descobrir um cliente da loja. Umas semanas depois, ele foi buscar a filha na casa de uma amiguinha. Ao entrar no apartamento, viu um lindo piano na sala. Conversando com a mãe da menina, elogiou o piano. “Compramos logo que mudamos para o quartier”, disse a mulher. “Há uma lojinha maravilhosa perto de onde vocês moram que é cheia de tesouros como este. Chama-se Desforges.”
Ao ouvi-la, Carhart contou sobre as suas visitas à loja e o conselho de Luc. “Mas é claro que se necessita de recomendação. Eles não têm como saber com quem estão tratando se a pessoa não for apresentada por um cliente.” A mulher disse que o velho Desforges não gostava de vender pianos a desconhecidos. Carhart perguntou se ele poderia usar seu nome como referência na próxima vez que fosse lá. “Mas é claro! Eles me conhecem bem.”
Na manhã seguinte, Carhart entrou pela enésima vez na loja de pianos da rive gauche. Desforges, ao vê-lo, esboçou um sorriso cansado, mas sua expressão mudou ao ouvir o nome da cliente. Pediu licença, voltou aos fundos da loja e gritou: “Luc!”. Seguiu-se o que parecia ser uma discussão acalorada. Passados alguns minutos, Luc apareceu e disse: “Entrez, entrez, Monsieur!”
A irmandade secreta
Carhart pôde enfim matar a curiosidade e descobrir o que havia atrás daquela porta que dava na oficina. Quando ela se abriu, ficou boquiaberto. Era um espaço amplo cheio de pianos, pianos de todos os tipos, marcas, cores, estados e modelos, montados e desmontados. Luc começou a fazer perguntas sobre que tipo de música Carhart gostava de tocar, que tipo de piano preferia, aonde iria colocá-lo, e foi mostrando o que tinha, dizendo, “esse é interessante, esse aqui não vale nada, este vamos desmontar e usar as peças, este já está reservado. Este é uma beleza, mas não creio que o senhor estaria disposto a pagar o que vale. Já este é promissor, mas precisa ser reformado e não sei quando poderei fazê-lo...”
As perguntas eram tantas e tantos os pianos que Carhart não sabia o que fazer. Testou alguns, mas nenhum o satisfez. Luc disse que era assim mesmo. Achar o piano certo para cada pianista não era coisa que acontecia de uma hora para a outra. Levava tempo. Se continuasse voltando à loja, em algum momento o piano certo surgiria, pois cerca de 50 instrumentos saíam e entravam todos os meses. Quando Carhart se dirigia à saída encantado com tudo o que viu, Luc disse: “E não precisa mais tocar a campainha. Pode entrar na oficina sem bater, o senhor agora é nosso cliente!”
O convite de Luc foi o ingresso de Carhart naquilo que ele veio a perceber era uma confraria, uma confraria pequena, íntima e restrita, uma confraria dos amantes de pianos. Todas as sextas-feiras no fim do dia, um número que variava de 5 a 20 pessoas se encontrava na oficina para conhecer os instrumentos recém-chegados, trocar experiências e falar da vida e tomar vinho.
Este é o início do romance, que segue com a descoberta do piano perfeito para Carhart, sua aquisição, o cuidado com o instrumento e o retorno do quarentão às aulas de piano. Tudo isto pontuado pelas lições surpreendentes e observações saborosas de Luc – que acaba comprando a loja do velho Desforges - sobre o universo do piano, seu método de fabricação, suas peças, como eles funcionam, sua história e seus segredos.
O livro é uma declaração de amor ao instrumento. Devorei-o em três dias. Quando terminei, fiquei com a forte impressão de que aquele livro não era um romance como indicava a introdução e a contracapa. Em nenhum lugar havia menção a lugares e nomes reais, mas aquela impressão não me saiu da cabeça...
Uma revelação inesperada
Uma semana depois, no início de julho, fui a Campos do Jordão (SP) entrevistar a maravilhosa pianista portuguesa Maria João Pires e o grande violoncelista brasileiro Antônio Meneses. Eles iriam se apresentar juntos pela primeira vez, no Festival de Inverno (leia “Quando os gênios se tocam”). A entrevista foi na hora do almoço, no restaurante do Grande Hotel, onde Meneses estava hospedado. E foi entre uma pergunta e outra que comentei ter acabado de ler um livrinho ótimo sobre pianos chamado A loja de pianos da Rive Gauche. “Eu adoro esse livro! Li há alguns anos”, exclamou a pianista. Ao perceber a reação de Maria João, observei que o livro não parecia ficção, mas um relato vivido. “Não é ficção, não”, disse a senhorinha miúda e encantadora. “A loja existe. Os nomes estão todos trocados”.
Naquele instante percebi que Maria João Pires fazia parte da confraria. Minha primeira reação foi querer perguntar qual era o nome real de Luc e da loja? Qual era seu endereço? Será que ela se importaria em me dar um cartão de apresentação? Mas me calei. Por boas razões. Em primeiro lugar eu não estava lá, diante de dois grandes concertistas, para saciar a própria curiosidade sobre um assunto que nada tinha a ver com a entrevista. Em segundo, porque não tinha planos de visitar Paris no curto ou médio prazo. E em terceiro, porque não toco piano – nem nenhum outro instrumento. O único argumento restante para conhecer a loja seria entrevistar “Luc” – mas duvido que ele concordasse.
A entrevista prosseguiu e, como já estávamos falando de Paris por causa da loja da rive gauche, Glória, a agente de Maria João e de Meneses que almoçava conosco, jogou Nelson Freire e Martha Argerich na conversa. Os grandes pianistas são amigos desde os anos de formação na década de 1950. Glória, que também os agencia, contou que os apartamentos parisienses de Martha e de Nelson ficam um na frente do outro. “Quando vou ver Nelson, ele nunca tem nada para comer. Nós sempre atravessamos a rua e vamos almoçar na casa de Martha, estando ela em Paris ou não.”
Se você começou a suspeitar – como eu – que Argerich e Freire também fazem parte da confraria da loja de pianos, bingo! Eu não os conheço pessoalmente, mas pretendo entrevistar Argerich em 2012. É quando a grande pianista argentina radicada na Suíça virá tocar no Brasil. Quem me contou em primeira mão foi a empresária Glória, naquele mesmo almoço. Esta informação é um furo. Quem sabe até lá descubro alguma desculpa convincente para, mesmo sem tocar piano, perguntar o endereço e pedir uma indicação para bater à porta da loja de pianos da rive gauche, conhecer Luc, e adentrar naquele templo da música?
Ah! Quase ia esquecendo: não adianta procurar no Google. Eu gastei um tempão usando todos os termos e variáveis que imaginei para tentar descobrir qual é o nome e o endereço da loja de pianos parisiense. Ela existe. Mas é um segredo muito bem guardado. A única pista que achei é a foto que ilustra esta coluna: a loja Pianos D’Antan. Será ela?
Não, não é a Pianos d'Antan
Amigos leitores,
Peter
Uma outra possibilidade...
Gastei parte da tarde no Google Maps checando TODOS os endereços de lojas de pianos novos e usados de Paris. Foram mais de 20. Só 3 ficam na rive gauche. Dois são em avenidas. Só um endereço poderia ser o local onde ficava a loja de pianos - ficava, pois a loja fechou em 2005...
Se você quiser checar por si próprio(a), entre no Google Maps, cole o endereço "282, Rue Saint Jacques, 75005, Paris", e tecle Enter. Quando abrir o mapa, use o recurso para ver a imagem da rua. Aí, vire o mouse para a esquerda e veja do outro lado da rua, no número 282, uma loja chamada J. Derudder Artisan d'Art Encadreur (o nome está no toldo branco). Até 2005, era o endereço do afinador de pianos Robin Lehry, que se mudou para um endereço próximo. Creio que este possa ter sido o endereço da loja, pois é o único na rive gauche, que fica numa rua tranquila e tem um café em frente, do outro lado da rua, o Café Universel.
Verifiquei que Robin Lehry foi afinador oficial do Conservatoire national supérieur de musique et de danse de Paris, logo é um profissional qualificado para afinar pianos de concertistas como Maria João Pires, Martha Argerich e Nelson Freire. Se Lehry também consertava e vendia pianos, não sei, mas de toda a minha investigação esta parece ser a dica mais quente.
Nessas horas lembro sempre da observação de Sherlock Holmes em O signo dos quatro (1890): "Meu caro Watson, quando tivermos eliminado tudo o que for impossível, qualquer coisa que sobrar, embora improvável, tem que ser a verdade!"
Será?
:)
Originalmente publicado em Época Online, em 15/12/2010.
Peter Moon
"Um romance de rara sensibilidade sobre a redescoberta do amor pela música. A loja de pianos da Rive Gauche é uma silenciosa e apaixonante história sobre o piano e sua importância na vida francesa e na vida do próprio autor”, lê-se na contracapa deste livro de bolso, a surpresa mais deliciosa entre os livros que descobri em 2010. A loja de pianos da Rive Gauche, do americano T.E. Carhart (BestBolso, 294 páginas, R$ 17,90) foi publicado nos Estados Unidos em 2001. Encontrei o título por acaso, fuçando na lojinha da Sala São Paulo, antes de um concerto em junho. É o melhor livro que li em 2010 por duas razões: ele é ótimo - e esconde um segredo, um segredo cuja chave encontrei por acaso, e quero dividir com você.
O livro me pegou pela capa, com a foto parcial de um teclado antigo e sua referência à “Rive Gauche”, a margem esquerda do rio Sena, em Paris, o bairro dos artistas, da Universidade Sorbonne e dos charmosos cafés que reúnem a intelectualidade parisiense desde sempre. O livro era baratinho. Se fosse bom, daria para ler em dois ou três dias. Comecei a folheá-lo antes do início do concerto... e não parei mais. Foi quase a contragosto que interrompi a leitura na hora do concerto.
A história se passa nos anos 1990. O próprio autor, o escritor americano Thaddeus “Thad” Carhart, escreve em primeira pessoa. Carhart nasceu nos anos 1950 no interior da França, filho de um militar americano acantonado no país. Foi lá que passou a infância. Foi no ensino fundamental francês que o garoto teve suas primeiras aulas de piano, aprendendo o nome das notas musicais pela notação latina, a nossa Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si – e não na pouco inspirada versão anglo-saxônica, aquela que vai da letra A até a letra G, ou do Lá ao Sol.
Quando Carhart completou dez anos, seu pai foi transferido de volta aos Estados Unidos, onde o garoto continuou a estudar piano pelo prazer que sentia – ele nunca sonhou ser concertista, tinha consciência dos próprios limites. Quando chegou à high school, e de lá à universidade, abandonou o piano. E passaram-se 20 anos.
Nos anos 1990, o jornalista quarentão casado e pai de um casal de filhos conseguiu realizar o antigo sonho de voltar a morar na França. A família se instalou num pequeno apartamento na rive gauche. Todas as manhãs, Carhart saía para levar os filhos à escola. Depois, no caminho de volta, parava num café de um ruazinha tranqüila e estreita.
Logo na primeira semana, um fato lhe chamou a atenção. Através da vitrine do café, Carhart enxergou do outro lado da rua um caminhão estacionado. Do seu interior dois homens descarregavam pianos para dentro de uma loja. O letreiro dizia “Desforges Pianos”. Quase todos os dias havia algum piano sendo entregue ou retirado. Eram de todos os tipos. Havia pianos de cauda inteira e de meia cauda, pianos de armário, cravos e até espinetas. Alguns eram de concerto, todos negros. Uns eram brancos e outros rajados, valorizando os veios da madeira. Uns exibiam desenhos de marchetaria, enquanto outros apenas sobriedade. Muitos eram antigos, de todas as marcas que Carhart conhecia e muitas outras que nunca tinha ouvido falar.
Após várias semanas observando aquela dança de pianos, Carhart tomou coragem, atravessou a rua e abriu a porta da loja. Uma sineta soou. A sala que dava para a rua era pequena. Não havia piano à vista nem ninguém para atendê-lo. Uma porta se abriu e um senhor baixo e gordinho de mais de 60 anos surgiu: “Em que posso servi-lo, Monsieur?” Carhart disse que estava pensando em comprar um piano de segunda mão. O velho Desforges manteve o sorriso no rosto, e disse não poder ajudá-lo. Se ele quisesse retornar lá, disse o francês, quem sabe algum cliente poderia um dia se desfazer de seu piano usado.
Carhart saiu da loja decepcionado e intrigado. Mas seguiu o conselho de Desforges e voltou lá umas duas ou três vezes no mês seguinte. Ao vê-lo, o francês era sempre gentil. O sorriso não saia do rosto. Mas parecia impacientar-se com a insistência do americano. Sua resposta era sempre a mesma: infelizmente não teria como ajudá-lo. Carhart insistiu ainda um par de meses. Quando estava para desistir, algo mudou. Quem veio atendê-lo não foi Desforges, mas um homem mais jovem, obviamente seu assistente. “Meu colega me disse que o senhor tem vindo aqui em busca de um piano”, disse Luc. “Nós apenas consertamos pianos”, e olhou para o teto. “Bem... se o senhor nos fosse recomendado por algum dos nossos clientes, talvez ficasse mais fácil achar o piano que procura”, disse Luc, deixando a frase no ar. “Alguns dos seus clientes?”, disse Carhart. “Isso mesmo, há muitos deles aqui no quartier”, afirmou Luc.
Carhart saiu de lá pensando como faria para descobrir um cliente da loja. Umas semanas depois, ele foi buscar a filha na casa de uma amiguinha. Ao entrar no apartamento, viu um lindo piano na sala. Conversando com a mãe da menina, elogiou o piano. “Compramos logo que mudamos para o quartier”, disse a mulher. “Há uma lojinha maravilhosa perto de onde vocês moram que é cheia de tesouros como este. Chama-se Desforges.”
Ao ouvi-la, Carhart contou sobre as suas visitas à loja e o conselho de Luc. “Mas é claro que se necessita de recomendação. Eles não têm como saber com quem estão tratando se a pessoa não for apresentada por um cliente.” A mulher disse que o velho Desforges não gostava de vender pianos a desconhecidos. Carhart perguntou se ele poderia usar seu nome como referência na próxima vez que fosse lá. “Mas é claro! Eles me conhecem bem.”
Na manhã seguinte, Carhart entrou pela enésima vez na loja de pianos da rive gauche. Desforges, ao vê-lo, esboçou um sorriso cansado, mas sua expressão mudou ao ouvir o nome da cliente. Pediu licença, voltou aos fundos da loja e gritou: “Luc!”. Seguiu-se o que parecia ser uma discussão acalorada. Passados alguns minutos, Luc apareceu e disse: “Entrez, entrez, Monsieur!”
A irmandade secreta
Thad Carhart |
As perguntas eram tantas e tantos os pianos que Carhart não sabia o que fazer. Testou alguns, mas nenhum o satisfez. Luc disse que era assim mesmo. Achar o piano certo para cada pianista não era coisa que acontecia de uma hora para a outra. Levava tempo. Se continuasse voltando à loja, em algum momento o piano certo surgiria, pois cerca de 50 instrumentos saíam e entravam todos os meses. Quando Carhart se dirigia à saída encantado com tudo o que viu, Luc disse: “E não precisa mais tocar a campainha. Pode entrar na oficina sem bater, o senhor agora é nosso cliente!”
O convite de Luc foi o ingresso de Carhart naquilo que ele veio a perceber era uma confraria, uma confraria pequena, íntima e restrita, uma confraria dos amantes de pianos. Todas as sextas-feiras no fim do dia, um número que variava de 5 a 20 pessoas se encontrava na oficina para conhecer os instrumentos recém-chegados, trocar experiências e falar da vida e tomar vinho.
Este é o início do romance, que segue com a descoberta do piano perfeito para Carhart, sua aquisição, o cuidado com o instrumento e o retorno do quarentão às aulas de piano. Tudo isto pontuado pelas lições surpreendentes e observações saborosas de Luc – que acaba comprando a loja do velho Desforges - sobre o universo do piano, seu método de fabricação, suas peças, como eles funcionam, sua história e seus segredos.
O livro é uma declaração de amor ao instrumento. Devorei-o em três dias. Quando terminei, fiquei com a forte impressão de que aquele livro não era um romance como indicava a introdução e a contracapa. Em nenhum lugar havia menção a lugares e nomes reais, mas aquela impressão não me saiu da cabeça...
Uma revelação inesperada
Uma semana depois, no início de julho, fui a Campos do Jordão (SP) entrevistar a maravilhosa pianista portuguesa Maria João Pires e o grande violoncelista brasileiro Antônio Meneses. Eles iriam se apresentar juntos pela primeira vez, no Festival de Inverno (leia “Quando os gênios se tocam”). A entrevista foi na hora do almoço, no restaurante do Grande Hotel, onde Meneses estava hospedado. E foi entre uma pergunta e outra que comentei ter acabado de ler um livrinho ótimo sobre pianos chamado A loja de pianos da Rive Gauche. “Eu adoro esse livro! Li há alguns anos”, exclamou a pianista. Ao perceber a reação de Maria João, observei que o livro não parecia ficção, mas um relato vivido. “Não é ficção, não”, disse a senhorinha miúda e encantadora. “A loja existe. Os nomes estão todos trocados”.
Naquele instante percebi que Maria João Pires fazia parte da confraria. Minha primeira reação foi querer perguntar qual era o nome real de Luc e da loja? Qual era seu endereço? Será que ela se importaria em me dar um cartão de apresentação? Mas me calei. Por boas razões. Em primeiro lugar eu não estava lá, diante de dois grandes concertistas, para saciar a própria curiosidade sobre um assunto que nada tinha a ver com a entrevista. Em segundo, porque não tinha planos de visitar Paris no curto ou médio prazo. E em terceiro, porque não toco piano – nem nenhum outro instrumento. O único argumento restante para conhecer a loja seria entrevistar “Luc” – mas duvido que ele concordasse.
A entrevista prosseguiu e, como já estávamos falando de Paris por causa da loja da rive gauche, Glória, a agente de Maria João e de Meneses que almoçava conosco, jogou Nelson Freire e Martha Argerich na conversa. Os grandes pianistas são amigos desde os anos de formação na década de 1950. Glória, que também os agencia, contou que os apartamentos parisienses de Martha e de Nelson ficam um na frente do outro. “Quando vou ver Nelson, ele nunca tem nada para comer. Nós sempre atravessamos a rua e vamos almoçar na casa de Martha, estando ela em Paris ou não.”
Se você começou a suspeitar – como eu – que Argerich e Freire também fazem parte da confraria da loja de pianos, bingo! Eu não os conheço pessoalmente, mas pretendo entrevistar Argerich em 2012. É quando a grande pianista argentina radicada na Suíça virá tocar no Brasil. Quem me contou em primeira mão foi a empresária Glória, naquele mesmo almoço. Esta informação é um furo. Quem sabe até lá descubro alguma desculpa convincente para, mesmo sem tocar piano, perguntar o endereço e pedir uma indicação para bater à porta da loja de pianos da rive gauche, conhecer Luc, e adentrar naquele templo da música?
Ah! Quase ia esquecendo: não adianta procurar no Google. Eu gastei um tempão usando todos os termos e variáveis que imaginei para tentar descobrir qual é o nome e o endereço da loja de pianos parisiense. Ela existe. Mas é um segredo muito bem guardado. A única pista que achei é a foto que ilustra esta coluna: a loja Pianos D’Antan. Será ela?
Não, não é a Pianos d'Antan
Amigos leitores,
Como disse, não é fácil descobrir onde fica esta loja de pianos. Resolvi persistir e dar uma checada no Google Maps para saber onde fica a loja Pianos d'Antan, cujo endereço, descobri: fica no "3, Rue des Batignolles, 75017, Paris". A loja existe, a rua existe, e ambas ficam lá, em Paris. Só tem um problema: não ficam na rive gauche, a margem esquerda do Sena, mas na rive droit, a direita... logo, não poderia ser a loja de "Luc".
Continuo procurando... qualquer novidade, informo vocês!
Continuo procurando... qualquer novidade, informo vocês!
:)
Peter
Uma outra possibilidade...
Gastei parte da tarde no Google Maps checando TODOS os endereços de lojas de pianos novos e usados de Paris. Foram mais de 20. Só 3 ficam na rive gauche. Dois são em avenidas. Só um endereço poderia ser o local onde ficava a loja de pianos - ficava, pois a loja fechou em 2005...
Se você quiser checar por si próprio(a), entre no Google Maps, cole o endereço "282, Rue Saint Jacques, 75005, Paris", e tecle Enter. Quando abrir o mapa, use o recurso para ver a imagem da rua. Aí, vire o mouse para a esquerda e veja do outro lado da rua, no número 282, uma loja chamada J. Derudder Artisan d'Art Encadreur (o nome está no toldo branco). Até 2005, era o endereço do afinador de pianos Robin Lehry, que se mudou para um endereço próximo. Creio que este possa ter sido o endereço da loja, pois é o único na rive gauche, que fica numa rua tranquila e tem um café em frente, do outro lado da rua, o Café Universel.
Verifiquei que Robin Lehry foi afinador oficial do Conservatoire national supérieur de musique et de danse de Paris, logo é um profissional qualificado para afinar pianos de concertistas como Maria João Pires, Martha Argerich e Nelson Freire. Se Lehry também consertava e vendia pianos, não sei, mas de toda a minha investigação esta parece ser a dica mais quente.
Nessas horas lembro sempre da observação de Sherlock Holmes em O signo dos quatro (1890): "Meu caro Watson, quando tivermos eliminado tudo o que for impossível, qualquer coisa que sobrar, embora improvável, tem que ser a verdade!"
Será?
:)
Originalmente publicado em Época Online, em 15/12/2010.
Bom dia a você que escreveu essa maravilha de romance mesclado com verdade.
ResponderExcluirFiquei encantadissimo, e jà queira ir là ao Bd. Batignoles, quem sabe, tocar e cantar um lied de Franz Schubert num piano, quem sabe,vienense.Mas no fim de seu belo artigo, descobri com tristeza que a loja nao existe mais. Vou lêr e relêr seu maravilhoso romance. Mas antes, gostaria de lhe dizer um grandioso "Muito obrigado".
Abraços do José Geraldo ,tenor na OperaNational de Strasbourg-France
Caro Jose Geraldo
ResponderExcluirmuito obrigado pelo seu comentário. Olha, a loja não existe naquele endereço, mas, como a Maria João Pires me disse pessoalmente, a loja existe sim e os nomes foram todos trocados. Ora, se ela existia, a comunidade musical de Paris deve saber onde era e para onde foi. E como vc está aí pertinho, suponho que conheça em Paris alguém que é cliente da loja, certo?
Que tal vc tentar descobrir onde ela fica e compartilhar a informação comigo, o que acha?
Fica aqui minha sugestão (um quase pedido, sou curiosíssimo pra saber onde fica essa lojinha :)
obrigado e um abração
Peter