O tenor perdido – O violoncello piccolo de 4 cordas traz Dimos Goudaroulis tocando um instrumento único, feito há 300 anos
Peter Moon
“O que faz um violoncelista que tem uma queda por instrumentos antigos e um amor especial pela música dos séculos XVII e XVIII quando entra numa oficina de instrumentos de corda em São Paulo e descobre num canto, malconservado e abandonado, um violoncelo pequeno e muito antigo?”, diz o grego Dimos Goudaroulis. Isso aconteceu com ele em 1997, ano em que passou a morar na cidade. “O que é isso?”, perguntou Goudaroulis. “Ah! Nada, um instrumento de criança que não soa – não vale nada”, disse o luthier. “Quanto custa?” O luthier se surpreendeu. “Sei lá, faça seu preço.” Goudaroulis acabara de trocar a Europa pelo Brasil. Não tinha dinheiro. Mas fez um lance modesto e fechou o negócio na hora. Foi o melhor negócio de sua vida. O “instrumento de criança” do luthier (Goudaroulis não diz seu nome. Esta história depõe contra ele) é o único violoncelo piccolo de quatro cordas do planeta. Feito na Alemanha no fim do século XVII, tem valor inestimável. Goudaroulis gastou dez anos garimpando repertório para o instrumento, que chama de “cello tenor”. O resultado é o álbum duplo O tenor perdido – O violoncello piccolo de 4 cordas, com Dimos Goudaroulis e o cravista Nicolau de Figueiredo (Selo Sesc, R$ 25).
O álbum seria notável só por trazer as primeiras gravações mundiais de partituras raríssimas feitas para “cello tenor”. Ao escutá-las, torna-se indispensável. As interpretações de Goudaroulis e Figueiredo das quatro sonatas para violoncelo e baixo contínuo (o cravo) do italiano Andrea Caporale (1700-1757), o violoncelista preferido de Haendel, e dos cinco “Allettamenti” de Giuseppe Valentini (ca. 1680-1740) são maravilhosas. O timbre do “cello tenor” difere de qualquer outro cello. Completam o álbum seis solos de cravo, transcrições do inglês William Babell sobre temas da ópera Rinaldo, de Haendel. São de arrepiar. Confirmam que o paulistano Figueiredo, na Europa desde 1980, é nosso melhor cravista.
O tenor perdido tem a qualidade da melhor música antiga executada na Europa, só que foi feito no Brasil. E com um instrumento do qual nada se sabia, até Goudaroulis descobri-lo. “Era lindo, apesar dos remendos e reparos, pequeno e charmoso, muito antigo, bem barroco – meio torto, assimétrico e barrigudo.” Seu estado era lastimável. Goudaroulis trocou as cordas de metal por tripa e foi tocá-lo. “Tinha pouco som mesmo, especialmente a corda dó grave.” Mostrou-o a músicos e luthiers europeus, que ficaram extasiados. Um colega holandês sugeriu: “Por que não tenta montá-lo como um piccolo de quatro cordas (trocando a corda dó pela mi)? No século XVII, havia cellos assim”. Goudaroulis seguiu o conselho, e deu-se o milagre. “Ele era morno, chocho. Quando pus a corda certa, começou a cantar. O volume triplicou. Que transformação rápida, que som lindo e cortante, que timbre!”
Durante nossa entrevista, tive o privilégio de ouvir Goudaroulis tocar o prelúdio da “Suíte para violoncelo nº 1”, de Johann Sebastian Bach. As seis suítes de Bach são o cânone dos violoncelistas. Em 2007, o músico gravou três delas. Em maio, lançará o ciclo completo. O melhor negócio da vida de Goudaroulis foi ótimo para todo mundo.
Publicado originalmente em Época, em 23/04/2010.
Peter Moon
Goudaroulis e o piccolo de quatro cordas. |
O álbum seria notável só por trazer as primeiras gravações mundiais de partituras raríssimas feitas para “cello tenor”. Ao escutá-las, torna-se indispensável. As interpretações de Goudaroulis e Figueiredo das quatro sonatas para violoncelo e baixo contínuo (o cravo) do italiano Andrea Caporale (1700-1757), o violoncelista preferido de Haendel, e dos cinco “Allettamenti” de Giuseppe Valentini (ca. 1680-1740) são maravilhosas. O timbre do “cello tenor” difere de qualquer outro cello. Completam o álbum seis solos de cravo, transcrições do inglês William Babell sobre temas da ópera Rinaldo, de Haendel. São de arrepiar. Confirmam que o paulistano Figueiredo, na Europa desde 1980, é nosso melhor cravista.
O tenor perdido tem a qualidade da melhor música antiga executada na Europa, só que foi feito no Brasil. E com um instrumento do qual nada se sabia, até Goudaroulis descobri-lo. “Era lindo, apesar dos remendos e reparos, pequeno e charmoso, muito antigo, bem barroco – meio torto, assimétrico e barrigudo.” Seu estado era lastimável. Goudaroulis trocou as cordas de metal por tripa e foi tocá-lo. “Tinha pouco som mesmo, especialmente a corda dó grave.” Mostrou-o a músicos e luthiers europeus, que ficaram extasiados. Um colega holandês sugeriu: “Por que não tenta montá-lo como um piccolo de quatro cordas (trocando a corda dó pela mi)? No século XVII, havia cellos assim”. Goudaroulis seguiu o conselho, e deu-se o milagre. “Ele era morno, chocho. Quando pus a corda certa, começou a cantar. O volume triplicou. Que transformação rápida, que som lindo e cortante, que timbre!”
Durante nossa entrevista, tive o privilégio de ouvir Goudaroulis tocar o prelúdio da “Suíte para violoncelo nº 1”, de Johann Sebastian Bach. As seis suítes de Bach são o cânone dos violoncelistas. Em 2007, o músico gravou três delas. Em maio, lançará o ciclo completo. O melhor negócio da vida de Goudaroulis foi ótimo para todo mundo.
Publicado originalmente em Época, em 23/04/2010.
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