O Holocausto, segundo os mortos

As memórias dos mortos no gueto de Varsóvia


Peter Moon


Nazistas expulsam judeus na destruição do gueto de Varsóvia, em 1943



Há três formas de relatar o Holocausto (shoah, em hebraico), o extermínio de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial. Há a versão dos sobreviventes, a dos assassinos e a dos mortos. O testemunho dos sobreviventes é o de quem perdeu tudo, viu os familiares morrer e sobreviveu para contar seu calvário. É isso um homem? (1947), do italiano Primo Levi, é o melhor exemplo. Levi é um dos 7 mil sobreviventes do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, destino final de 1,5 milhão de judeus.

A mais impressionante versão dos assassinos é de Adolf Eichmann, o burocrata responsável pela logística da deportação em massa. Ao depor em seu julgamento em Israel, em 1961, Eichmann disse que, na guerra, só estava preocupado com a pontualidade dos trens da morte. Não se considerava culpado pelo destino dos judeus. Era “a banalização do mal”, como descreveu a filósofa alemã Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém (1963), o relato do julgamento de Eichmann, enforcado em 1962.

O terceiro viés da história do Holocausto é o relato dos mortos. O mais célebre é o Diário de Anne Frank (1947), a adolescente holandesa que, escondida com a família por dois anos num sótão de Amsterdã, manteve a dignidade e a esperança no futuro, até ser presa e deportada para Auschwitz, em 1945.

Conhecer a versão dos mortos é essencial, pois muitos sobreviventes preferiram se calar. Queriam esquecer. Os que decidiram contar sua visão do horror destacaram os piores momentos nos campos de extermínio. Deixaram de lado os anos na clandestinidade ou nos guetos. Não falaram da humilhação sistemática exercida pelos nazistas e por seus colaboradores nos países ocupados. Silenciaram sobre a polícia judaica, obrigada a entregar cotas de mulheres e crianças aos carrascos.

Quem escreverá nossa história? – Os arquivos do gueto de Varsóvia, do historiador americano Samuel D. Kassow (Companhia das Letras, 584 páginas, R$ 59), não é leitura fácil. Mas nasce clássico. Foi escolhido um dos melhores livros de 2009 pelo jornal londrino Financial Times. Kassow passou oito anos estudando milhares de documentos de um arquivo secreto, criado pelo polonês Emanuel Ringelblum (1900-1944). Em 1940, era iminente a tomada de Varsóvia pelos nazistas. A elite judaico-polonesa fugiu. Ringelblum ficou. Queria ajudar os 400 mil judeus – um terço da população – que não tinham como escapar. Todos acabaram no gueto.

Decidido a registrar o cotidiano de seu povo, e os crimes contra ele cometidos, Ringelblum arregimentou 60 pesquisadores para registrar tudo o que aconteceu no gueto. Eles trabalharam, literalmente, até o fim. Antes da destruição do gueto, em 1943, enterraram latões de leite com os documentos. Dos pesquisadores, sobraram três. Em 1946, eles ajudaram a recuperar os latões sob um prédio demolido. Neles ecoava a voz das vítimas. Como a de Israel Lichtenstein, que escreveu sobre a filhinha: “Margalit tem 1 ano e 8 meses. Não lamento minha vida nem a de minha mulher. Só tenho pena dessa menininha linda. Ela merece ser lembrada”.

Publicada originalmente em Época, em 18/12/2009.

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