O cisne negro e um copo de cólera - A máquina do tempo

Tchaikovsky morreu em 1893 por ser homossexual. Marin Alsop, a maestrina da Osesp a partir de 2012, é assumidíssima. Vamos salvar o compositor de O lago dos cisnes?


Peter Moon


Natalie Portman em Cisne Negro
Quando assisti o Cisne Negro, sai do cinema boquiaberto. Que filme, que vida sacrificada a das bailarinas, o convívio diário com a dor, com as torções, que drama psicológico... e que interpretação de Natalie Portman! Ah, sim, e a dança, e que música maravilhosa... Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840-1893) compôs o balé O lago dos cisnes, opus 20, entre 1875 e 1876, atendendo a uma encomenda da companhia do Teatro Bolshoi de Moscou. O balé estreou em 1877 com coreografia de Julius Reisiger. Como a maioria das obras-primas, não fez sucesso imediato. O lago dos cisnes foi ganhando admiração a partir da segunda coreografia, criada em 1895 pelo francês Marius Petipa, o maior coreógrafo de balé de todos os tempos, e seu assistente russo Lev Ivanov. Hoje, O lago dos cisnes talvez seja o balé mais célebre do repertório, superando O quebra-nozes do próprio Tchaikovsky e Giselle. Tchaikovsky não chegou a conhecer o sucesso de seu balé. Morreu em São Petersburgo em 1893, aos 53 anos, nove dias após a estreia da sua Sexta Sinfonia, a Patética. Ele era homossexual e teria se suicidado por não aguentar viver escondendo a sua condição. Era isto o que eu sabia, ou tinha ouvido falar. 


Na manhã do domingo, 13 de fevereiro, abro o jornal e leio que a maestrina e violinista americana Marin Alsop assumirá em 2012 como a nova regente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp. Alsop é um nome em ascensão. A regente da Orquestra Sinfônica de Baltimore é a maior maestrina da atualidade. Espera-se que preencha o vazio deixado pela demissão abrupta em 2008 do maestro John Neschling. Sua saída deixou um vácuo jamais totalmente preenchido por seu substituto “temporário”, o francês Yan Pascal Tortelier. Fiquei igualmente surpreso quando soube que Alsop é homossexual assumida. Ela tem um filho que cria com Kristin Jurkscheit, sua companheira desde 1990. A comparação com Tchaikovsky foi inevitável. Como o mundo mudou em 130 anos? Um dos maiores compositores do romantismo morreu por ser gay. No caso de Alsop, ser gay nunca foi um impedimento para a sua realização como artista. 


Curioso perceber que Alsop tem 54 anos, um ano a mais que Tchaikovsky ao morrer. “E se Tchaikovsky não tivesse se suicidado? E se tivesse vivido outros 10 ou 20 anos? O compositor estava no auge da sua criatividade. Quantas obras sinfônicas e balés poderia ainda compor?”


Sonhos de uma noite de primavera 

Marin Alsop e a Sinfônica de Baltimore
Como propus na minha última coluna, a partir desta semana minha intenção é conduzir os leitores através de viagens no tempo e no espaço. Não serão excursões turísticas nem roteiros de curiosidades históricas. Cada viagem terá um propósito. O motivo da viagem de hoje é impedir que Tchaikovsky adoeça e morra em 1893, ao tomar - ou ser obrigado a engolir - um copo com água contaminada com cólera. 


Tchaikovsky morreu de cólera. Quanto a isto quase não resta dúvida. Esta seria a única certeza entre as circunstâncias que envolveram a sua morte. Se ingeriu água contaminada por acaso ou o fez para pôr fim a uma vida vivida dentro do armário, aí reside o mistério, mistério este que embaralhou ainda mais nos anos 1970, quando uma nova carta foi posta sobre a mesa. Parece que o caso amoroso de Tchaikovsky com um membro da alta nobreza russa corria o risco de vir à tona, trazendo consigo todas as consequências previsíveis. Para salvar as aparências - do nobre em questão e da nobreza em geral - e censurar a condição homossexual do compositor, que era admirado pelo czar, Tchaikovsky teria sido condenado ao suicídio pelos membros da Escola Imperial de Jurisprudência de São Petersburgo. 


A hipótese é plausível. Não esqueçamos que a moral da época era a vitoriana. Manter as aparências era o que importava. Quando, em 1895, o romancista e dramaturgo irlandês Oscar Wilde viu tornar-se pública a sua relação com o jovem lorde Alfred Douglas, Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados por indecência. Ao ser libertado em 1897, era um homem despedaçado. Morreu em 1900. 


Quanto a Tchaikovsky, a hipótese plausível de “suicídio assistido” não é condição suficiente para bater o martelo e chegar a um veredicto. Segundo o Dicionário New Grove de Música, edição de 2001, “a polêmica sobre a morte [de Tchaikovsky] chegou num impasse... Quanto à doença, a falta de evidências oferece pouca esperança de uma solução satisfatória: a ausência de diagnóstico, a confusão das testemunhas, o desconhecimento dos efeitos no longo prazo do fumo e do álcool. Nós não sabemos como Tchaikovsky morreu. Talvez nunca descobriremos...”


Com tantas variáveis na equação, façamos o seguinte: ignoremos todas. Leve-se em consideração apenas e tão somente um fato, o coléra. Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram Tchaikovsky a entornar o copo de água envenenada, sabemos que não morreu de imediato. Sua agonia durou dias. 


Como, por combinação prévia, a nossa capacidade de viajar no tempo não está em questão, para salvar Tchaikovsky temos duas alternativas. Graças à medicina do século XXI, pode-se prevenir o cólera com uma vacina - cuja imunidade é temporária - ou curar o paciente administrando doses de soro. 


Não podemos ficar mais do que algumas horas no passado, logo a opção do soro é inviável. Então, que seja a vacina. Pouco importa que sua imunidade seja temporária. Importa salvar Tchaikovsky do conteúdo daquele copo de cólera. Caso obtenhamos sucesso, os eventos subsequentes são imprevisíveis. Talvez os nobres juristas de São Petersburgo, inconformados com a resistência assombrosa do compositor à doença, decidam achar outra forma de o silenciar. Um tiro, uma lâmina, uma estocada de florete no coração? Talvez fique o dito pelo não dito, o caso amoroso seja abafado e Tchaikovsky possa viver mais uns anos, legando-nos um novo par de óperas, outro de concertos e mais um de balés, que tal?


Uma imunização furtiva


Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840-1893)
Mãos à obra! É a hora de fechar os olhos e voltar 118 anos no passado, a maio de 1893, seis meses antes da morte do compositor. Suponho que um semestre seja tempo suficiente para o sistema imunológico de Tchaikovsky desenvolver imunidade contra o cólera após receber a vacina. 


Estamos em São Petersburgo, diante da casa do artista. É madrugada, faz frio e ainda neva, apesar da primavera estar avançada. A rua está vazia. Ouve-se o som dos cascos de um cavalo. Uma charrete dobra a esquina. Ela pára diante da casa. Desce um homem. Os fios grisalhos lhe cobrem as têmporas, o bigode e o cavanhaque, mas não a larga testa, exposta pela calvície. Seu sobretudo é negro, assim como sua gravata. Ele segura a cartola numa mão e a bengala na outra. Tchaikovsky paga o cocheiro e caminha com dificuldade até a porta. Toca a campainha. Passam-se alguns momentos até o criado atender. A porta abre e fecha. 


A rua volta a ficar vazia. A neve cai. Logo as marcas das rodas da carruagem e dos cascos do cavalo terão desaparecido. Uma luz acende no segundo andar. A luz é amarela, inconstante, própria de uma lamparina a óleo. Ela projeta na cortina de renda branca uma sombra bruxuleante e disforme. A luz demora a apagar. Passa das três da manhã quando finalmente o quarto fica às escuras. Entramos em ação. 


Você atravessa a rua primeiro. Eu sigo atrás. Você tira do bolso uma chave-mestra. Não perco tempo perguntando onde foi que a conseguiu. Temos pressa. A fechadura destranca. Abrimos a porta devagar. O vestíbulo está vazio. Todos dormem. Em silêncio, subimos a escada. Ela termina diante da porta do quarto principal. Giramos a maçaneta. A porta abre. O cheiro de charuto e bebida é forte. Alguém ronca estirado na cama. A vodca é nossa aliada. Tchaikovsky parece desmaiado de bêbado. 


Tiro a seringa de um estojo no sobretudo. Retiro também a ampola. Arranco o lacre de metal, chacoalho o frasco e o perfuro com a agulha da seringa. Puxo o êmbolo até sorver todo o líquido. Com o indicador, dou dois petelecos na seringa, soltando qualquer eventual bolha de ar. Pressiono o êmbolo até expelir todo o ar do interior da seringa. Um espirro líquido sai da agulha. Ando até a cama. 


Estendo o braço, ofereço-lhe a seringa. Você recua. Faz que não com a cabeça. Não é um problema. Estou acostumado a aplicar vacina nos meus cachorros. Quem consegue segurar um bernese de 60 quilos e aplicar duas vacinas certamente não terá maiores imprevistos ao espetar um alvo imóvel.


Plá! Tchaikovsky geme, mas não chega a abrir os olhos. A aplicação leva alguns segundos. Retiro a agulha. Tutto é finito. 


Em instantes, ouve-se de novo um ronronar. Logo ele se transformará num ronco. Mas não chegamos a ouví-lo. A esta altura já estamos na rua. Nossos passos rápidos deformam o tapete imaculado da neve que cobre a calçada. Olho para você. Você me olha. Trocamos um sorriso de cumplicidade. Não há o que falar. Agora é voltar ao presente e correr a descobrir os sons e os bailados desconhecidos que ainda estão por vir. Ao virar a esquina, o tempo acelera. Os olhos se abrem. E ponto final.


Publicado originalmente em Época Online, em 15/02/2011.

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