Strawberry fields forever

O dia em que salvei John Lennon dos tiros de um maníaco


Peter Moon

Lennon dá autógrafo a Chapman. Foto de Goresh, 08/12/1980
Em 8 de dezembro de 1980, Lennon tinha 40 anos. Ele não gravava nem se apresentava em público desde o nascimento do filho Sean, em 1975. Quando se sentiu pronto para voltar ao estúdio de gravação, disse que queria fazer “um álbum tão bom quanto Heroes (1977), de David Bowie. O álbum Double Fantasy foi gravado entre agosto e setembro, e lançado em 17 de novembro de 1980. A faixa (Just Like) Starting Over tocava nas rádios e seu clipe era exibido na tevê (lembro-me de tê-lo assistido pela primeira vez no “Fantástico”). 


Eram 5 da tarde de 8 de dezembro quando John e Yoko saíram do Dakota, o edifício gótico onde moravam, diante do Central Park West. Uma limusine os aguardava. Iria levá-los a um estúdio onde Lennon gravaria outro clipe. Ao atravessar a calçada, Lennon foi cumprimentado por Paul Goresh, um beatlemaníaco que passava os dias plantado na soleira do Dakota à espreita do ídolo – e acabou ganhando a sua confiança. Lennon também foi abordado por um jovem gordo e de óculos que lhe estendeu o LP Double Fantasy e pediu: “Pode autografá-lo para mim?” O ex-Beatle disse: “É só isso o que você quer?”. Sim, disse Mark Chapman, então com 25 anos. Lennon pegou a caneta e a capa do LP e atendeu ao desejo do fã. Goresh aproveitou para tirar duas fotos. Dado o autógrafo, Lennon entrou na limusine que logo desapareceu no trânsito pesado da hora do rush em Manhattan. 


Chapman estava postado na calçada do Dakota desde as 8 da manhã. Ele tinha voado desde o Havaí com duas obsessões. A primeira era conseguir o autógrafo de Lennon. A segunda obsessão Chapman realizaria às 22h49, quando a limusine com John e Yoko retornou ao Dakota. O casal saiu do carro, atravessou a calçada e seguiu para a entrada do prédio. Segundo os legistas, Lennon jamais soube o que foi que o atingiu. Ele já estava morto quando seu corpo bateu no chão. 


Chapman apontou seu revólver calibre 38 especial para as costas do músico e disparou cinco vezes à queima-roupa. Quatro tiros atingiram seu destino. As balas eram do tipo dun-dun, com as pontas ocas que se abrem como flores de aço, explodindo ao penetrar o alvo. 


Lennon foi levado às pressas ao pronto-socorro do vizinho hospital Roosevelt, onde foi declarado morto às 23h07. De acordo com o laudo da autópsia “quatro tiros atingiram o Sr. Lennon, dois no lado esquerdo das costas e dois no ombro esquerdo. Todos os quatro causaram lesões internas e sangramento”. Seu atestado de óbito menciona “múltiplos ferimentos à bala no tórax e no ombro esquerdo... perfurações do pulmão e da artéria subclávia esquerdos... hemorragia interna e externa... choque.” 


Em 27 de dezembro, (Just Like) Starting Over chegou ao topo da lista da Billboard, lá permanecendo até 31 de janeiro de 1981.


O sonho acabou 


Lennon se afasta. Foto de Goresh, 08/12/1980
Uma onda de choque varreu corações e mentes ao redor do planeta nas horas, dias e semanas seguintes. É preciso ter mais de 40 anos para lembrar a consternação mundial que se seguiu ao assassinato de John Lennon em 1980. Desde então, só consigo imaginar duas outras ocasiões quando a sensação coletiva de perda foi semelhante. Aqui no Brasil, em 1994, na morte de Ayrton Senna. E no mundo todo em 2009, com o fim de Michael Jackson.


Senna era um piloto de corridas, o melhor deles. Ele acelerava e freava seu carro de Fórmula 1 no limite que separa a vida da morte. Caso Senna não tivesse comparecido àquele encontro marcado na curva Tamburello, em Ímola, no Grande Prêmio de San Marino, em 1º de maio de 1994, acredito que o encontro se daria mais à frente, cedo ou tarde, e dentro do cockpit.


Com Michael Jackson minha sensação é a mesma. Sua dependência daquele coquetel de calmantes, soníferos e antidepressivos não poderia continuar por muito tempo. 


Com Lennon é diferente. Em 8 de dezembro de 2010 completaram-se 30 anos do seu assassinato. Ele se foi antes do tempo. Não fazia parte do combinado. Lennon ainda tinha muito a criar. Tinha muita vida pela frente. É por isto que a ideia de voltar no tempo para salvar sua vida me é tão atraente. Não fosse a obsessão assassina de um sujeito com um longo histórico de distúrbios mentais como Mark Chapman, Lennon poderia estar entre nós. Ele poderia ter completado 70 anos em 9 de outubro de 2010. Poderia fazer sua primeira turnê pelo Brasil em 2011. 


Quanto a Chapman, está preso desde 1980. Já teve cinco vezes recusado o pedido de liberdade condicional, pois ainda é considerado um perigo para a sociedade.


Strawberry Fields... 


A porta do edifício Dakota
Decidi há duas semanas que viajaria no tempo para evitar o assassinato de Lennon. Foram duas semanas de treinamento. Tenho passado algumas horas a cada noite treinando um único golpe, o da “lâmina escondida”. Trata-se de uma estocada rápida, precisa, quase cirúrgica, invisível e fulminante, que vi pela primeira vez no filme de samurais A lâmina escondida. O destino da pequena lâmina é o coração de Mark Chapman. 


São 16h50 de uma fria tarde de inverno, 8 de dezembro de 1980, quando saio da estação de metrô na Rua 72, em frente ao Central Park West, em Nova York. Pego a calçada à minha esquerda na direção do Dakota, apenas a uma quadra de distância. Ando com as mãos enterradas nos bolsos do sobretudo. Na palma da mão direita sinto o frio da lâmina delgada de um palmo de comprimento. 


Às 16h55, chego à esquina. Do outro lado da rua está o Dakota. Vejo a limusine estacionada. Paul Goresh está parado perto dela. Um outro sujeito com cara de palerma, gordo e de óculos anda de um lado para o outro. Ele está quieto, porém parece tenso. Ponho meus pés no asfalto. Um motorista de táxi pisa no freio e põe a mão na buzina do seu carro amarelo e mal-conservado. Ele pragueja em minha direção. É solenemente ignorado. Meus olhos estão focados na porta do Dakota. 


No momento em que troco o asfalto pela calçada, vejo John e Yoko saírem do prédio. Os carros na rua se calam. Se havia outras pessoas na rua, todas sumiram. Não lembro de ninguém. Só recordo de John, de Yoko, de Goresh, de Chapman, do porteiro do Dakota e do motorista da limusine que abria a porta para o casal. Chego a um metro de distância de Chapman quando ele pede o autógrafo. É quando eu me agacho. Finjo amarrar o tênis. John devolve o LP a Chapman, Goresh bate as suas fotos, eu meto a mão direita no bolso e agarro a lâmina escondida. 


Lennon e Goresh, 1980.
Lennon entra na limusine. Chapman olha o carro. Eu me ergo e, repetindo pela enésima vez o golpe que tanto treinara, dou uma única estocada veloz, raivosa e decidida no coração daquele sujeito... 


Tão rápido quanto a lâmina saiu do bolso, para lá ela retorna. Começo a caminhar pela calçada. Deixo Chapman e Goresh para trás. Não preciso me certificar da eficiência do meu golpe. É ela quem chega aos meus ouvidos. Após andar uns dez metros ouço um baque surdo. Antes de virar a esquina, arrisco uma espiada. Vejo Chapman estatelado na calçada. Ele não se move. Goresh e o porteiro do Dakota tentam reanimá-lo. Não consigo esconder um sorriso. Chapman jamais soube o que o atingiu. Já estava morto antes de sua cabeça bater no concreto. Eu dobro a esquina, o tempo acelera e volto a São Paulo, a tempo de garantir um par de ingressos para o concerto de John Lennon, que acontecerá em São Paulo em maio de 2011.


Publicado originalmente em Época Online, em 25/02/2011.

Comentários