A existência do bóson de Higgs confirma a teoria mais complexa e ambiciosa para explicar as leis da natureza – e deixa inúmeras questões em aberto
PETER MOON
“O universo é um lugar realmente grande”, afirmou certa vez o cosmólogo americano Carl Sagan. Ele foi, além de cientista brilhante, um inspirado divulgador da ciência. Recorria a imagens poéticas para descrever as escalas inimagináveis do tempo e do espaço que constituem o Universo em que vivemos. O Universo é, de fato, grandioso. Abarca 400 bilhões de galáxias como a nossa Via Láctea, cada qual com 100 bilhões de estrelas – ou mais. Nessa grande ordem das coisas, o Sistema Solar, o Sol, a Terra, você e eu não passamos de ínfimos grãos de areia perdidos na imensidão das dunas do Saara. Se estivesse vivo, ao saber da confirmação da existência de uma nova partícula que – exceto por uma chance de 1 em 3 milhões – deve ser o tão aguardado bóson de Higgs, Sagan poderia muito bem acrescentar: “O Universo é também um lugar muito complexo”.
Depois de quatro séculos de descobertas que só se tornaram possíveis graças a feitos intelectuais assombrosos dos maiores gênios da humanidade, o retrato que temos hoje do Universo pode ser qualificado por um sem-número de adjetivos, menos simples – e muito menos definitivo. Para entender como o Universo é do jeito que é, os físicos investigam o âmago da matéria e a intimidade dos átomos, os tijolos elementares que formam tudo aquilo que conhecemos – o céu que admiramos, a água que bebemos, o ar que respiramos, as casas onde vivemos e até as pessoas que amamos.
Não é exagero afirmar que o Universo é a manifestação física da interação de zilhões de partículas submetidas às forças fundamentais da natureza. Os modos como matéria e energia interagem são descritos pelas leis da física. Essas leis são universais. Aqui na Terra valem para a água do macarrão que ferve e para os elétrons que percorrem os circuitos de computador à velocidade da luz. No espaço sideral, as mesmas leis são responsáveis pela fusão de átomos de hidrogênio no núcleo das estrelas – que as faz brilhar – e pela emissão de fótons de luz na explosão de supernovas nos confins do firmamento. Como podem os físicos ter certeza de que o funcionamento do Universo depende da interação de partículas microscópicas que ninguém nunca viu?
Aqui, é importante fazer uma ressalva: quando falamos em partículas, imaginamos logo bolinhas de golfe ou de pingue-pongue reduzidas a um tamanho diminuto, girando ao redor umas das outras como se fossem os planetas do Sistema Solar. Mas as partículas fundamentais não são exatamente assim. “Partícula” é apenas a melhor palavra que a língua portuguesa nos oferece para descrever fenômenos que, na verdade, só podem ser compreendidos mesmo por meio de complicadíssimas equações matemáticas. Tudo o que podemos fazer em linguagem corrente é tentar explicá-los por meio de metáforas e descrições que jamais corresponderão exatamente à realidade.
É isso o que a imprensa mundial tem feito nos últimos dias: tentativas de explicar como, da interação incessante da fauna formada por 17 partículas subatômicas, brota nossa realidade; como, da troca de forças entre essas partículas, surge a coerência da matéria que conhecemos, que se agrega na forma de átomos, moléculas, grãos, células, ossos, chapas, vigas, oceanos, nuvens, estrelas, buracos negros e galáxias. Este texto é apenas mais uma dessas tentativas, dentro dos limites da linguagem e da compreensão de um leigo, de reduzir a algo como 3 mil palavras os conhecimentos que a humanidade levou centenas de anos para acumular.
O que são átomos?
O átomo é a unidade elementar que constitui a matéria que conhecemos. Átomos estão em geral associados aos elementos químicos. Há átomos de ferro, enxofre, mercúrio, cobre, hidrogênio, oxigênio – e, como se fossem tijolos, eles se reúnem para formar as moléculas e todas as demais substâncias e compostos químicos. Os átomos são infinitesimais. Para ter uma ideia de quão diminutos são, basta saber que, numa colherinha de chá de água, cabem 500 sextilhões de átomos. O que significa isso? Considere o seguinte: o peso da Terra é 6.580 sextilhões de quilos. Se 1 quilo equivalesse a 1 átomo, então a Terra toda caberia em 13 colherinhas. Uma das mais maravilhosas descobertas da física é que, apesar de ser tantos, tão pequenos e de formar compostos de todo tipo, os átomos são essencialmente vazios. Quer dizer, tecnicamente não são, mas é quase como se fossem. Um átomo é formado por uma multidão de partículas subatômicas, cada uma milhares de vezes menor que ele. E elas são todas separadas por espaço vazio.
Que partículas formam os átomos?
Desde o século XIX, sabe-se que todo átomo é dividido em duas partes: um núcleo e uma nuvem de partículas que orbitam esse núcleo, conhecidas como elétrons. Dentro do núcleo do átomo, o próton foi descoberto em 1917 e o nêutron em 1932. Nos anos 1930, pensava-se que prótons e nêutrons fossem partículas elementares. Nos anos 1940, descobriu-se que eles também eram divisíveis. Havia partículas ainda mais elementares em seu interior. Desde então, a história da física tem sido ditada pela identificação das partículas subatômicas e pela formulação das teorias que descrevem cada uma delas e sua relação com o funcionamento do Universo.
Como são descobertas as partículas fundamentais?
Para detectar as partículas, os físicos dependem da operação de máquinas descomunais, caríssimas e ultrassofisticadas: os aceleradores de partículas. Os primeiros datam da década de 1930. Eram relativamente pequenos e cabiam numa sala. Nada os comparava ao imenso anel subterrâneo de 27 quilômetros do Grande Colisor de Hádrons (LHC), na fronteira da Suíça com a França, onde foi detectada a nova partícula que os físicos acreditam ser o bóson de Higgs. Por ser pequenos, os primeiros aceleradores operavam a energias baixas, suficientes para investigar as condições da matéria quando o Universo já tinha mais de três minutos, e sua temperatura era de “apenas” 1 bilhão de graus (algo como 100 vezes a temperatura no núcleo do Sol, de 15 milhões de graus). Naquele instante, as partículas subatômicas que formavam a sopa cósmica original se associavam para formar o núcleo dos primeiros átomos de hidrogênio, o elemento químico mais simples e abundante. No LHC, construído pelos físicos da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), feixes de átomos podem ser acelerados a velocidades próximas às da luz (300.000 quilômetros por segundo). Nessas condições, os átomos atingem níveis assustadores de energia, comparáveis aos níveis que existiram logo nos primeiros instantes do Big Bang, a explosão primordial que pôs o cosmo em expansão há 13,75 bilhões de anos. Ao recriar em laboratório essas condições, os físicos conseguem captar sinais das partículas mais fundamentais que surgiram naquele instante primordial. Foi por meio desses sinais que eles comprovaram a existência das partículas mais esquivas do Universo.
O que é o modelo padrão?
A busca das partículas subatômicas desconhecidas seguiu um plano. Ele foi traçado a partir de um castelo teórico chamado Modelo Padrão, uma coleção de equações que previa a existência de diferentes partículas com determinadas características e níveis específicos de energia. Aquelas com níveis relativamente baixos de energia foram descobertas ainda nos anos 1940 e 1950. Elas foram identificadas tanto no espaço, com a ajuda de telescópios, quanto nos primeiros aceleradores de partículas.
O Modelo Padrão descreve um sistema composto de 17 partículas subatômicas que interagem segundo as quatro forças fundamentais atuantes sobre toda a matéria e a energia do Universo. Segundo o Modelo Padrão, a cada partícula corresponde uma antipartícula, com as mesmas características, exceto por uma propriedade, a carga. Por exemplo: a antipartícula do elétron chama-se pósitron. Ele é exatamente igual ao elétron, mas tem carga oposta (elétrons têm carga negativa; pósitrons têm carga positiva).
Todo o zoológico subatômico estabelecido pelo Modelo Padrão é dividido em dois grandes grupos de partículas: férmions e bósons. Entre os férmions estão as partículas que constituem matéria palpável, com massa. Eles existem em duas categorias. A primeira é formada por seis partículas, são os quarks. Quarks se aglutinam em trios para formar os prótons e nêutrons que existem no núcleo dos átomos. A segunda categoria de férmions são os léptons, também em número de seis. Seu representante mais conhecido é o elétron que orbita o núcleo atômico.
Os bósons são partículas que, de acordo com o Modelo Padrão, transportam as forças fundamentais por meio das quais interagem os diversos tipos de férmions. O modelo prevê quatro bósons, associados a três forças diferentes:
1. A força eletromagnética, que se manifesta na eletricidade das lâmpadas, no magnetismo dos ímãs, na luz de tudo aquilo que vemos e em fenômenos invisíveis como as ondas de televisão, rádio, celular, micro-ondas e nos perigosos raios ultravioleta. O bóson associado à força eletromagnética é conhecido como fóton;
2. A força nuclear forte, que aglutina os quarks de três em três para formar os prótons e nêutrons do núcleo dos átomos. O bóson associado à força nuclear forte se chama glúon;
3. A força nuclear fraca, que responde por alguns tipos de radiação emitida pelos átomos. Ela é transmitida pelos bósons W e Z.
Há ainda no Universo uma quarta força, a única cuja ação não se manifesta no nível microscópico das partículas subatômicas: a gravidade. Ela só se faz notar no nível macroscópico. Faz a maçã cair da macieira, prende nossos pés ao solo, faz a Terra orbitar o Sol e arrasta bilhões de estrelas girando em torno do centro da Via Láctea. Alguns físicos acreditam que a gravidade seja transmitida por um bóson hipotético, que não faz parte do Modelo Padrão, conhecido como gráviton. Uma corrente da física se debruça para tentar provar a existência do gráviton. Se ele for descoberto, um novo castelo teórico teria de ser usado para explicar o Universo no lugar do Modelo Padrão: a Teoria Quântica de Campos, cujo estudioso mais célebre é Sheldon Lee Cooper, personagem da série de TV The Big Bang theory. Ninguém sabe se existe algo como o gráviton. Na semana passada, porém, foi finalmente anunciada a comprovação daquela que – exceto por aquela probabilidade de 1 em 3 milhões – deve ser a última partícula que faltava para referendar a realidade do Modelo Padrão: o bóson de Higgs.
O que é o bóson de Higgs?
O bóson de Higgs foi concebido em 1964 pelo físico inglês Peter Higgs. Foi necessário quase meio século para confirmar sua existência justamente porque, para detectá-lo, era preciso construir um acelerador grande como o LHC. Ele é uma partícula diferente das outras. Apesar de ser um bóson, não se manifesta como um veículo para a interação das forças fundamentais que atuam entre os férmions. O bóson de Higgs se faz presente num espectro muito mais amplo. Para entender como, é preciso voltar ao início dos tempos.
O Universo teve um começo. Toda matéria e energia foram criadas no Big Bang. Se tudo o que existe decorre da interação de matéria e energia segundo algumas poucas leis fundamentais, é razoável supor que tais leis surgiram no Big Bang. Os físicos não sabem no que consistia o Universo recém-nascido antes de ele completar seu primeiro trilionésimo de segundo. O conhecimento atual é insuficiente para compreender as condições reinantes naquele inferno original, com densidades e temperaturas quase infinitas. As leis da física que conhecemos podem ser aplicadas a partir do momento em que o Universo completou seu primeiro trilionésimo de segundo de vida. Você pode achar que um lapso tão diminuto de tempo é irrelevante, mas não é. O desafio da física moderna consiste exatamente em descobrir quais eram as condições naquele breve instante, pois foram elas que definiram a evolução do cosmo nos 13,75 bilhões de anos seguintes.
No instante exato do Big Bang, quando a temperatura do Universo era infinita, não havia matéria, apenas energia, representada pelos fótons, que não têm massa e viajam à velocidade da luz. O Universo começou então a resfriar e a se expandir. Com 1 trilionésimo de segundo, a temperatura baixou para 100 bilhões de graus. Nesse momento, surgiram os quarks e léptons. Com a comprovação da existência do bóson de Higgs, é possível explicar como isso aconteceu. Ele é responsável pela força que atua num campo invisível, chamado campo de Higgs. Quando o campo de Higgs surgiu, ele passou a criar uma resistência ao movimento das outras partículas e fez com que elas adquirissem uma propriedade que todos conhecemos: a massa. Aquelas que interagiam de forma leve com o campo de Higgs acabaram ganhando pouca massa e passaram a viajar a velocidades pouco inferiores à da luz. É o caso dos elétrons. As partículas que interagiam mais com o campo de Higgs se tornaram mais maciças e mais lentas. Foi o caso dos quarks. Os fótons jamais interagiram com o campo de Higgs. Permaneceram sem massa, viajando à velocidade da luz.
A descoberta da razão por que algumas partículas têm massa e outras não explica também por que a matéria é do jeito que é. Se quarks e léptons não tivessem massa, não haveria núcleos atômicos, nem átomos, nem estrelas, nem vida. “Há 40 anos, as maiores mentes da humanidade estavam à procura de alternativas para explicar como a matéria adquiria massa”, diz o físico Sergio Novaes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Essa corrida fascinante chegou ao fim.”
O que falta descobrir?
A confirmação do bóson de Higgs consagra o Modelo Padrão como uma das maiores criações intelectuais da humanidade. Ela demonstra que o Modelo Padrão é um mecanismo adequado para descrever os fenômenos da natureza. Sua coleção de equações é extremamente poderosa e permite aos físicos estudar com confiança os fenômenos que se processam no microcosmo subatômico. Ainda assim, o Universo revelado pelo Modelo Padrão não é nada simples. Quem em sã consciência poderia imaginar um Universo regido pela interação entre 16 partículas (e suas 16 antipartículas), quatro forças fundamentais e o bóson de Higgs? Por que a natureza não prefere operar com, digamos, apenas quatro partículas e uma única força? Fosse esse o caso, o Universo seria com certeza mais simples. Mas não seria o nosso. Não haveria a matéria nem átomos de hidrogênio incendiando as estrelas. E, sem estrelas, não haveria os planetas nem a vida.
Além de complexo, o retrato da natureza revelado pelo Modelo Padrão é incompleto. O Modelo Padrão é uma ferramenta poderosa para explicar os fenômenos que acontecem dentro do átomo. Mas não tem nada a dizer em relação à gravidade, a quarta força fundamental, descrita por Isaac Newton e Albert Einstein. A gravidade é responsável pelo surgimento de estrelas, planetas, sistemas solares, buracos negros e galáxias. A teoria que melhor descreve esses fenômenos é a Teoria Geral da Relatividade, de Einstein. Ela não se aplica ao mundo subatômico. Enquanto tivermos duas teorias descasadas para explicar os aspectos macro e micro do Universo, não teremos atingido uma visão física definitiva, capaz de explicar toda a natureza.
A busca de uma Teoria Final unificada não tem sido nada fácil. Einstein, talvez o maior gênio do século XX, dedicou seus últimos 30 anos de vida a esse objetivo – e nada conseguiu. Atualmente, a melhor candidata a tentar explicar o Universo como um todo se chama Teoria das Cordas. Ela já existe há 30 anos. É matematicamente elegante e, por isso, congregou um séquito de seguidores. Mas jamais conseguiu produzir uma evidência sequer da própria validade. “A natureza insiste em se comportar de um modo diferente daquele que nós, os físicos, gostaríamos que ela fosse”, afirma o brasileiro Marcelo Gleiser, do Dartmouth College, em Connecticut. Gleiser iniciou a carreira estudando as cordas, mas abandonou aquele caminho ao perder a fé na validade da teoria.
Hipóteses não faltam para tentar explicar a natureza num nível mais profundo. Há a Teoria Quântica de Campos, existe a Superssimetria, a Teoria Technicolor e também outras modalidades de um ramo conhecido como Física Exótica, um conjunto de teorias que descrevem um Universo com inúmeras dimensões desconhecidas (podem ser 7, 11, 13 e até mesmo 23), além das três dimensões espaciais que conhecemos.
É dessas novas teorias que, esperam os físicos, poderá surgir a explicação para outro fenômeno misterioso: a energia escura, uma força desconhecida, descoberta em 1998 e responsável pela aceleração da expansão do Universo. Outros mistérios a solucionar envolvem saber o que existe no interior inacessível dos buracos negros, ou se existiriam atalhos por meio dos quais seria possível viajar no tempo para regiões distantes do cosmo, chamados de buracos de minhoca. Algumas teorias postulam ainda que nosso Universo não é único, mas apenas um entre infinitos outros, brotando de vários Big Bangs a partir de um Universo maior, chamado multiverso.
A detecção do bóson de Higgs não joga luz sobre nenhuma das questões acima. Elas continuam sem solução. Se – e quando – as respostas finalmente surgirem, talvez o ser humano descubra como o Universo funciona. O passo seguinte será responder por que ele existe. Nas palavras do físico Sergio Novaes, “a busca de uma teoria de todas as coisas é quase como a busca do divino”.
PETER MOON
“O universo é um lugar realmente grande”, afirmou certa vez o cosmólogo americano Carl Sagan. Ele foi, além de cientista brilhante, um inspirado divulgador da ciência. Recorria a imagens poéticas para descrever as escalas inimagináveis do tempo e do espaço que constituem o Universo em que vivemos. O Universo é, de fato, grandioso. Abarca 400 bilhões de galáxias como a nossa Via Láctea, cada qual com 100 bilhões de estrelas – ou mais. Nessa grande ordem das coisas, o Sistema Solar, o Sol, a Terra, você e eu não passamos de ínfimos grãos de areia perdidos na imensidão das dunas do Saara. Se estivesse vivo, ao saber da confirmação da existência de uma nova partícula que – exceto por uma chance de 1 em 3 milhões – deve ser o tão aguardado bóson de Higgs, Sagan poderia muito bem acrescentar: “O Universo é também um lugar muito complexo”.
Depois de quatro séculos de descobertas que só se tornaram possíveis graças a feitos intelectuais assombrosos dos maiores gênios da humanidade, o retrato que temos hoje do Universo pode ser qualificado por um sem-número de adjetivos, menos simples – e muito menos definitivo. Para entender como o Universo é do jeito que é, os físicos investigam o âmago da matéria e a intimidade dos átomos, os tijolos elementares que formam tudo aquilo que conhecemos – o céu que admiramos, a água que bebemos, o ar que respiramos, as casas onde vivemos e até as pessoas que amamos.
Não é exagero afirmar que o Universo é a manifestação física da interação de zilhões de partículas submetidas às forças fundamentais da natureza. Os modos como matéria e energia interagem são descritos pelas leis da física. Essas leis são universais. Aqui na Terra valem para a água do macarrão que ferve e para os elétrons que percorrem os circuitos de computador à velocidade da luz. No espaço sideral, as mesmas leis são responsáveis pela fusão de átomos de hidrogênio no núcleo das estrelas – que as faz brilhar – e pela emissão de fótons de luz na explosão de supernovas nos confins do firmamento. Como podem os físicos ter certeza de que o funcionamento do Universo depende da interação de partículas microscópicas que ninguém nunca viu?
Aqui, é importante fazer uma ressalva: quando falamos em partículas, imaginamos logo bolinhas de golfe ou de pingue-pongue reduzidas a um tamanho diminuto, girando ao redor umas das outras como se fossem os planetas do Sistema Solar. Mas as partículas fundamentais não são exatamente assim. “Partícula” é apenas a melhor palavra que a língua portuguesa nos oferece para descrever fenômenos que, na verdade, só podem ser compreendidos mesmo por meio de complicadíssimas equações matemáticas. Tudo o que podemos fazer em linguagem corrente é tentar explicá-los por meio de metáforas e descrições que jamais corresponderão exatamente à realidade.
É isso o que a imprensa mundial tem feito nos últimos dias: tentativas de explicar como, da interação incessante da fauna formada por 17 partículas subatômicas, brota nossa realidade; como, da troca de forças entre essas partículas, surge a coerência da matéria que conhecemos, que se agrega na forma de átomos, moléculas, grãos, células, ossos, chapas, vigas, oceanos, nuvens, estrelas, buracos negros e galáxias. Este texto é apenas mais uma dessas tentativas, dentro dos limites da linguagem e da compreensão de um leigo, de reduzir a algo como 3 mil palavras os conhecimentos que a humanidade levou centenas de anos para acumular.
O que são átomos?
O átomo é a unidade elementar que constitui a matéria que conhecemos. Átomos estão em geral associados aos elementos químicos. Há átomos de ferro, enxofre, mercúrio, cobre, hidrogênio, oxigênio – e, como se fossem tijolos, eles se reúnem para formar as moléculas e todas as demais substâncias e compostos químicos. Os átomos são infinitesimais. Para ter uma ideia de quão diminutos são, basta saber que, numa colherinha de chá de água, cabem 500 sextilhões de átomos. O que significa isso? Considere o seguinte: o peso da Terra é 6.580 sextilhões de quilos. Se 1 quilo equivalesse a 1 átomo, então a Terra toda caberia em 13 colherinhas. Uma das mais maravilhosas descobertas da física é que, apesar de ser tantos, tão pequenos e de formar compostos de todo tipo, os átomos são essencialmente vazios. Quer dizer, tecnicamente não são, mas é quase como se fossem. Um átomo é formado por uma multidão de partículas subatômicas, cada uma milhares de vezes menor que ele. E elas são todas separadas por espaço vazio.
Que partículas formam os átomos?
Desde o século XIX, sabe-se que todo átomo é dividido em duas partes: um núcleo e uma nuvem de partículas que orbitam esse núcleo, conhecidas como elétrons. Dentro do núcleo do átomo, o próton foi descoberto em 1917 e o nêutron em 1932. Nos anos 1930, pensava-se que prótons e nêutrons fossem partículas elementares. Nos anos 1940, descobriu-se que eles também eram divisíveis. Havia partículas ainda mais elementares em seu interior. Desde então, a história da física tem sido ditada pela identificação das partículas subatômicas e pela formulação das teorias que descrevem cada uma delas e sua relação com o funcionamento do Universo.
Como são descobertas as partículas fundamentais?
Para detectar as partículas, os físicos dependem da operação de máquinas descomunais, caríssimas e ultrassofisticadas: os aceleradores de partículas. Os primeiros datam da década de 1930. Eram relativamente pequenos e cabiam numa sala. Nada os comparava ao imenso anel subterrâneo de 27 quilômetros do Grande Colisor de Hádrons (LHC), na fronteira da Suíça com a França, onde foi detectada a nova partícula que os físicos acreditam ser o bóson de Higgs. Por ser pequenos, os primeiros aceleradores operavam a energias baixas, suficientes para investigar as condições da matéria quando o Universo já tinha mais de três minutos, e sua temperatura era de “apenas” 1 bilhão de graus (algo como 100 vezes a temperatura no núcleo do Sol, de 15 milhões de graus). Naquele instante, as partículas subatômicas que formavam a sopa cósmica original se associavam para formar o núcleo dos primeiros átomos de hidrogênio, o elemento químico mais simples e abundante. No LHC, construído pelos físicos da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), feixes de átomos podem ser acelerados a velocidades próximas às da luz (300.000 quilômetros por segundo). Nessas condições, os átomos atingem níveis assustadores de energia, comparáveis aos níveis que existiram logo nos primeiros instantes do Big Bang, a explosão primordial que pôs o cosmo em expansão há 13,75 bilhões de anos. Ao recriar em laboratório essas condições, os físicos conseguem captar sinais das partículas mais fundamentais que surgiram naquele instante primordial. Foi por meio desses sinais que eles comprovaram a existência das partículas mais esquivas do Universo.
O que é o modelo padrão?
A busca das partículas subatômicas desconhecidas seguiu um plano. Ele foi traçado a partir de um castelo teórico chamado Modelo Padrão, uma coleção de equações que previa a existência de diferentes partículas com determinadas características e níveis específicos de energia. Aquelas com níveis relativamente baixos de energia foram descobertas ainda nos anos 1940 e 1950. Elas foram identificadas tanto no espaço, com a ajuda de telescópios, quanto nos primeiros aceleradores de partículas.
O Modelo Padrão descreve um sistema composto de 17 partículas subatômicas que interagem segundo as quatro forças fundamentais atuantes sobre toda a matéria e a energia do Universo. Segundo o Modelo Padrão, a cada partícula corresponde uma antipartícula, com as mesmas características, exceto por uma propriedade, a carga. Por exemplo: a antipartícula do elétron chama-se pósitron. Ele é exatamente igual ao elétron, mas tem carga oposta (elétrons têm carga negativa; pósitrons têm carga positiva).
Todo o zoológico subatômico estabelecido pelo Modelo Padrão é dividido em dois grandes grupos de partículas: férmions e bósons. Entre os férmions estão as partículas que constituem matéria palpável, com massa. Eles existem em duas categorias. A primeira é formada por seis partículas, são os quarks. Quarks se aglutinam em trios para formar os prótons e nêutrons que existem no núcleo dos átomos. A segunda categoria de férmions são os léptons, também em número de seis. Seu representante mais conhecido é o elétron que orbita o núcleo atômico.
Os bósons são partículas que, de acordo com o Modelo Padrão, transportam as forças fundamentais por meio das quais interagem os diversos tipos de férmions. O modelo prevê quatro bósons, associados a três forças diferentes:
1. A força eletromagnética, que se manifesta na eletricidade das lâmpadas, no magnetismo dos ímãs, na luz de tudo aquilo que vemos e em fenômenos invisíveis como as ondas de televisão, rádio, celular, micro-ondas e nos perigosos raios ultravioleta. O bóson associado à força eletromagnética é conhecido como fóton;
2. A força nuclear forte, que aglutina os quarks de três em três para formar os prótons e nêutrons do núcleo dos átomos. O bóson associado à força nuclear forte se chama glúon;
3. A força nuclear fraca, que responde por alguns tipos de radiação emitida pelos átomos. Ela é transmitida pelos bósons W e Z.
Há ainda no Universo uma quarta força, a única cuja ação não se manifesta no nível microscópico das partículas subatômicas: a gravidade. Ela só se faz notar no nível macroscópico. Faz a maçã cair da macieira, prende nossos pés ao solo, faz a Terra orbitar o Sol e arrasta bilhões de estrelas girando em torno do centro da Via Láctea. Alguns físicos acreditam que a gravidade seja transmitida por um bóson hipotético, que não faz parte do Modelo Padrão, conhecido como gráviton. Uma corrente da física se debruça para tentar provar a existência do gráviton. Se ele for descoberto, um novo castelo teórico teria de ser usado para explicar o Universo no lugar do Modelo Padrão: a Teoria Quântica de Campos, cujo estudioso mais célebre é Sheldon Lee Cooper, personagem da série de TV The Big Bang theory. Ninguém sabe se existe algo como o gráviton. Na semana passada, porém, foi finalmente anunciada a comprovação daquela que – exceto por aquela probabilidade de 1 em 3 milhões – deve ser a última partícula que faltava para referendar a realidade do Modelo Padrão: o bóson de Higgs.
O que é o bóson de Higgs?
O Universo teve um começo. Toda matéria e energia foram criadas no Big Bang. Se tudo o que existe decorre da interação de matéria e energia segundo algumas poucas leis fundamentais, é razoável supor que tais leis surgiram no Big Bang. Os físicos não sabem no que consistia o Universo recém-nascido antes de ele completar seu primeiro trilionésimo de segundo. O conhecimento atual é insuficiente para compreender as condições reinantes naquele inferno original, com densidades e temperaturas quase infinitas. As leis da física que conhecemos podem ser aplicadas a partir do momento em que o Universo completou seu primeiro trilionésimo de segundo de vida. Você pode achar que um lapso tão diminuto de tempo é irrelevante, mas não é. O desafio da física moderna consiste exatamente em descobrir quais eram as condições naquele breve instante, pois foram elas que definiram a evolução do cosmo nos 13,75 bilhões de anos seguintes.
No instante exato do Big Bang, quando a temperatura do Universo era infinita, não havia matéria, apenas energia, representada pelos fótons, que não têm massa e viajam à velocidade da luz. O Universo começou então a resfriar e a se expandir. Com 1 trilionésimo de segundo, a temperatura baixou para 100 bilhões de graus. Nesse momento, surgiram os quarks e léptons. Com a comprovação da existência do bóson de Higgs, é possível explicar como isso aconteceu. Ele é responsável pela força que atua num campo invisível, chamado campo de Higgs. Quando o campo de Higgs surgiu, ele passou a criar uma resistência ao movimento das outras partículas e fez com que elas adquirissem uma propriedade que todos conhecemos: a massa. Aquelas que interagiam de forma leve com o campo de Higgs acabaram ganhando pouca massa e passaram a viajar a velocidades pouco inferiores à da luz. É o caso dos elétrons. As partículas que interagiam mais com o campo de Higgs se tornaram mais maciças e mais lentas. Foi o caso dos quarks. Os fótons jamais interagiram com o campo de Higgs. Permaneceram sem massa, viajando à velocidade da luz.
A descoberta da razão por que algumas partículas têm massa e outras não explica também por que a matéria é do jeito que é. Se quarks e léptons não tivessem massa, não haveria núcleos atômicos, nem átomos, nem estrelas, nem vida. “Há 40 anos, as maiores mentes da humanidade estavam à procura de alternativas para explicar como a matéria adquiria massa”, diz o físico Sergio Novaes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Essa corrida fascinante chegou ao fim.”
O que falta descobrir?
A confirmação do bóson de Higgs consagra o Modelo Padrão como uma das maiores criações intelectuais da humanidade. Ela demonstra que o Modelo Padrão é um mecanismo adequado para descrever os fenômenos da natureza. Sua coleção de equações é extremamente poderosa e permite aos físicos estudar com confiança os fenômenos que se processam no microcosmo subatômico. Ainda assim, o Universo revelado pelo Modelo Padrão não é nada simples. Quem em sã consciência poderia imaginar um Universo regido pela interação entre 16 partículas (e suas 16 antipartículas), quatro forças fundamentais e o bóson de Higgs? Por que a natureza não prefere operar com, digamos, apenas quatro partículas e uma única força? Fosse esse o caso, o Universo seria com certeza mais simples. Mas não seria o nosso. Não haveria a matéria nem átomos de hidrogênio incendiando as estrelas. E, sem estrelas, não haveria os planetas nem a vida.
Além de complexo, o retrato da natureza revelado pelo Modelo Padrão é incompleto. O Modelo Padrão é uma ferramenta poderosa para explicar os fenômenos que acontecem dentro do átomo. Mas não tem nada a dizer em relação à gravidade, a quarta força fundamental, descrita por Isaac Newton e Albert Einstein. A gravidade é responsável pelo surgimento de estrelas, planetas, sistemas solares, buracos negros e galáxias. A teoria que melhor descreve esses fenômenos é a Teoria Geral da Relatividade, de Einstein. Ela não se aplica ao mundo subatômico. Enquanto tivermos duas teorias descasadas para explicar os aspectos macro e micro do Universo, não teremos atingido uma visão física definitiva, capaz de explicar toda a natureza.
A busca de uma Teoria Final unificada não tem sido nada fácil. Einstein, talvez o maior gênio do século XX, dedicou seus últimos 30 anos de vida a esse objetivo – e nada conseguiu. Atualmente, a melhor candidata a tentar explicar o Universo como um todo se chama Teoria das Cordas. Ela já existe há 30 anos. É matematicamente elegante e, por isso, congregou um séquito de seguidores. Mas jamais conseguiu produzir uma evidência sequer da própria validade. “A natureza insiste em se comportar de um modo diferente daquele que nós, os físicos, gostaríamos que ela fosse”, afirma o brasileiro Marcelo Gleiser, do Dartmouth College, em Connecticut. Gleiser iniciou a carreira estudando as cordas, mas abandonou aquele caminho ao perder a fé na validade da teoria.
Hipóteses não faltam para tentar explicar a natureza num nível mais profundo. Há a Teoria Quântica de Campos, existe a Superssimetria, a Teoria Technicolor e também outras modalidades de um ramo conhecido como Física Exótica, um conjunto de teorias que descrevem um Universo com inúmeras dimensões desconhecidas (podem ser 7, 11, 13 e até mesmo 23), além das três dimensões espaciais que conhecemos.
É dessas novas teorias que, esperam os físicos, poderá surgir a explicação para outro fenômeno misterioso: a energia escura, uma força desconhecida, descoberta em 1998 e responsável pela aceleração da expansão do Universo. Outros mistérios a solucionar envolvem saber o que existe no interior inacessível dos buracos negros, ou se existiriam atalhos por meio dos quais seria possível viajar no tempo para regiões distantes do cosmo, chamados de buracos de minhoca. Algumas teorias postulam ainda que nosso Universo não é único, mas apenas um entre infinitos outros, brotando de vários Big Bangs a partir de um Universo maior, chamado multiverso.
A detecção do bóson de Higgs não joga luz sobre nenhuma das questões acima. Elas continuam sem solução. Se – e quando – as respostas finalmente surgirem, talvez o ser humano descubra como o Universo funciona. O passo seguinte será responder por que ele existe. Nas palavras do físico Sergio Novaes, “a busca de uma teoria de todas as coisas é quase como a busca do divino”.
Comentários
Postar um comentário