PETER MOON
O mais recente troféu da paleontologia brasileira não é um dinossauro, mas uma espécie até então desconhecida de rincossauro, um réptil herbívoro pertencente à linhagem ancestral dos crocodilos e das aves. A novidade ganhou o nome de Brasinorhynchus mariantensis.
O brasinorrinco viveu no Rio Grande do Sul há cerca de 238 milhões de anos, em meados do Triássico, período imediatamente anterior ao do surgimento dos dinossauros. Quando os primeiros dinossauros apareceram nos pampas, cerca de 7 milhões de anos depois, sabe-se que por lá pastavam manadas de rincossauros, porém nenhum deles parecido com o brasinorrinco.
Isto o torna a um só tempo o mais antigo e o mais bizarro exemplar de rincossauro da América do Sul, além de ser o primeiro exemplar a dividir afinidades inequívocas com os rincossauros que pastavam na África, mais uma evidência da união dos continentes austrais no supercontinente Gondwana.
O trabalho de descrição é de autoria dos paleontólogos Cesar Schultz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP), e Felipe Montefeltro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
O artigo publicado no Paläontologische Zeitschrift é resultado de um estudo que conta com apoio da FAPESP por meio do Projeto Temático "The origin and rise of dinosaurs in Gondwana (late Triassic - early Jurassic)".
A nova espécie foi descrita com base em um crânio um tanto deformado coletado nos anos 1970. “Sabia da existência daquele crânio desde 1980, quando entrei no Setor de Paleovertebrados da UFRGS. Comecei a olhar com mais atenção para aquele ‘rincossauro torto’ a partir de 1987, quando comecei o doutorado”, contou Schultz.
“Na época, estudava o modo como a fossilização típica do período Triássico do Rio Grande do Sul deformava alguns fósseis, a ponto de fazer com que pertencessem a táxons diferentes. Entretanto, aquele crânio, apesar de estar claramente comprimido lateralmente, não era de modo algum semelhante aos outros rincossauros gaúchos que já conhecíamos. Era mais comprido do que largo, exatamente o oposto à morfologia craniana dos rincossauros mais comuns no Rio Grande, mais largos do que compridos”, disse.
Schultz conta que o fóssil do brasinorrinco foi achado em Mariante, um distrito do município de Venâncio Aires (RS) e quase foi descartado, pois havia muitos outros rincossauros. Mas os paleontólogos resolveram retirar o fóssil, que saiu inteiro e foi levado para um laboratório.
Em 1991, Schultz incluiu em sua tese de doutorado os primeiros estudos sobre os espécimes do Brasinorhynchus. “Fiz uma descrição preliminar”, disse.
Em 1995, Schultz, já como orientador do Curso de Pós-Graduação em Geociências da UFRGS, teve Max Langer como seu primeiro orientando de mestrado, sendo que o projeto deste, é claro, acabou se dirigindo aos rincossauros. Entretanto, o objetivo de Max não era a descrição anatômica de novos espécimes, mas a análise filogenética dos rincossauros.
Desse modo, o então conhecido “rincossauro de Mariante” foi analisado junto com os demais, mas não teve a sua publicação formal concluída. Essa tarefa foi repassada a um novo estudante de mestrado, alguns anos depois. Este iniciou o trabalho, mas acabou se desinteressando. Com isso, o brasinorrinco voltou mais uma vez para a prateleira e lá permaneceu por quase 20 anos.
Nesse meio tempo, Felipe Montefeltro realizou seu mestrado, sob orientação de Langer. Durante o trabalho de Montefeltro, novamente o “rincossauro de Mariante” foi citado e usado nas comparações, embora seguisse sem ter ainda a sua própria identidade formal.
Camaradagem argentina
Em 2016, esta longa novela científica chega finalmente à sua conclusão. “Colegas argentinos me avisaram que encontraram um animal semelhante e que já haviam começado a descrevê-lo. Como eles sabiam da existência desse fóssil brasileiro, disseram que aguardariam nossa descrição ser publicada para publicar a deles”, disse Schultz, destacando o exemplo de camaradagem científica do grupo argentino.
“Nós três nos reunimos e fizemos um esforço concentrado de pesquisa para descrever e publicar o trabalho o mais rápido possível,” explica o mineiro Langer, chefe do Laboratório de Paleontologia da USP de Ribeirão Preto.
“O brasinorrinco deve ter tido o tamanho de um porco grande. Com o rabo, teria uns 3 metros de comprimento. Seu crânio, afilado, estreito e alto, lembra um pouco o crânio de um cavalo”, disse Langer.
Como todos os rincossauros, o brasinorrinco possuía um bico (rhynchus, em grego) ósseo que empregava para abocanhar e cortar a vegetação, como se fosse uma faca. Seus dentes eram diminutos, próprios para macerar o alimento. “Na fauna atual, não há animais com esse tipo de dentição”, explicou Langer.
No Triássico médio, os pampas eram lar de animais que pareceriam muitos estranhos aos nossos olhos. Não eram dinossauros, nem mamíferos, nem crocodilos, lagartos, tartarugas ou aves. Todas essas formas de vida ainda estavam por evoluir.
Quem dominava aquela antiga paisagem eram répteis primitivos. No registro fóssil do Rio Grande do Sul no Triássico médio, há 238 milhões de anos, havia de um lado os dicinodontes e cinodontes. Estes últimos foram possivelmente os ancestrais de todos os mamíferos.
Do outro lado estavam os arcossauromorfos, de cuja linhagem evoluíram os crocodilos e as aves. Os rincossauros pertenciam a esse grupo, juntamente com o maior predador da época, um terrível carnívoro do tamanho de um grande crocodilo, o Prestosuchus.
Já no registro fóssil gaúcho do Triássico superior, há 231 milhões de anos, os dicinodontes desaparecem, assim como oPrestosuchus. Mas os rincossauros, ao contrário, se tornam abundantes. É nesse momento que surge, de forma ainda tímida, um novo grupo de animais destinado a dominar o planeta pelos 150 milhões de anos seguintes.
Eram os primeiros dinossauros, cujos exemplares mais antigos são achados na Argentina e no Rio Grande do Sul. E cujas primeiras formas carnívoras se alimentavam, provavelmente, de rincossauros.
O artigo A new rhynchosaur from south Brazil (Santa Maria Formation) and rhynchosaur diversity patterns across the Middle-Late Triassic boundary (doi: 10.1007/s12542-016-0307-7 ), de Cesar Leandro Schultz, Max Cardoso Langer e Felipe Chinaglia Montefeltro, publicado no Paläontologische Zeitschrift, pode ser lido em: link.springer.com/article/10.1007%2Fs12542-016-0307-7.
Publicado em Agência Fapesp
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