O ecólogo Everton Miranda e uma sucuri-amarela (Eunectes notaeus) |
Os répteis vêm sendo vítimas de preconceito em boa parte dos estudos ecológicos. É o que pensa o ecólogo Everton Miranda, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), campus de Alta Floresta. Segundo Miranda, tal preconceito se traduziria no menor número de trabalhos científicos focados na ecologia de cobras, lagartos ou tartarugas, quando comparado à avalanche de trabalhos que existem sobre a ecologia de mamíferos e aves, grupos de animais que Miranda define - de modo bem-humorado - como "peluciofauna" ou fauna de pelúcia.
Recentemente, Miranda publicou um artigo apontando este problema, e defendendo que os biólogos passem a devotar mais atenção aos répteis. Leia abaixo uma entrevista onde Miranda coloca suas opiniões e propõe caminhos para que a ciência passe a dar a devida atenção aos répteis, "animais altamente interativos que são."
PETER MOON
Recentemente, você publicou o artigo "A situação dos répteis como atores ecológicos nos trópicos" (The Plight of Reptiles as Ecological Actors in the Tropics), onde defende uma mudança de paradigma na compreensão do papel dos grandes répteis nos ecossistemas tropicais. O que o motivou a fazê-lo?
Everton Miranda - Eu quero estimular uma reação ao preconceito a que os répteis são vítima em boa parte da pesquisa em ecologia. Nos estudos de ecologia, é frequente ver os répteis sendo ignorados como animais altamente interativos que são.
Como assim?
Miranda - Quando interações ecológicas estão em questão, o foco é sobretudo na "peluciofauna". É como eu gosto de chamar os mamíferos e certos grupos de aves, os animais "bonitinhos", "de pelúcia", aqueles que têm mais apelo público, assim como entre muitos cientistas. Na literatura científica sobre a megafauna, isto é, os animais com mais de 45 kg, répteis como jabutis, jacarés, os crocodilos e as grandes serpentes são amplamente ignorados.
Quais são os exemplos de megafauna de répteis negligenciados pela ciência?
Miranda - Nas últimas décadas, séculos e milênios, os ecossistemas tropicais da Terra testemunharam extinções de centenas de grandes répteis. Diversas extinções de grandes répteis ao longo dos últimos 50 mil anos estão diretamente relacionadas ao surgimento de humanos primitivos e modernos. Já as espécies de grandes répteis que conseguiram sobreviver ao contato com humanos, sofreram e vêm sofrendo redução drástica de sua distribuição e abundância. No Brasil algumas espécies importantes de mega-répteis tiveram sua distribuição drasticamente reduzida. É o caso da surucucu (Lachesis muta rhombeata), uma serpente que na Mata Atlântica hoje se encontra distribuída em pouquíssimos fragmentos. Outro caso interessante é a do jabuti-tinga (Chelonoidis denticulatus), um jabuti que é importante dispersor de sementes, também extirpado na maior parte da sua distribuição na Mata Atlântica.
E quanto aos grupos extintos, a quais grupos se refere?
Miranda - As extinções da megafauna do Pleistoceno são amplamente documentadas na literatura científica, assim como numa diversidade de materiais populares onde figuram mamutes, rinocerontes lanosos, gliptodontes, tigres-dente-de-sabre e outras figuras conhecidas. Mesmo as aves – que mais raramente figuram na categoria de megafauna – têm lugar garantido nesse ramo de conhecimento, sendo os exemplos mais conhecidos os moas da Nova Zelândia e as aves-elefante de Madagascar. Mas, além desta "peluciofauna", pouco se comenta das maravilhas reptilianas que nós extinguimos, como os jabutis gigantes de chifre (Meiolania spp.) da Austrália, o crocodilo de chifre (Voay robutus) de Madagascar e um número enorme de espécies insulares extintas durante a transição do Holoceno ao Antropoceno, os últimos 10 mil anos. Haviam iguanas gigantes em Fiji, e uma lagartixa de 60 cm na Nova Zelândia!
E na América do Sul e Caribe?
Miranda - No Brasil existem achados fósseis que indicam a existência de jabutis gigantes continentais na Serra da Capivara (PI) que ainda aguardam descrição científica, assim como existiram no norte da Argentina jabutis gigantes (Chelonoidis lutzae) até a chegada da nossa espécie.
No Caribe, por exemplo, o crocodilo cubano só é cubano por que nossa espécie o restringiu àquela ilha: esse animal – inteligente, gregário e bem equipado para se alimentar de animais terrestres – ocorria ao longo de grande parte do Caribe, não apenas Cuba. Entre suas presas encontravam-se diversas espécies de jabutis gigantes do gênero Chelonoidis e Hesperotestudo, este último aparentado aos jabutis escavadores da América continental. A chegada da nossa espécie arrasou as teias tróficas das ilhas caribenhas, extinguindo e extirpando iguanas, jabutis gigantes e crocodilianos.
Você afirma que a importância dos répteis na maioria dos ecossistemas tropicais tem sido negligenciada, e que este pode ser um paradigma enganoso. Como assim?
Miranda - Pode ser um paradigma enganoso supor que as complexas relações ecológicas dos trópicos sejam independentes de predadores importantes como crocodilianos, de dispersores de sementes importantes como jabutis, de elementos fundamentais na ligação entre os ecossistemas terrestres e oceânicos como as tartarugas marinhas. A forma como cada um desses processos atualmente é descrita normalmente ignora o papel dos répteis e de seu valor como megafauna. O tamanho tem consequências importantes para a interatividade ecológica de um organismo, e muitos répteis tropicais são enormes. Assumir que eles são elementos irrelevantes dos processos ecológicos em ecossistemas tropicais pode ser errôneo e perigoso.
Quais processos ecossistêmicos realizados pelos grandes répteis que ainda são pouco conhecidos?
Miranda - O papel de répteis predadores como os crocodilianos e as grandes serpentes (sucuris e pítons) ainda é pouco conhecido. Esses animais são pouco seletivos quanto as suas presas. Eles tem potencial para regular a população de suas presas controlando o acesso a água, além da regulação direta via predação.
A dispersão de sementes por jabutis de grande porte, que têm grande potencial enquanto dispersores, ainda é pouco estudada e só foi explorada em poucas espécies da América do Sul. Nada se sabe sobre a dispersão por jabutis gigantes continentais como o jabuti de esporão africano (Centrochelis sulcata) ou pelo jabuti florestal asiático (Manouria emys), por exemplo.
O papel de cágados no fluxo de nutrientes e matéria dos ecossistemas aquáticos para os terrestres também é pouco conhecido. Grandes cágados como a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa) transportam grandes quantidades de nutrientes da água para solos em terra firme. Essa diversidade de interações executadas por répteis em ecossistemas tropicais precisam ser melhor compreendidas.
Você sugere que os processos ecológicos passados e atuais realizados por grandes répteis podem ser ordens de grandeza maior do que o que é atualmente percebido. Como assim? Me dê um exemplo para ilustrar o que você quer dizer.
Miranda - As tartarugas-da-amazônia, que chegam facilmente a 60 kg, fazem seus ninhos às dezenas de milhares em praias dos rios amazônicos. Embora esse cágado ainda apresente números grandes em algumas praias bem protegidas da Amazônia, as descrições feitas pelos primeiros naturalistas a visitar a bacia amazônica no século 16 relatam rios que não poderiam ser cruzados dada a abundância desses animais. A capital da Amazônia foi durante décadas iluminada com azeite extraídos dos ovos dessa espécie: 200 milhões por ano apenas em Manaus! É de se supor que esse animais ocorressem em maior abundância no passado, e que sendo assim suas interatividade ecológica fosse também superior em processos-chave como dispersão de sementes e fluxo de nutrientes do ambiente aquático para o terrestre, assim como enquanto presa para animais como onças e jacarés-açu.
Quais são as suas sugestões para começar a mudar este quadro?
Miranda - Um esforço direto de divulgação para estimular a pesquisa de interações ecológicas promovidas por répteis de grande porte. O filme "O Parque dos Dinossauros", de 1993, provocou um enorme aumento de interesse pela paleontologia, e que prossegue até hoje. Acredito que o mesmo pode ser feito em menor escala com os grandes répteis, com a realização de novos documentários, livros e artigos divulgação científica sobre a megafauna reptiliana e suas funções.
Poderia citar ações neste sentido que já estão sendo realizadas com sucesso, no Brasil e no mundo?
Miranda - Dois programas de conservação no Brasil me chamam atenção. O primeiro, da reintrodução de jabutis na Mata Atlântica, visa restaurar interações ecológicas de dispersão de sementes, conduzido por pesquisadores como Carolina Starling, da UFRJ.
Outra iniciativa louvável é o programa de conservação de jiboia do Ribeira (Corallus cropanii), liderado por Bruno Rocha, em São Paulo. Sua equipe encontrou, em 2017, o primeiro exemplar vivo dessa espécie de serpente a ser avistado nos últimos 64 anos, quando a espécie foi descrita.
Sendo a jiboia do Ribeira uma espécie criticamente ameaçada, estudada por pesquisadores que desfrutam de poucos recursos e muita paixão, me assusta saber que essa é a primeira e única iniciativa dedicada a essa espécie endêmica do Brasil.
O manejo sustentável de crocodilianos na Amazônia, como na Reserva Extrativista do Lago do Cuniã, em Rondônia, e na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas, são iniciativas muito interessantes que precisam ser replicadas no Brasil.
Alguma iniciativa pessoal sua?
Miranda - Estou conduzindo a redação de um livro de divulgação ricamente ilustrado focado exclusivamente em répteis de grande porte que foram extintos pela nossa espécie.
Entre os exemplos internacionais sou grande admirador das iniciativas de conservação do crocodilo cubano, e gostaria de ver a espécie reintroduzida em outras ilhas do Caribe.
No oceano Índico, importantes iniciativas de conservação são dirigidas aos jabutis endêmicos de Madagascar, onde outras duas espécies de jabutis gigantes foram extintas nos últimos dois mil anos e também onde duas espécies ameaçadas vivem atualmente, e no arquipélago de Maurício, onde uma espécie de jabuti gigante está sendo empregada na restauração de um ecossistema inteiro.
Quais grupos de grandes répteis você vê mais ameaçados hoje em dia?
Miranda - O quelônios de grande porte são particularmente vulneráveis pela facilidade de captura e baixa taxa de crescimento populacional e corporal. Animais como o jabuti de esporas africano (Centrochelys sulcata) e o jabuti de Angonoka (Geochelone yniphora) estão essencialmente extintos na natureza, enquanto são encontrados aos milhares em países desenvolvidos onde são mantidos como animais de estimação. Em outro extremo, temos na China o cágado-de-casco-mole (Rafetus swinhoei) do rio Yangtzé, a maior tartaruga de água doce do mundo, cuja população conhecida hoje se restringe a dois machos e uma fêmea mantidos em cativeiro.
Particularmente com relação ao Brasil, quais seriam a seu ver as ações prioritárias para começar modificar esta situação, por exemplo, junto aos brasileiros em geral?
Miranda - Uma versão brasileira de uma série da BBC como “Life in Cold Blood” (que numa tradução livre seria 'A vida (dos animais) de sangue frio'), filmada em ecossistemas brasileiros e com os bichos daqui, teria um enorme potencial como documentário de natureza e faria um belo serviço de popularização da ciência.
E na academia?
Miranda - Acho que uma crítica bem formulada, veiculada nos meios tradicionais da academia brasileira (i.e. revistas científicas), poderia servir para escancarar aos nossos pesquisadores o tremendo hiato no conhecimento sobre o papel ecológico dos répteis de grande porte. Não me leve a mal: a herpetologia nacional fez avanços admiráveis na demografia de crocodilianos, na conservação de cágados amazônicos e no estudo da evolução de lagartos, apresentando pesquisas de alto nível nessas e em muitas outras áreas. Mas ainda estamos atrofiados em determinados tópicos.
E quanto às organizações não-governamentais?
Miranda - Dados os poucos recursos a disposição dessas instituições eu já vejo grandes progressos em suas ações, como por exemplo o excelente programa de conservação de quelônios amazônicos dirigido pela Wildlife Conservation Society. Um ponto no qual poderíamos ver mais ações das ONGs seria no manejo de diversas espécies de répteis com potencial cinegético no Brasil, ampliando o manejo atual de jacarés, e o estendendo para quelônios e serpentes. O uso sustentável dessas espécies para produção de carne, couro e derivados pode contribuir grandemente com sua conservação, ao substituir a caça ilegal que ocorre hoje.
E nas diversas esferas governamentais?
O governo e a academia precisam aprender a trocar informações mais de perto. Hoje as ações de um e de outro têm sido câmaras de eco independentes com baixa capacidade de trocar influencias. Essa deficiência tem sido demonstrada repetidamente por pesquisadores no Brasil e em outros países em desenvolvimento. Nossos principais órgãos de pesquisa de répteis tem foco em conservação de organismos, mas geralmente perdem de vista que antes da extinção vem um tipo muito sutil de perda: a perda das interações ecológicas.
Adicionalmente, tópicos específicos como as prioridades da agenda de conservação no Brasil ainda são dominados pela '"peluciofauna". Espécies crípticas como a jiboia do Ribeira ou o cágado de Hoge (Mesoclemys hoge) ficam à mercê do suor de uns poucos pesquisadores guerreiros.
A título de conclusão, que mensagem gostaria de deixar aos leitores desta entrevista?
Miranda - O baixo carisma apresentado pelos répteis tem claramente sido um dos maiores desafios na luta pela sua conservação. Eles são popularmente tidos pela população leiga como lerdos, burros ou cruéis, animais de “sangue frio”. Entre os biólogos e demais profissionais da área ambiental, a visão geral é que os répteis são um beco sem saída evolutivo, a quem falta tudo aquilo que têm as aves e os mamíferos. Abandonar a perspectiva de mamíferos inteligentes e de “sangue quente” pode nos ajudar a apreciar as milhões de soluções que o processo evolutivo encontrou para o desafio de continuar vivo. Uma diversidade enorme de tais soluções evolutivas pode ser encontrada entre os répteis de grande porte.
Nossa irresponsabilidade nos levou a explorar excessivamente muitas dessas feras extraordinárias, em muitos casos terminalmente. Diversas dessas espécies são conhecidas por cacos de ossos transformados em rocha e continuam vivas apenas na imaginação de alguns curiosos, doidos e cientistas. Hoje, os últimos elementos desse outrora abundante grupo de répteis gigantes encontram-se ameaçado, assim como os processos promovidos por eles. É nosso dever garantir que eles continuem vivos fora da nossa imaginação.
Contato para a imprensa:
Everton Miranda
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