Minha busca pessoal pelas seis Suítes para violoncelo solo
Peter Moon
As seis Suítes para violoncelo solo de Johann Sebastian Bach (1685-1750) ocupam um lugar muito especial no meu gosto musical. Meu primeiro contato com estas peças de inacreditável beleza se deu em 1991, quando começava a abandonar a MPB e o rock em troca do jazz. Eu passava as manhãs na USP, correndo, nadando e depois lendo jornal à beira da piscina do CPEUSP com o meu inseparável discman à côté. Assim, ia descobrindo a voz encantadora de Ella Fitzgerald, o piano de Thelonious Monk, e os trompetes de Chet Baker e de Miles Davis.
Na hora do almoço, pegava minha moto (sim, era motoqueiro) e saía da USP rumo à Al. Barão de Limeira, no centro, para outra tarde e noite no jornal. Eu iniciava a carreira de jornalista. Era redator de política internacional na Folha de S.Paulo, durante a 1ª Guerra do Golfo. Eram tempos pré-Internet e eu passava as tardes fuçando montanhas de telex das agências internacionais (um desperdício absurdo de papel) à caça de informações para escrever o noticiário do jornal do dia seguinte. Na hora do fechamento, a redação virava uma zorra completa. Imagine 200 jornalistas berrando, batucando teclados, telefones tocando, tudo ao mesmo tempo. Para me concentrar e conseguir escrever, recorria à música, mais especificamente aos maravilhosos Songbooks da Ella Fitzgerald, lançados nos anos 1950 pelo selo Verve.
Foi quando o meu editor na época me emprestou um álbum duplo com os solos para cello de Bach, interpretados pelo violoncelista sino-americano Yo-Yo Ma (aqui, tocando o prelúdio da Suíte n° 1). Eu pouco conhecia dos clássicos, além das melodias óbvias que todo o mundo já ouviu e não sabe o nome nem quem compôs. A voz encantadora do cello nos 18 movimentos das 6 suítes me deixou emocionado, perplexo e obcecado. Passei semanas ouvindo aquilo sem parar.
Aí, fiquei alarmado: “Eu tenho que mergulhar nos clássicos!”, pensei. “Mas como mergulhar nos clássicos se estou começando a desbravar o universo do jazz, o que vai me tomar boa parte da próxima década?!?” Sou um curioso obsessivo e desbravador sistemático. Quando descubro algum ramo do conhecimento, das humanidades, das ciências ou das artes que me encanta, quero saber tudo, conhecer tudo. Como aprender toma tempo, e este é escasso, desde a adolescência recorro ao método. Começo pelo começo, vou à base, à origem, e de lá sigo uma linha quase sempre temporal (é a sina dos historiadores...) até chegar ao presente. Era esta a minha abordagem do jazz, de Louis Armstrong a Wynton Marsalis, um trajeto que, como disse, suspeitava levaria uma década.
Não, não havia tempo para digressões eruditas. Mesmo por que o universo da música de concerto é tão descomunal (são cinco séculos de música) que, quando nele mergulhasse, nadaria de braçada pelo resto da vida. Por mais envolventes e intoxicantes que fossem as suítes de Bach, decidi me desvencilhar deste canto de sereia. Bach teria que esperar. Cada coisa no seu tempo.
Passaram-se 15 anos
Descobrir, usufruir e me emocionar com o jazz levou mais tempo que supunha. Um dia, no entanto, percebi que não estava obtendo o mesmo prazer de antes ao descobrir novos álbuns e músicos desconhecidos. Tinha a sensação incômoda de estar comendo o risoto de forno com o arroz requentado da semana que minha mãe servia nos fins de semana da minha infância. Era gosto de dejá vu. Não havia novos álbuns da fase de ouro de Ella a descobrir. Nem de Charlie Parker, Gillespie, Mingus, Coltrane, Ellington, e das divinas Billie, Dinah ou Sarah. Vencido o primeiro escalão, o segundo escalão de feras do jazz também já havia sido mastigado e deglutido.
Minha sede musical não saciava. Direcionei minha curiosidade à Bossa Nova. Gastei os anos de 2001 e 2002 entendendo João Gilberto, Tom, Vinícius e Baden Powell. Na lembrança ficam Dindi, a Roleiflex, o banquinho e o violão. Foram bons anos. Passaram rápido.
Comecei a criar rodeios e desculpas para ignorar aquela sombra que me espreitava há anos. Era uma lacuna do tamanho da história da música ocidental. Mergulhar nos clássicos seria colocar tudo em contexto, a MPB, o rock, o jazz e a Bossa Nova. Mas parecia um poço de areia movediça sem fundo no qual, quando pisasse, nunca mais sairia. Eu estava certo, e ao mesmo tempo errado. O poço era sem fundo, sim. Mas nada tinha de pantanoso. A melhor imagem que me vêm é a toca de coelho de Alice, o poço do Chapeleiro Maluco que leva ao País das Maravilhas. Foi nele onde tropecei e cai, ao dar de bruços, parar de resistir e me entregar aos clássicos, acho que em 2005.
A obra do chapeleiro
Em 2005, despenquei em queda livre. Desde então, continuo caindo. Cada vez mais rápido, acelerando num abismo sublime. Como a Terra é redonda e no espaço não há nada acima ou abaixo, logo percebi que não caía, mas ascendia. O poder das Suítes de Bach era meu guia. Depois de Yo-Yo Ma, descobri e me deleitei com interpretações recentes das suítes, gravadas pelo russo-israelense Misha Maisky, pelo grego radicado em São Paulo Dimos Goudaroulis, e pelo nosso Antonio Meneses.
Perseguindo outra vertente, fui atrás das gravações clássicas dos franceses Paul Tortelier (sim, o pai do maestro Yan Pascal, da Osesp) e Pierre Fournier, da inglesa Jacqueline du Pré e do russo Mstislav Rostropovich.
Havia também as interpretações “históricas”, ou seja, concebidas como devem ter sido tocadas por Bach há quase 300 anos. Não confunda com gravações com instrumentos de época, pois todos os registros acima foram interpretados com cellos de 300 anos, feitos por Stradivarius e seus pares, contemporâneos de Bach. Das interpretações “históricas”, conheço a do catalão Jordi Savall, e a impressionantemente bela do holandês Anner Bylsma (talvez a mais encantadora de todas - depois, é claro, da gravação original de Pau Casals, a referência para todas as outras.
Estou lendo nesse momento The cello suites – J.S. Bach, Pablo Casals and the search for a baroque masterpiece, de Eric Siblin (Atlantic Monthly Press, 2009, 320 páginas, US$ 24) - em tempo, o livro foi escolhido um dos melhores de 2010 publicados na Inglaterra pela revista Economist (leia aqui a crítica da Economist sobre o livro). Como imaginar que aquela música maravilhosa, composta por Bach possivelmente em 1720 (ninguém sabe ao certo, pois as partituras originais do mestre de Leipzig se perderam), permaneceu desconhecida do mundo por quase 200 anos? Ela só voltou à luz em 1890, quando um adolescente catalão de 13 anos descobriu velhas partituras à venda numa loja de uma pequena travessa das Ramblas de Barcelona.
Pau Casals estudaria aquelas partituras pelos 12 anos seguintes. A dificuldade técnica era tamanha, que mesmo o maior violoncelista do século XX só teve coragem de reapresentar ao mundo aquela música maravilhosa quando completou 25 anos. Já a primeira gravação integral das suítes só aconteceria meio século após da redescoberta das partituras pelo adolescente catalão.
Casals gravou pela primeira vez as suítes entre 1936 e 1939, durante a Guerra Civil Espanhola. Casals era um senhor cinquentão e há muito uma celebridade mundial, aclamado dos dois lados do Atlântico pelo seu virtuosismo e por sua capacidade única de interpretar as suítes (um desafio para qualquer violoncelista desde então). Exilado da sua amada Catalunha para não ser preso pelas tropas franquistas (um general de Franco garantiu que, ao pegar Casals, a primeira coisa que faria seria decepar suas mãos), Casals caiu em profunda depressão trancado num apartamento em Paris.
Ele ficou duas semanas de cama, sem sair do quarto, as janelas fechadas, às escuras. Quando saiu, foi para gravar a 5ª e a 6ª suítes, as emocionalmente mais intensas da série (sem desmerecimento das demais, gravadas em 1936 e 1938, as interrupções devidas à guerra na Espanha). Ao terminar ao registro do ciclo integral, o violoncelista caiu doente de exaustão. Foram 10 dias de hospitalização para se recuperar do esforço, a forma do grande artista chorar o destino da pátria nas mãos dos fascistas.
A integral gravada entre 1936 e 1939 ainda se encontra à venda, por ser inigualável. Aqui você pode ver uma interpretação da 1ª suíte por Casals, filmada em 1954. É o mais próximo que podemos chegar do sublime. Meu mergulho na música erudita se deve às suítes para violoncelo solo de Bach. E, como buraco da toca do chapeleiro-maluco é sem fundo, continuo em queda livre. Ainda bem.
Originalmente publicado em Época Online, em 29/11/2010
Peter Moon
As seis Suítes para violoncelo solo de Johann Sebastian Bach (1685-1750) ocupam um lugar muito especial no meu gosto musical. Meu primeiro contato com estas peças de inacreditável beleza se deu em 1991, quando começava a abandonar a MPB e o rock em troca do jazz. Eu passava as manhãs na USP, correndo, nadando e depois lendo jornal à beira da piscina do CPEUSP com o meu inseparável discman à côté. Assim, ia descobrindo a voz encantadora de Ella Fitzgerald, o piano de Thelonious Monk, e os trompetes de Chet Baker e de Miles Davis.
O violoncelista catalão Pablo Casals (1876-1973) |
Na hora do almoço, pegava minha moto (sim, era motoqueiro) e saía da USP rumo à Al. Barão de Limeira, no centro, para outra tarde e noite no jornal. Eu iniciava a carreira de jornalista. Era redator de política internacional na Folha de S.Paulo, durante a 1ª Guerra do Golfo. Eram tempos pré-Internet e eu passava as tardes fuçando montanhas de telex das agências internacionais (um desperdício absurdo de papel) à caça de informações para escrever o noticiário do jornal do dia seguinte. Na hora do fechamento, a redação virava uma zorra completa. Imagine 200 jornalistas berrando, batucando teclados, telefones tocando, tudo ao mesmo tempo. Para me concentrar e conseguir escrever, recorria à música, mais especificamente aos maravilhosos Songbooks da Ella Fitzgerald, lançados nos anos 1950 pelo selo Verve.
Foi quando o meu editor na época me emprestou um álbum duplo com os solos para cello de Bach, interpretados pelo violoncelista sino-americano Yo-Yo Ma (aqui, tocando o prelúdio da Suíte n° 1). Eu pouco conhecia dos clássicos, além das melodias óbvias que todo o mundo já ouviu e não sabe o nome nem quem compôs. A voz encantadora do cello nos 18 movimentos das 6 suítes me deixou emocionado, perplexo e obcecado. Passei semanas ouvindo aquilo sem parar.
Aí, fiquei alarmado: “Eu tenho que mergulhar nos clássicos!”, pensei. “Mas como mergulhar nos clássicos se estou começando a desbravar o universo do jazz, o que vai me tomar boa parte da próxima década?!?” Sou um curioso obsessivo e desbravador sistemático. Quando descubro algum ramo do conhecimento, das humanidades, das ciências ou das artes que me encanta, quero saber tudo, conhecer tudo. Como aprender toma tempo, e este é escasso, desde a adolescência recorro ao método. Começo pelo começo, vou à base, à origem, e de lá sigo uma linha quase sempre temporal (é a sina dos historiadores...) até chegar ao presente. Era esta a minha abordagem do jazz, de Louis Armstrong a Wynton Marsalis, um trajeto que, como disse, suspeitava levaria uma década.
Não, não havia tempo para digressões eruditas. Mesmo por que o universo da música de concerto é tão descomunal (são cinco séculos de música) que, quando nele mergulhasse, nadaria de braçada pelo resto da vida. Por mais envolventes e intoxicantes que fossem as suítes de Bach, decidi me desvencilhar deste canto de sereia. Bach teria que esperar. Cada coisa no seu tempo.
Passaram-se 15 anos
Descobrir, usufruir e me emocionar com o jazz levou mais tempo que supunha. Um dia, no entanto, percebi que não estava obtendo o mesmo prazer de antes ao descobrir novos álbuns e músicos desconhecidos. Tinha a sensação incômoda de estar comendo o risoto de forno com o arroz requentado da semana que minha mãe servia nos fins de semana da minha infância. Era gosto de dejá vu. Não havia novos álbuns da fase de ouro de Ella a descobrir. Nem de Charlie Parker, Gillespie, Mingus, Coltrane, Ellington, e das divinas Billie, Dinah ou Sarah. Vencido o primeiro escalão, o segundo escalão de feras do jazz também já havia sido mastigado e deglutido.
Minha sede musical não saciava. Direcionei minha curiosidade à Bossa Nova. Gastei os anos de 2001 e 2002 entendendo João Gilberto, Tom, Vinícius e Baden Powell. Na lembrança ficam Dindi, a Roleiflex, o banquinho e o violão. Foram bons anos. Passaram rápido.
Comecei a criar rodeios e desculpas para ignorar aquela sombra que me espreitava há anos. Era uma lacuna do tamanho da história da música ocidental. Mergulhar nos clássicos seria colocar tudo em contexto, a MPB, o rock, o jazz e a Bossa Nova. Mas parecia um poço de areia movediça sem fundo no qual, quando pisasse, nunca mais sairia. Eu estava certo, e ao mesmo tempo errado. O poço era sem fundo, sim. Mas nada tinha de pantanoso. A melhor imagem que me vêm é a toca de coelho de Alice, o poço do Chapeleiro Maluco que leva ao País das Maravilhas. Foi nele onde tropecei e cai, ao dar de bruços, parar de resistir e me entregar aos clássicos, acho que em 2005.
A obra do chapeleiro
Em 2005, despenquei em queda livre. Desde então, continuo caindo. Cada vez mais rápido, acelerando num abismo sublime. Como a Terra é redonda e no espaço não há nada acima ou abaixo, logo percebi que não caía, mas ascendia. O poder das Suítes de Bach era meu guia. Depois de Yo-Yo Ma, descobri e me deleitei com interpretações recentes das suítes, gravadas pelo russo-israelense Misha Maisky, pelo grego radicado em São Paulo Dimos Goudaroulis, e pelo nosso Antonio Meneses.
Perseguindo outra vertente, fui atrás das gravações clássicas dos franceses Paul Tortelier (sim, o pai do maestro Yan Pascal, da Osesp) e Pierre Fournier, da inglesa Jacqueline du Pré e do russo Mstislav Rostropovich.
Havia também as interpretações “históricas”, ou seja, concebidas como devem ter sido tocadas por Bach há quase 300 anos. Não confunda com gravações com instrumentos de época, pois todos os registros acima foram interpretados com cellos de 300 anos, feitos por Stradivarius e seus pares, contemporâneos de Bach. Das interpretações “históricas”, conheço a do catalão Jordi Savall, e a impressionantemente bela do holandês Anner Bylsma (talvez a mais encantadora de todas - depois, é claro, da gravação original de Pau Casals, a referência para todas as outras.
Estou lendo nesse momento The cello suites – J.S. Bach, Pablo Casals and the search for a baroque masterpiece, de Eric Siblin (Atlantic Monthly Press, 2009, 320 páginas, US$ 24) - em tempo, o livro foi escolhido um dos melhores de 2010 publicados na Inglaterra pela revista Economist (leia aqui a crítica da Economist sobre o livro). Como imaginar que aquela música maravilhosa, composta por Bach possivelmente em 1720 (ninguém sabe ao certo, pois as partituras originais do mestre de Leipzig se perderam), permaneceu desconhecida do mundo por quase 200 anos? Ela só voltou à luz em 1890, quando um adolescente catalão de 13 anos descobriu velhas partituras à venda numa loja de uma pequena travessa das Ramblas de Barcelona.
Pau Casals estudaria aquelas partituras pelos 12 anos seguintes. A dificuldade técnica era tamanha, que mesmo o maior violoncelista do século XX só teve coragem de reapresentar ao mundo aquela música maravilhosa quando completou 25 anos. Já a primeira gravação integral das suítes só aconteceria meio século após da redescoberta das partituras pelo adolescente catalão.
Casals gravou pela primeira vez as suítes entre 1936 e 1939, durante a Guerra Civil Espanhola. Casals era um senhor cinquentão e há muito uma celebridade mundial, aclamado dos dois lados do Atlântico pelo seu virtuosismo e por sua capacidade única de interpretar as suítes (um desafio para qualquer violoncelista desde então). Exilado da sua amada Catalunha para não ser preso pelas tropas franquistas (um general de Franco garantiu que, ao pegar Casals, a primeira coisa que faria seria decepar suas mãos), Casals caiu em profunda depressão trancado num apartamento em Paris.
Ele ficou duas semanas de cama, sem sair do quarto, as janelas fechadas, às escuras. Quando saiu, foi para gravar a 5ª e a 6ª suítes, as emocionalmente mais intensas da série (sem desmerecimento das demais, gravadas em 1936 e 1938, as interrupções devidas à guerra na Espanha). Ao terminar ao registro do ciclo integral, o violoncelista caiu doente de exaustão. Foram 10 dias de hospitalização para se recuperar do esforço, a forma do grande artista chorar o destino da pátria nas mãos dos fascistas.
A integral gravada entre 1936 e 1939 ainda se encontra à venda, por ser inigualável. Aqui você pode ver uma interpretação da 1ª suíte por Casals, filmada em 1954. É o mais próximo que podemos chegar do sublime. Meu mergulho na música erudita se deve às suítes para violoncelo solo de Bach. E, como buraco da toca do chapeleiro-maluco é sem fundo, continuo em queda livre. Ainda bem.
Originalmente publicado em Época Online, em 29/11/2010
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