O primeiro boom capitalista do Brasil

No início do século XX, a Bolsa de Valores viveu um período mais pujante que agora, diz o historiador mexicano Aldo Musacchio


Peter Moon


O ano de 2007 foi alardeado pelo mercado financeiro brasileiro como o melhor de sua história. A Bolsa comemorou o recorde de 27 aberturas de capital, ou ofertas públicas iniciais de ações (IPOs, na sigla em inglês). Mas esse número não é um recorde. Entre 1905 e 1913, as Bolsas de São Paulo e do Rio de Janeiro foram palco de IPO de 250 empresas – uma média de 28 por ano. A afirmação é do mexicano Aldo Musacchio, estudioso dos mercados latino-americanos, no livro Experiments in Financial Democracy (2009). 


QUEM É
Ph.D. em História Econômica da América Latina pela Universidade Stanford


O QUE FAZ
É professor de História dos Negócios da Escola de Administração de Harvard


O QUE PUBLICOU
Experiments in Financial Democracy: Corporate Governance and Financial Development in Brazil, 1882-1950 (Cambridge University Press)










Musacchio, de 35 anos, é professor de História dos Negócios na Escola de Administração de Harvard, uma das mais prestigiosas do mundo. Na entrevista abaixo, ele revela a história do primeiro boom financeiro nacional, sepultado pela Primeira Guerra Mundial, pela crise de 1929 e pelo estatismo dos anos 1930.


ÉPOCA – A valorização das Bolsas nos últimos anos levou muitas empresas a abrir seu capital. As 27 ofertas públicas iniciais (IPOs) de 2007 são consideradas um recorde. Mas, para o senhor, isso não é verdade. Por quê?
Aldo Musacchio – Porque, entre 1905 e 1913, o volume de IPOs no Brasil foi muito maior. Só para ter uma idéia, foram mais de 100 IPOs na Bolsa de São Paulo e 135 na do Rio, uma média de 28 IPOs por ano. Foi o maior período de crescimento na história da Bolsa de São Paulo e na do Rio. Foi o primeiro boom financeiro do Brasil. O ápice foi em 1913. Essa é uma informação nova. Ela não existe em lugar nenhum.


ÉPOCA – Quais as razões daquele boom?
Musacchio – Entre 1890 e 1914, o mundo viveu um período de prosperidade e de estabilidade quase único, como nunca mais se repetiu. Grandes fluxos de capitais, proporcionalmente até maiores que os de hoje, se dirigiam da Inglaterra e da Europa para os Estados Unidos, as colônias britânicas, a Argentina e o Brasil. Por seu lado, o país vivia o ciclo do café e exportava muito caro uma mercadoria com enorme demanda mundial. Muitos brasileiros tinham dinheiro e precisavam investir suas poupanças em negócios com bom retorno. O interessante é que essas pessoas, não apenas os barões do café, mas também comerciantes e profissionais liberais, em vez de levar seu dinheiro para a Europa como se fazia antes, começaram a investir em ações no Brasil. Foi o que possibilitou às empresas brasileiras vender seus papéis para os investidores estrangeiros e ações aos investidores nacionais.


Outra razão para o mercado brasileiro ter atraído muitos investidores domésticos é que as empresas tinham estatutos que protegiam os acionistas minoritários. Em outras palavras, elas tinham aquilo que hoje chamam de boa governança corporativa. A base de investidores era muito grande. Entre os minoritários, havia muitos médicos e dentistas. Outro dado interessante é que havia muitas mulheres, muitas viúvas. O perfil dos investidores era bastante diversificado.


ÉPOCA – Por que esse boom acabou?
Musacchio – A Primeira Guerra Mundial foi um momento difícil, porque fechou o mercado do café na Europa. Quando ele voltou depois da guerra, os preços caíram. A entrada de capitais no Brasil também despencou. A instabilidade econômica era grande, e a inflação começou a subir. Nesse momento, o retorno para o investidor deixou de ser atraente. Eles começaram s a perder dinheiro, pois o retorno ficava abaixo da inflação. Foi quando esse mercado de papéis morreu – para ressuscitar apenas hoje, um século depois. As Bolsas permaneceram enfraquecidas e sobreviveram à crise de 1929. Na década de 30, quando foi aprovada uma lei que permitia às empresas emitir até 50% do capital em ações preferenciais sem direito a voto, elas perderam o sentido. As empresas com controle acionário mais concentrado pararam de emitir ações com direito a voto e ficaram concentradas nas mãos das famílias mais ricas do Brasil.


ÉPOCA – O que aconteceu com as empresas de capital aberto?
Musacchio – As estradas de ferro tinham uma governança corporativa que protegia o pequeno acionista, limitando o poder de voto dos grandes acionistas. As assembléias-gerais da Estrada de Ferro Paulista contavam com 300, 400 acionistas. Outro bom exemplo é o Banespa. Eram empresas democráticas para aquele tempo. Depois da guerra, elas tiveram problemas. Na década de 1920, o governo de São Paulo resolveu salvar o Banespa e assumir o controle. Estradas de ferro como a Paulista, a Mogiana e outras acabaram falindo e caíram nas mãos do governo.


ÉPOCA – É a história do nascimento do estatismo brasileiro...
Musacchio – Sim. A história do declínio do mercado de capitais do começo do século XX é a história do nascimento, por um lado, do Estado como dono de empresas e, por outro, do nascimento dos grandes grupos familiares brasileiros. Foi um produto das circunstâncias. Era difícil sobreviver sem o mercado de capitais, pois aquele que existia antes da Primeira Guerra desapareceu. Só sobreviveram os empresários que permaneceram próximos do governo ou que compraram algum banco. Ainda existem famílias que sobreviveram àquele período e são poderosas. Um exemplo é o grupo Votorantim, de Antônio Ermírio de Moraes, dono de uma fortuna de US$ 10 bilhões e o homem mais rico do Brasil em 2007, segundo a revista Forbes.


ÉPOCA – Que lições essa história fornece com relação ao boom financeiro atual?
Musacchio – Nos Estados Unidos, os investidores olham para as empresas brasileiras, muitas ainda sob controle familiar, e ficam com medo de investir. Dizem que não podem investir numa empresa que tem nível máximo de governança corporativa na Bovespa, mas tem uma família no controle. Sou otimista em relação ao Brasil. Hoje, o país está voltando depois de um século a um mundo em que os investidores participam das empresas.


ÉPOCA – Como o senhor vê a fusão da Bovespa com a BM&F em 2009, que resultou na terceira maior Bolsa do mundo? 
Musacchio – Ela será a terceira maior Bolsa do mundo, quando se olha para o valor de mercado da “empresa” Bolsa. A Nova Bolsa (resultado da fusão) já ultrapassou a Bolsa de Hong Kong (com um valor de mercado de US$ 19,9 bilhões, contra US$ 17,5 bilhões), que estava em terceiro lugar. Mas essa colocação não quer dizer nada em termos de tamanho do mercado financeiro. Na América Latina, a Bovespa está atrás da Bolsa do Chile quando se compara o tamanho do mercado de capitais com o tamanho da economia. No mundo, o mercado brasileiro não está nem entre os dez maiores. A tendência com a Nova Bolsa é que se possa negociar no Brasil uma ação da Bolsa de Frankfurt ou Tóquio. O que o Brasil precisa fazer agora é garantir seu lugar como sede da maior Bolsa da América Latina.


ÉPOCA – A crise atual é um sinal do fim do domínio de Wall Street?
Musacchio – Ela é mais uma evidência do declínio de Wall Street como centro financeiro do mundo. Essa tendência começou com a falência da Enron, no início de 2001, e se acentuou depois dos atentados de 11 de setembro. Como, na Inglaterra, existem menos leis reguladoras do mercado que nos Estados Unidos, muitas corretoras estão transferindo seus negócios para a City londrina.


ÉPOCA – A crise da bolha imobiliária americana é a pior desde 1929? 
Musacchio – Francamente, a crise atual parece muito ruim. Cada passo é uma repetição da crise que resultou na Grande Depressão da década de 1930. Mas há diferenças. A queda do PIB americano será de 1%, contra mais de 25% há 80 anos. Outra diferença é que o Fed (o Banco Central americano) aprendeu com os erros da Depressão e não deve repeti-los.


ÉPOCA – O Brasil está protegido? 
Musacchio – O Brasil não está blindado, mas tem muito a seu favor para que a crise não seja tão forte. Em primeiro lugar, o mercado interno está melhor hoje, está crescendo rápido, os juros estão se estabilizando num nível menor que nos últimos anos. As empresas que produzem para o mercado interno podem oferecer bons retornos para o investidor estrangeiro que está fugindo da crise. O segundo ponto é que o setor exportador brasileiro é diversificado. Só 18% das exportações vão para os EUA. Quando se olha a lista dos parceiros comerciais do Brasil, a variedade de países é impressionante. Não é o caso do México, que destina mais de 80% das exportações para os EUA e será muito afetado. O terceiro ponto tem a ver com o petróleo. O país precisa aproveitar a descoberta do megacampo de petróleo de Tupi (atual Lula), na Bacia de Santos, para se fortalecer ainda mais. A Petrobras e o governo precisam definir uma estratégia para usar esses recursos de forma a colocar o país numa situação de ator mundial. Sou otimista com relação ao Brasil.


Publicado originalmente em Época, em 20/02/2009

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