Quando a Terra tinha um reator nuclear natural

A história da mina de urânio africana que produzia energia há 2 bilhões de anos

PETER MOON

Há mais de 400 reatores nucleares em operação no planeta. O reator nuclear natural mais próximo da Terra é o Sol. É a reação nuclear no centro do sol que gera a energia que aquece, ilumina e dá vida à Terra. O reator nuclear natural mais próximo da Terra é o Sol, mas nem sempre foi assim. Onde hoje são as regiões de Oklo e Bangombé, no Gabão, África, há quase 2 bilhões de anos havia 16 reatores nucleares naturais em operação, quebrando moléculas de urânio e liberando vastas quantidades de energia e radioatividade letal.

A existência desses reatores naturais não é uma hipótese. É um fato, leio em Here on Earth – A new beginning (Allen Lane, 316 páginas, £ 14,99), o mais novo livro do zoólogo, paleontólogo, ambientalista e escritor australiano Tim Flannery, de 55 anos. Atualmente ele é pesquisador da Universidade Macquerie, em Sydney, e é um dos autores que mais gosto e mais me influencia.

Em 1996, eu estava de férias fazendo um curso de mergulho na Grande Barreira de Coral. Para passar o tempo nos cinco dias em que permaneceria embarcado, comprei um livro recém-publicado intitulado The future eaters (os consumidores do futuro). Era uma história natural da Austrália. Flannery era o autor. Fiquei tão impressionado com o que li que, ao voltar a Sydney e antes de embarcar de volta ao Brasil, resolvi conhecer seu autor.

Na época, Flannery pesquisava no maior museu de história natural da Austrália, o Museu Australiano, em Sydney. Liguei para o museu e pedi para falar com Flannery. Ele me convidou a visitar o museu. Simpático e gorducho, veio me receber na porta da instituição. Foi uma manhã inesquecível.

O ponto alto da visita foi o momento em que Flannery abriu um desses armários de aço cinzentos. Seu interior guardava, imersos em cilindros de vidro cheios de formol, três dúzias de lobos da Tasmânia. Os lobos da Tasmânia eram carnívoros marsupiais do porte de cães. O último representante da espécie morreu em 1936 num Zoológico da Tasmânia, uma grande ilha no sul da Austrália. Seu parente vivo mais próximo é o pequeno diabo da Tasmânia. “Um dia vamos clonar esses bichos e ressuscitar a espécie”, afirmou Flannery apontando os cadáveres. Dado o perfeito estado de conservação dos espécimes, não tenho a menor dúvida que um dia isto de fato ocorrerá.

Depois da visita ao museu fomos almoçar, tomar cerveja e conversar sobre o tempo em que a Austrália e a América do Sul faziam parte do mesmo supercontinente, a Gondwana, entre 250 e 120 milhões de anos atrás.

Nunca mais encontrei Flannery. The future eaters nunca saiu da minha cabeceira. E nunca deixei de ler nada do que ele publicou. Agora é a vez de Here on Earth, o novo livro onde Flannery reconta a evolução da vida na Terra, mostrando como tudo está ligado. O oxigênio que respiramos foi produzido por algas há 2,5 bilhões de anos. Foi preciso transcorrer outros 2 bilhões de anos para, há 500 milhões de anos, a concentração de oxigênio na atmosfera atingir os níveis atuais.

Nesse momento, o oxigênio preencheu a estratosfera e fechou a camada de ozônio. Esta, por sua vez, barrou os letais raios ultravioletas que até então incidiam sobre os continentes, tornando-os estéreis. Como aos raios UV não penetram na água, até 500 milhões de anos atrás a vida estava restrita aos oceanos. Quando a camada de ozônio fechou, plantas, insetos e anfíbios, em vagas sucessivas, colonizaram a terra firme.

Eu já sabia de tudo isso, e me encanto em saber que o ar que respiro foi produzido por algas há 2 bilhões de anos. O que não sabia é que, na mesma época, as condições terrestres eram tão terríveis a ponto de existir reatores nucleares naturais que operavam a céu aberto, irradiando ininterruptamente e - por dezenas de milhões de anos - sua radiação mortífera.

Os 16 reatores nucleares naturais do Gabão existiram, queimaram seu combustível radioativo e apagaram há muito tempo. Foram descobertos por acaso em 1972, quando o minério de urânio escavado em Oklo e Bangombé foi levado para ser enriquecido na França. Hoje, 99,3% do urânio na Terra são do isótopo U238, com 238 prótons e nêutrons no núcleo. Só 0,7% são do isótopo U235, com 235 prótons e nêutrons. O isótopo U235 é o único que pode ser usado para gerar energia em usinas nucleares (numa concentração de 5%), ter uso na medicina (em concentração de 20%) ou em armas nucleares (mais de 90%).

O urânio de todas as minas do planeta tem 0,7% de U235. A exceção é a mina do Gabão. Seu urânio só tem 0,4% de U235. Onde foi parar o resto? Ele foi consumido em reações em cadeia que ocorreram naturalmente há 2 bilhões de anos. Mas como?

Todo elemento químico tem a sua chamada meia vida. Meia vida é o tempo que metade de uma determinada quantidade de um elemento leva para decair, ou seja, perder naturalmente nêutrons e prótons, transformando-se num outro elemento com o núcleo “mais leve”. A meia vida do U238 é 4,5 bilhões de anos. Leva 4,5 bilhões de anos para que metade dos átomos de uma quantidade de U238 decaia, virando o elemento Tório 234. Já o isótopo U235 tem meia vida de 713 milhões de anos. Os químicos fizeram os cálculos e sabem que, quando a Terra se formou há 4,5 bilhões de anos, 33% do urânio no planeta eram do isótopo U235. Depois de tanto tempo, quase todo ele decaiu até atingir a concentração atual de 0,7%.

No Gabão, são 0,4%. A única explicação é a seguinte. Há 2 bilhões de anos, aquela mina de urânio tinha uma concentração elevada de U235. A concentração era alta o suficiente (possivelmente acima dos 5%) para desencadear a fissão nuclear - igual àquela que produz calor para gerar eletricidade nas usinas nucleares. Enquanto os reatores naturais existiram, eles consumiram o U235 em excesso. Quando a concentração do U235 caiu abaixo dos 5%, a reação em cadeia não pôde mais se sustentar e os reatores apagaram. Nesse momento, a quantidade de U235 remanescente no Gabão havia se tornado menor que a do restante do urânio no planeta. Decorridos 2 bilhões de anos, o U235 do Gabão decaiu a 0,4%.

A Terra já foi um lugar terrível, absolutamente inóspito à vida como a conhecemos. Se hoje o planeta é propício à vida, cabe a nós garantir que continue assim. Pelo bem das futuras gerações.

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