Rhacolepis buccalis, peixe que viveu há 110 milhões de anos no Nordeste |
PETER MOON
Esta é uma história que mostra como o uso inovador na pesquisa científica de novas tecnologias de imagem é capaz de revelar aspectos inimagináveis de uma amostra (neste caso, da anatomia de um peixe fóssil) e, por consequência, abrir as portas para um campo inteiramente novo de pesquisa. No caso, a investigação de fósseis através da microtomografia síncrotron.
Os personagens desta história são um peixinho petrificado que nadou há mais de 100 milhões de anos nas águas que cobriam a Chapada do Araripe, no Ceará, e um grupo de pesquisadores formado por médicos, biólogos, químicos e físicos, ou seja, profissionais praticamente sem nenhum treinamento formal em paleontologia.
Os caminhos que levaram ao envio de 62 fósseis de peixes brasileiros do Araripe para serem microtomografados na França tiveram início no interesse de Xavier-Neto sobre a biologia do desenvolvimento do coração de câmara.
O coração de câmara é característico dos animais vertebrados. No caso dos mamíferos e das aves o órgão é formado por quatro câmaras – dois átrios e os dois ventrículos – por meio das quais o sangue é bombeado. Anfíbios e répteis têm coração com apenas três câmaras, e os peixes, só duas.
Os invertebrados possuem estruturas cardíacas muito mais simples, sem câmaras, mas formadas por bombas peristálticas: o sangue é bombeado por meio de movimentos peristálticos semelhantes aos que movem o alimento no intestino.
“Não existe vertebrado vivo com um coração que seja de transição entre as bombas peristálticas e o coração de câmara. Mas é possível que tenha existido um animal com este perfil de transição e que se extinguiu. Foi quando decidimos investigar o registro fóssil para ver se encontrávamos corações fossilizados. Não havia nada e não se sabia se era possível um coração fossilizar”, disse Xavier-Neto.
Os vertebrados são constituídos por partes duras (o esqueleto) e por partes moles: órgãos internos, músculos, cartilagem, gordura, pele, pelos, penas e escamas. A imensa maioria dos fósseis animais preserva apenas as partes duras. É preciso haver circunstâncias absolutamente excepcionais para a fossilização das partes moles. Locais adequados à ocorrência dessas circunstâncias são muito raros. A Chapada do Araripe, entre o Ceará e Pernambuco, é um desses locais.
Entre 119 milhões e 113 milhões de anos atrás, no período Cretáceo, o Araripe era o fundo de uma laguna rasa. Naquelas antigas águas tropicais havia uma profusão de peixes. Na planície costeira adjunta viviam dinossauros, crocodilos, tartarugas e uma infinidade de insetos. E no ar reinavam os pterossauros, répteis voadores extintos que tornaram a Chapada do Araripe mundialmente conhecida.
Embora os pterossauros sejam as estrelas do Araripe, aquela formação geológica foi descoberta em meados do século 19 graças à abundância e à excelência dos seus fósseis de peixes, que estão entre os mais completos e perfeitos que se conhece. Xavier-Neto foi atrás desses fósseis, em viagens anuais ao Nordeste.
Com autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o pesquisador começou a trazer dezenas de peixes petrificados para Campinas. Escolhia os fósseis mais completos e menos deformados. A espécie eleita para pesquisa foi um peixinho de 10 centímetros, o Rhacolepis buccalis.
No LNBio, Xavier-Neto começou a dissolver alguns fósseis com ácido, camada por camada, na esperança de revelar as estruturas internas do peixe. “No terceiro fóssil achei uma estrutura que me chamou a atenção. Tinha a forma de um cone, uma característica do coração dos peixes”, contou.
O passo seguinte foi empregar técnicas de diagnóstico por imagem da tomografia computadorizada, mas sem sucesso. Nova alternativa foi submeter os peixes de pedra ao feixe de luz do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. O síncrotron é uma fonte de luz brilhante que os cientistas usam para reunir informações sobre as propriedades estruturais e químicas de materiais em nível molecular.
Submetidos à microtomografia síncrotron, os peixes revelaram as estruturas internas. As imagens, no entanto, eram esmaecidas, sem definição. Não era possível distinguir conclusivamente os contornos de um coração fóssil, muito menos adivinhar quantas câmaras haveria nele. O feixe de raios X produzido no síncrotron brasileiro, em operação desde 1997, penetra os materiais com profundidade de somente alguns micrômetros.
A alternativa foi recorrer a um síncrotron mais potente, o do ESRF, na França. Os peixinhos fossilizados foram enviados temporariamente a Grenoble, onde se utilizou um poderoso feixe de luz síncrotron. O resultado são imagens com a resolução de 6 micrômetros, definição mil vezes maior do que a dos tomógrafos médicos.
Era o que faltava. O síncrotron francês começou a desvendar uma montanha de detalhes dos peixes e com uma qualidade de imagem “magnífica”, conforme qualifica o pesquisador.
“Pudemos enxergar em detalhes todas as estruturas internas. Deu até para saber qual era a espécie do camarão que o peixe tinha comido”, disse Xavier-Neto. Foi possível identificar o camarão como o de uma espécie já descrita no Araripe.
“Quando as imagens da França chegaram vimos a anatomia de um peixe, em um fóssil com 113 milhões de anos. Conseguimos provas de que aquela estrutura cônica que suspeitávamos ser um coração era, de fato, um coração de peixe”, disse Carvalho.
“Mas não se tratava de qualquer coração de peixe. Ele não possuía uma única válvula na saída do coração, como a maioria dos peixes atuais. Para absoluta surpresa, aquela estrutura em forma cônica no Rhacolepis do tempo dos dinossauros possuía cinco válvulas. E não existe registro de nenhum outro animal vivente ou extinto com um coração assim”, disse Carvalho.
Transição evolutiva
A hipótese de Xavier-Neto é que, muito cedo na evolução dos peixes, deve ter ocorrido uma transição evolutiva de um coração original com dezenas de válvulas para outro com apenas cinco, como o do Rhacolepis. Desde então, a quantidade de válvulas diminuiu até chegar na válvula única da maioria dos peixes atuais. “A redução do número de válvulas foi gradual”, disse Carvalho.
Para saber se, de fato, havia corações com dezenas de válvulas, os pesquisadores precisam agora olhar para outros tipos de fósseis, de grupos e idades diferentes.
Identificar tais fósseis não é tarefa fácil, uma vez que eles precisam reunir características únicas, como preservação tridimensional dos tecidos moles. Outra dificuldade é o acesso aos fósseis. A maior parte do material com essas condições está fora do Brasil.
“O estudo é importante, porque agora sabemos que podemos estudar o desenvolvimento do coração por meio dos fósseis. E, uma vez que se sabe que a microtomografia síncrotron tem o poder de, literalmente, realizar a ‘autópsia’ virtual de um peixe fóssil, abre-se a possibilidade para o estudo das estruturas internas de todos os fósseis que preservem o registro de suas partes moles”, disse Xavier-Neto.
“Só do Araripe há milhares de fósseis nessas condições, sem falar no material de alguns jazigos fossilíferos que conservam restos de dinossauros e aves (na China), de mamíferos (na Alemanha) ou mesmo de peixes (na Austrália) em condições assombrosas”, disse.
Por enquanto, Xavier-Neto e Carvalho terão que continuar enviando seus fósseis para análise na França. Isto até 2019, quando está previsto o início das operações no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) do Novo Anel Acelerador Sirius, o futuro síncrotron brasileiro – que tem apoio da FAPESP. “Quando começar a operar, será o mais potente do mundo”, disse Carvalho.
O artigo Heart fossilization is possible and informs the evolution of cardiac outflow tract in vertebrates (doi: 10.7554/eLife.14698), de José Xavier-Neto e outros, publicado na eLife, pode ser lido em: elifesciences.org/content/5/e14698v1.
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